Dando continuidade à publicação dos poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), hoje temos “O TOURO DE CRETA” de Sérgio Viralobos. Veja aqui a minha leitura para o poema:
E como é que tudo começara?
Um grupo de garotas grita à beira mar.
Enquanto colhiam flores descuidadas,
Um bando de touros as cercara.
Entre eles havia um, branco de ofuscar,
De pequenos longos chifres semelhantes a joias.
Era um boi da cara da beleza,
Havia muita mansidão em seu olhar.
Entre elas havia uma, mais linda que as camaradas,
Não bastasse ser princesa do Reino da Fenícia.
Europa (este era seu nome) acercou-se do touro
E encostou em seu focinho um ramalhete de flores encarnadas.
Ele rolou pelo chão à maneira das jiboias,
Oferecendo-lhe seus chifres pra receber a guirlanda.
Ela se achega temerosa, mas monta em sua garupa
Com a coragem das Helenas de Troias.
O rebanho se afasta em singeleza.
Fingindo indecisão, o touro pisa a praia
E vai mar adentro. Agora é tarde,
Europa se segura nos chifres da incerteza.
Enquanto amacia a montaria com carícia,
Diz ao mar e aos quatro ventos:
Avisem meu pai que Europa se foi da sua terra
Raptada pelos pelos de uma fera sem malícia.
Singrando entre as ondas, ele deu no couro
E levou-a até uma ilha chamada Creta.
Amaram-se como se criassem um continente,
Até que um belo dia, o boi boiou pro abatedouro.
Mesmo na mitologia, a fila anda
E agora estamos na Creta do Rei Minos.
Pelo poder pediu a Possêidon um regalo
A ser sacrificado em sua honra.
Então saiu do mar um touro à queima roupa,
Miraculoso, com um círculo branco na testa,
Emanando um perfume de feromônios.
Minos examinou-o de fio a pavio com lupa.
Era um touro total. O Rei sentiu-se um pária
E resolveu escondê-lo no meio de sua manada.
No dia do sacrifício matou uma rês desgarrada,
Achando que Possêidon não notaria a tramoia.
No mesmo instante, raio estrondou com alarde:
O Touro de Creta ficou muito louco.
Revirou violento seu cocho
Pra chifrar com gosto a multidão covarde.
Em complemento a seus vingativos intentos
Possêidon enfeitiçou a Rainha Pasífae
(Sendo Minos seu esposo e Hélio, seu pai).
Pelo animal, desenfreou todos seus sentimentos.
Sem saber como saciar sua paixão cachorra,
Pediu ajuda ao engenhoso Dédalo,
Que construiu o simulacro de um bucéfalo
Do sexo feminino. Parecia coisa de Gomorra.
Pasífae entrou na vaca por uma porta secreta
E acomodou-se desnuda no oco da engenhoca.
O Touro veio com tudo pra se enfiar na toca.
Ela não se preocupou em tirar o seu da reta.
Esses estranhos amores geraram uma semente,
Meio homem, meio touro: Minotauro.
Minos achou aquilo de mau agouro
E preparou pra Pasífae um presente.
Um palacete pro mais novo de seus filhos,
Composto de um tão emaranhado labirinto,
Que um ser vivo só sairia de lá extinto.
Ela chorou de pena por seus destinos.
Entrementes, Euristeu não sossegava o rabo.
Hera aconselhou-o a banir Héracles do Peloponeso.
De seus próximos trabalhos não sairia ileso,
Zanzaria pelo Mundo pra levá-los a cabo.
A tarefa de agora era bem funesta:
Trazer o Touro de Creta para Micenas, cativo.
Ainda por cima pelo mar, pra aumentar o perigo.
Héracles partiu. Euristeu preparou a festa.
Chegando à ilha, seguiu o rastro de morte dos campônios
Até o assassino com seus chifres de ouro e patas de bronze.
Hoje já tinha matado dez, não lhe custava fazer o onze.
E arremeteu contra o herói com a raiva dos demônios.
Os seus cascos estrondaram na pancada,
Mas Héracles fica frio e se desvia
Como um legitimo toureiro da Andaluzia,
No exato último segundo da estocada.
O monstro passou direto e levou um toco.
O herói queria ganhar esta no braço.
Montou no bicho e aplicou-lhe um torniquete de aço,
Não lhe quebrando o pescoço por pouco.
Nesse abraço de urso, sua força se esvai
E o Touro se entrega ao novo dono.
A montanha de músculos sente um súbito sono
Pra sonhar com o movimento de um corpo que cai.
Quando acordou no estábulo,
Sentiu um grande peso em seu lombo.
Caminhou para o mar com patas de chumbo:
Héracles comandava o espetáculo.
Enquanto as águas se abriam em pororoca,
O semideus lembrou que Zeus nascera numa caverna de Creta.
Em seu veículo taurino, uma dúvida deu a seta:
Não seria seu pai a lhe aplicar uma potoca?
Emocionado, beijou a cabeça do Touro
E navegou-lhe amoroso a velas plenas
Para delírio das multidões de Micenas
Verem a volta do herói trazendo outro tesouro.
Euristeu sentiu-se um lixo no pinto,
Brochado na frente da deusa Hera.
Tentou ainda lhe oferecer o sacrifício da fera.
Ela gritou: não quero nem o pó da sandália do mito.
O idiota mandou soltar o animal por puro medo
Contra seu próprio povo. É o que normalmente fazem os tiranos.
Héracles observou de longe a trama de erros e enganos.
Tempos sombrios pareciam assumir o controle do enredo.
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