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SERGIO-CABECA-COLUNA

Os Bois de Gerião

27/02/2025

Dando continuidade à publicação dos poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver aqui), hoje temos “OS BOIS DE GERIÃO” de Roberto Prado.

Veja aqui a leitura de Roberto Prado para o poema.

Quando Hércules voltou do triste morticínio
que custou o cinto da rainha das amazonas
encontrou Euristeu rindo à toa, fora do domínio,
olhos faiscando de uma cobiça assustadora.

O rei arrancou a joia rara das mãos do estafeta,
apalpou, cheirou, beijou, apertou no peito,
e chamando com voz trêmula a filha Admeta,
prendeu-a na cintura de vespa da princesa.

A ninfeta ficou nas nuvens com o presente,
mas logo teria na cabeça um novo capricho
que o tolo rei, seu pai, satisfaria a todo custo
desde que ele mesmo não corresse risco.

Mas Hércules não estava ali para conversa
tinha pressa de zerar os malévolos trabalhos,
livrar a consciência da culpa mais perversa
e ficar em dia com a lei de deuses e homens.

Euristeu gargalhou gostosamente da tragédia
e disse: “pode ficar sossegado, herói da massa,
logo logo você vai descansar para sempre,
porque da décima tarefa você não passa.

Dê um pulo na Erítria, a ilha do extremo ocidente,
e traga de lá para mim o rebanho do rei Gerião.
Os melhores bois da Hélade são daquele demente
e você sabe que não admito ser o segundo lugar”.

Hércules deixou Euristeu grasnando sozinho
e saiu com o elefante atrás da orelha.
Quando a moleza é demais, até ele desconfia:
“Era coisa de Hera torná-lo ladrão e vaqueiro?”

O gigante rei Gerião, neto de Medusa e Poseidon,
não era páreo, mesmo com seis braços e três cabeças.
E os guardiões da boiada, o monstruoso Eurítion
e Ortros, o cão do crepúsculo, não lhe tiravam o sono.

Mas ao pôr o pé na estrada sentiu no lombo
que só para chegar ao porto já seria pedreira:
“como atravessar o abrasador deserto da Líbia
com deus Hélio jogando mais lenha na fogueira?”

Depois de muito tempo torrando na canícula
Ameaça o sol violento com seus petardos.
Como aviso, lança flecha a milímetros do alvo.
Atemorizado, Hélio propõe uma trégua.

Mas Hércules quer mais: exige do deus sol
a taça com a qual ele pousa à noite no oceano
para usá-la como barco e enfrentar seu destino,
nos confins tenebrosos do mar insano.

Ao chegar ao Rio Oceano, hoje Mediterrâneo,
Hércules pensou: “É meio caminho andado”.
Pura ilusão, descobriria logo mais adiante
ao sentir a fúria louca de outro deus zangado.

O mar revolto erguia ondas como montanhas
e em seguida fendia-se em tenebrosos abismos
nele, a taça de Hélios era uma casca de noz
soprada pelos ventos de mil tufões conjugados.

Enjoado da marola, Hércules sacou o arco
e avisou ao deus Poseidon que a briga era sua.
O futuro Netuno medrou e na mesma hora
o mar virou um lago azul em noite de lua.

No meio do caminho havia uma pedra bruta, Gibraltar,
mas o herói, não querendo meia volta volver,
a moeu ao meio e deixou dois montes no lugar
Abila na África, Cape na Europa, as Colunas de Hércules.

Navegando pelo atalho que havia feito a muque,
Hércules desembarcou preparado para tudo,
puxou conversa com marujos e pescadores
e logo tinha a ficha completa de meio mundo.

Os bois de Gerião eram guardados no meio da ilha,
bem perto do gado de Hades, sem nenhum muro.
E não precisavam de marcas, eram inconfundíveis
pelo porte, pela força e pelo pelo vermelho escuro.

O rei Gerião acumulou essa maravilha de rebanho
pilhando os melhores animais da vizinhança.
Da cruza do que havia de melhor no mundo
ele conseguiu criar uma nova e mais bela raça.

Fora seu rebanho, o que o rei mais gostava
era de briga. Os animais atraiam forasteiros,
mas dos ladrões não sobrava pedaço grande
e as valentias não davam nem para o cheiro.

No porto, Hércules escutou todas as lorotas,
mas não se fiou apenas naquela lenga lenga.
Oculto em um monte, observou o local do crime
até localizar o verdadeiro xis do problema.

O terreno tinha muitas bocas de caverna
e de qualquer uma delas o cão podia saltar
para pegar pela retaguarda todo aquele
tolo o bastante para enfrentar o gigante pastor.

O caso ali não era tanto de força bruta
mas de paciência, velocidade e precisão.
Era preciso abater Eurition quando estivesse
mais longe das saídas da toca do cão.

Quando chegou a hora não pensou duas vezes
levantou mirando uma das gargantas, sem dó.
Nem deu tempo do guardião ver de onde vinha
já estava levando flecha em seu outro gogó.

Ortros era ainda mais veloz do que se dizia.
Saltou de uma caverna e, como por encanto,
surgiu às costas do herói, que só sobreviveu
graças ao couro invulnerável do leão de Nemeia.

Em menos de um piscar, Hércules recuou
e flechou seis das sete cabeças do monstro.
Esquivou-se da sétima e usando sua clava
a deixou com os miolos moles à mostra.

Quando já reunia o rebanho para viagem
quase caiu com o balanço de um terremoto.
Era o rei gigante que vinha cheio de veneno
para acabar com a baderna em seu pasto.

Do choque da meia tonelada de armas
vinha o estrondo de um exército em movimento
e sua voz tinha a potência impressionante
de milhares de guerreiros avançando juntos.

Gerião trazia nas cabeças três pesados elmos.
Nas mãos direitas carregava uma espada
e duas lanças. Nas esquerdas, três escudos
capazes de resistir à arma mais afiada.

Mas Hércules não ficou impressionado,
apenas com medo de que tanto estardalhaço
espalhasse o rebanho por toda a ilha
e ele tivesse que sair juntando boi a laço.

Em milésimos de segundo calculou certo.
Não adiantava flechar elmo, peitoral ou escudo,
e nem podia deixar o monstro chegar perto.
Mirou os joelhos e Gerião caiu com tudo.

Como as três cabeças raivosas do rei caído
rogassem pragas e o chamassem de bastardo,
livrou-as dos capacetes e moeu uma a uma,
pois sabia que Gerião era poeta, quando calado.

Voltando ao pasto de batalha, notou que Hades
não movera um dedo para defender o rei vizinho.
Bastava agora embarcar a boiada na taça do sol
e navegar com o décimo trabalho na bagagem.

Partiu confiante, mas o retorno foi outro parto.
Hércules, para confundir os espiões de Hera,
teve de voltar por caminho longo e cheio de feras,
monstros, ladrões, ogros e todo tipo de chato.

Para espantar o tédio, exercitou seu ofício.
Libertou cidades para não perder a viagem,
livrou o povo de feitiços, maldições e tiranias
e muitos templos surgiram em sua homenagem.

Certo dia, o rio Estrímon negou-lhe passagem
e quase levou a manada para os domínios de Hades.
Hércules fez nele um caminho de pedras enormes
E nunca mais as águas voltaram a ser navegáveis.

Hera, vendo que Hércules não se abalava,
enlouqueceu os bois com nuvens de mutucas
de mandíbulas fortes, afiadas, serrilhadas,
que se cruzam como as lâminas de uma tesoura.

Muitos milhões daquelas moscas-de-cavalo
espalharam o rebanho pelas margens do Egeu.
Hércules conseguiu reunir alguns para remédio
e entregou as reses restantes a Euristeu.

Cheio de medo pelo precedente aberto
com a morte de mais um rei por Hércules,
o rei ofereceu a Hera os belos bois em sacrifício
e ela os aceitou, ao contrário do touro de Creta.
Hércules deixou Euristeu falando com as paredes
e saiu para o carnaval que o povo fazia na calçada.
Hera anotou mais esse desaforo na sua conta
e foi visitar o inferno, preparando a próxima cilada.

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