Quem acompanha o forte movimento teatral que existe no Brasil, sabe que a Companhia de Teatro Os Satyros é uma de suas referências. Mas pouca gente conhece, acredito, as profundas relações da companhia paulistana com Curitiba e o Paraná.
Os Satyros é um grupo com linguagem essencialmente experimental, de repertório rico em abordagens críticas, fundada por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, em 1989. Desde sua infância, no interior do Paraná, Ivam Cabral já apresentava interesse pelos palcos, mas foi aos 20 anos que começa seus estudos em Artes Cênica pela PUC/PR. Então no final da década de 80, decidido a viver seu sonho de estruturar um grupo teatral, muda para São Paulo, onde conhece Rodolfo. Naquele período no final dos anos 80, Ivam via que a cena teatral estava voltada para o teatro formal, porém para ele, seu palco deveria ser visceral, sentia a necessidade de quebrar a relação palco-plateia (do palco italiano), voltando-se à pesquisar novas linguagens espaciais e ter uma relação mais intensa com o teatro. Cabral na contramão aos atores de sua época, dedicados por vezes só à fama, sentia necessidade de estudar e pesquisar sua profissão, via o teatro como arte pura e queria fazer parte da história de seu tempo.
Rodolfo García Vázquez, por sua vez, em meados dos anos 80 inicia seu estudo teatral na Teatro Escola Macunaíma, em São Paulo, e logo desenvolve o interesse pela direção. Sua primeira incursão nesta função, em 1988, foi com “Y asi se baila el tango”, montada com seus colegas de escola, e quando funda seu primeiro núcleo teatral o Grupo Ava Gardner.
No dia 24 fevereiro de 1989, o ator recém-chegado à São Paulo, Ivam Cabral, se candidatava ao papel de protagonista para a montagem: “Um Qorpo Santo”, dirigida por Rodolfo García Vázquez. Nascia então, deste despretensioso teste, uma afinidade potente, ideológica e estética Vázquez-Cabral. O duo buscou algum nome para chamar de seu, para elucidar as vontades teatrais do grupo que estava por nascer, porém nada parecia corresponder ao que pensavam sobre teatro. Então encontraram a palavra Satyros, que trazia ares de irreverência, liberdade, em uma sinestesia tresloucada e de cortejo à Dionísio.
Ivam e Rodolfo se debruçam sobre seu novo projeto, decididos a aprofundar as pesquisas sobre a Commedia Dell’Arte. Nasce assim a primeira montagem da Companhia Teatral Os Satyros: “Aventuras de Arlequim”, um espetáculo infantil montado no Teatro Zero Hora, em setembro de 1989. Nesta montagem, Ivam Cabral ganha o seu primeiro prêmio de melhor ator de teatro infantil, pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e na sequência o texto de “Aventuras de Arlequim” é indicado ao Troféu Mambembe, dando um novo respiro ao grupo recém formado, que estava galgando seu espaço na cena paulistana.
Em 1990, em meio ao Governo Collor e a crise do confisco da poupança, o grupo de jovens se vê abalado financeiramente e decide radicalizar em suas pesquisas, com a montagem de uma peça baseada no Marquês de Sade. Para a trupe ficou claro que aquele era o momento em que deveriam denunciar, mexer com as estruturas morais, sociais e políticas. Elaboraram assim uma estratégia de choque. Em junho de 1990 estrearam “Sades ou Noites com os Professores Imorais”, adaptação de textos do Marquês de Sade, no Teatro Guaíra, em Curitiba. Nesta montagem o grupo indignado, urina em cena, mostrando as partes íntimas como forma de protesto. Antes da estreia, os integrantes elaboraram uma rota de fuga para caso houvesse alguma manifestação hostil do público, e realmente depois deste dia a vida do grupo não seria mais a mesma. Em setembro do mesmo ano, estreiam a peça em São Paulo, no Teatro Bela Vista, onde assumiram a revitalização do local. A partir dali compreendendo a necessidade de ter um lar para se fixar e para ser livre, fazem do Teatro Bela Vista sua nova residência. Em 1991, estreiam “Saló, Salomé”, montagem surrealista e ritualística, que desenhava de vez a estética dos Satyros. Nesta peça, 90% do elenco era composto por pessoas que nunca haviam subido no palco.
Iniciaram assim um período de forte intervenção cultural que duraria até o ano de 1992, com a transferência da companhia para a Europa, onde participaram de festivais em Portugal, na Espanha, na Escócia, na Inglaterra e na França. Foram considerados pela crítica internacional como “a sensação do Edinburgh Fringe Festival”, e após denúncias da Associação da Moral e Bons Costumes da Escócia, o grupo precisou de segurança policial para continuar se apresentando no Festival. Em 1993, Os Satyros foram a primeira companhia de teatro ocidental a se apresentar na Ucrânia, após a queda do Muro de Berlim. O grupo foi censurado logo após sua estreia, resultando no cancelamento de toda temporada do espetáculo “Philosophy in the Alcove”.
Em 1994, após a turnê europeia, a companhia decide voltar ao Brasil, e se apresentam em Curitiba e no Rio de Janeiro, mas devido ao baixo público carioca, o grupo frustrado, opta pela volta para Lisboa, onde montam ”Sapho de Lesbos” e desenvolvem um curso de teatro de excelente repercussão. A companhia manteve sua sede em Lisboa até o ano de 1999. Paralelamente em 1995, Ivam Cabral decide criar na capital paranaense uma sede para Os Satyros, pois a companhia tinha contato estreito com a produção cultural local e viram a possibilidade de participar de editais de incentivo municipais. Então estabelecia-se este eixo Curitiba-Lisboa.
Em 1999, em busca de novos desafios e de um espaço de maior ação, o grupo, que havia sido criado em São Paulo, percebendo a ligação afetiva com a cidade, decide tentar se estruturar por lá. Porém a visão já era clara: não queriam apenas um teatro para se apresentar, queriam uma verdadeira sede, um projeto maior. No início dos anos 2000, após encontrarem uma espécie de sala, com aluguel muito barato, num lugar super deteriorado, e sentirem a sensação de “Pode ser aqui”, ocuparam sua nova sede. O local inicialmente se encontrava inabitável, em decadência extrema, abandonado, com piso de terra, sem paredes, sem instalação elétrica. Então prontamente o grupo iniciou uma reforma. No dia 1° de dezembro de 2000, inauguravam o Espaço dos Satyros, na Praça Roosevelt. Instaurando ali um novo capítulo na história da companhia, de significativa ação cultural: passaram a se dedicar, poética e socialmente, à complexidade do local, integrando parte do movimento de revitalização do centro histórico de São Paulo. Outras companhias de teatro se instalaram na Praça Roosevelt, como a Cemitério de Automóveis, do nosso Mário Bortolotto, que, por sinal, levou uns tiros lá mesmo, numa alta madrugada, mas esta é outra história.
O grupo se via na necessidade de nomear os processos do trabalho que estavam elaborando, e então sintetizaram a estrutura do Teatro Veloz, uma metodologia com série de exercícios destinados ao treinamento do ator. Segundo o Anuário de Teatro de Grupo da Cidade de São Paulo – 2004, “desde o período passado em Portugal, Os Satyros vem desenvolvendo sua própria teoria e práxis teatral, chamada Teatro Veloz”. Graças a uma pesquisa ininterrupta de soluções estéticas, elaboraram um teatro crítico em processo contínuo de reconstrução e que usa como principais fontes de referência teóricos como Antonin Artaud, Nietzsche, Adorno e Walter Benjamin. No ano de 2004, juntou-se ao grupo a presença significativa do ator, teórico e ex-crítico teatral Alberto Guzik. Em 2014, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) reconhece Os Satyros como Patrimônio Imaterial da cidade de São Paulo.
Inquietos, como sempre, agora Os Satyros apostam na Inteligência Artificial e estrearam recentemente, em São Paulo, a “Peça Para Salvar o Mundo” sem atores no palco. A iniciativa ganha tradução mais radical por meio desta obra, idealizada e escrita por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e encenada com um avatar no lugar dos atores. “Se a gente não tiver uma relação com a tecnologia, ela vai nos engolir. Então, temos que engolir ela antes”, diz Vázquez. “Temos que engolir a tecnologia e não a negar, porque ela a cada dia invade mais a nossa vida. E, se a gente não se relacionar com ela, vamos nos tornar obsoletos”.
A interação ocorre em tempo real, por meio do avatar manipulado pela atriz Mariana Leme, fora de cena o tempo todo, e pelo designer Thiago Capella, da Circulus Ópera, produtora dedicada à arte com inteligência artificial. Ao longo da encenação, o avatar assume formatos de robô, mulher, homem, criança, velho e conversa com voluntários da plateia sobre questões relacionadas ao futuro.
“Estamos aprendendo a fazer esse teatro novo e uma das questões é que preciso estar atenta a tudo. Por exemplo, preciso criar desenhos físicos do meu corpo como se fosse um robô”, explica a atriz. As movimentações e as falas de Mariana são captadas por equipamentos, em uma sala distante do palco, e transformadas pela inteligência artificial no avatar que dialoga com o público.
Vázquez, um pesquisador do uso da tecnologia no teatro, ouve questionamentos da classe artística, mas reivindica o direito de experimentar e lembra o histórico de inovações nas artes cênicas. “Desde as civilizações egípcia, grega e indiana, todas as tradições teatrais usaram tecnologias”, afirma, citando técnicas de som e iluminação como exemplos. “Não é mais um objeto externo. Somos nós fazendo parte da tecnologia. É um susto, mas não é um susto só do teatro, é um susto da sociedade que, ao mesmo tempo, tem um fascínio e um medo do que isso vai fazer conosco.”
Os Satyros apostam na parceria com o mundo digital desde 2009, por meio de pesquisas sobre o potencial das tecnologias para a estética do teatro. “Quando iniciamos nossa pesquisa sobre teatro ciborgue, há 16 anos, só tínhamos uma certeza: o teatro não poderia seguir alheio à revolução tecnológica que já estava em curso”, diz Ivam Cabral. O grupo começou explorando o uso de celulares, internet e salas de bate-papo na peça “Hipóteses para o Amor e a Verdade”, sobre pessoas que vivem solitárias no centro de São Paulo. A pesquisa continuou nos espetáculos “Cabaret Stravaganza”, de 2010, e “E Se fez a Humanidade Ciborgue em Sete Dias”, em 2014, em que foram usados aplicativos de celular e a “tecnopresença” —a presença em algum espaço-tempo por meio do uso da tecnologia.
Na época da pandemia, a companhia mergulhou no teatro digital e apresentou 17 peças nesse formato entre 2020 e 2022 e, agora, avança para a encenação sem a presença de atores no palco. “Fomos muito atacados quando fizemos o teatro digital no Zoom. Muita gente falou que não é teatro. Brigaram comigo. Eu falei ‘deixa eu fazer isso? Posso fazer?'”, recorda Vasquez. A pesquisa com avatares em cena é parte de um curso que Rodrigo ministra na escola de teatro Ernst Busch, na Alemanha. “A gente não deve ter medo do futuro”, defende o diretor.
Em 1928, o modernista Oswald de Andrade propôs, com o “Manifesto Antropófago”, devorar as influências das vanguardas europeias e as transformar em algo brasileiro, dando origem a uma insurreição contra a colonização da cultura nacional. Num trecho do Manifesto, Oswald já dizia: “a fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue”. Quase cem anos depois, a companhia Os Satyros assume a inspiração oswaldiana e, diante do que chama de expansão vertiginosa das novas tecnologias, propõe o “Manifesto Tecnofágico” —um olhar crítico e de afirmação da potência humana, e brasileira— sobre as máquinas:
1. Nosso ponto de partida é o Brasil —mas um Brasil em transe tecnológico.
Aqui, nesse chão híbrido tropical, emergem contrafeitiços, gambiarras, melodias, formas de resistência que nos fazem dançar com as máquinas.
2. Somos criadores da máquina, mas como artistas nunca seremos suas criaturas.
A técnica nasce de mãos humanas, de corpos sensíveis. Somos atravessados pelas máquinas, mas nunca vamos nos submeter a elas.
3. Devorar não é copiar: é transmutar.
Antropofágicos, sim —comemos as energias e pulsões de seres humanos e máquinas, dos seres da natureza e das programações computacionais, e seguimos além— em direção a uma terra prometida e nunca alcançável.
4. Toda técnica é cosmológica.
Não existe tecnologia neutra, universal, fora das relações de poder. O algoritmo é uma forma de poder. A arte entra no combate contra os algoritmos.
5. Nada é mais humano do que um robô tupiniquim.
Toda inteligência artificial é fruto de um esforço coletivo da humanidade. Nossa tecnologia tupiniquim carrega o peso de toda a violência de nossa história. Reconhecer isso nos liberta para construir uma tecnoarte viva.
6. A estética do pensar é nossa arma secreta.
Os artistas podem subverter a lógica dos algoritmos dominantes. Pensar como artista não é calcular: é criar formas e transgressões que escapam ao tecnocapitalismo.
7. Recusar o destino não é recusar o futuro.
Enfrentamos o império do algoritmo e das programações não com isolamento, mas com desvio, glitch, dança e contraprogramação. Queremos futuros múltiplos, mestiços, indeterminados.
8. Somos tecnoxamãs, tecnopoetas, tecnodesviantes.
Comunicamos com o digital como quem canta para espíritos —não para dominá-los, mas para coexistir com suas forças.
9. A cosmotecnologia é parte da cosmopolítica.
Somente através de uma arte cibernética podemos confrontar o tecnocapitalismo. Buscamos uma arte que pulsa com os circuitos, que tensiona o tempo, desprograma os protocolos, e inventa formas de existir em meio ao tecnofeudalismo cada vez mais opressivo.
10. O teatro é nossa máquina de presença —e de desprogramação.
O teatro é laboratório de futuros: lugar onde a técnica encontra o corpo, e o corpo, em sua fragilidade, reencena o mundo.
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