Doze anos depois da morte do poeta concretista Décio Pignatari e a pouco mais de dois anos do seu centenário de nascimento, o relançamento de seu livro “Poesia Pois É Poesia” recupera a sua importante obra. O livro abrange todas as faces da linguagem de Pignatari e demonstra sua destreza nos poemas em versos, antes e depois do surgimento dos manifestos da poesia concreta. Ele apontou a crise do verso, mas, desde jovem, era exímio poeta. “O Carrossel” (1950), livro de estreia, incorporou o poema “O Lobisomem” (1947), cuja estranheza das imagens, do ritmo e do vocabulário despertou o interesse de Augusto de Campos. “Encontrei um cachorro na rua:/ ‘Ó cachorro, me cedes tua pele?’/ E ele, ingênuo, deixando a cadela/ Arrancou a epiderme com sangue/ Toda quente de pelos malhados/ E se foi para os campos de lua.”
Depois de conhecê-lo, Augusto o apresentaria ao irmão Haroldo, em São Paulo. Era a gênese do grupo Noigandres, que sustentou intervenções renovadoras dos horizontes formais (semânticos, sonoros, visuais). Com o movimento concretista, o Brasil esteve pela primeira e única vez na vanguarda da criação literária mundial. O trio ampliou o repertório teórico do debate poético e se empenhou em verter para a língua portuguesa poemas de Rimbaud, Apollinaire, Mallarmé, Paul Valéry, Ezra Pound, Cummings, Emily Dickinson, entre outros, além de elevar Sousândrade, Pedro Kilkerry, Oswald de Andrade e Pagu, ao cânone geracional.
Pignatari nasceu em 1927, em Jundiaí (SP), e viveu até os 25 anos em Osasco (SP). Após dois anos na Europa (entre 1954 e 1956), fixou-se na capital paulista. Cansado “da feiúra e do caos urbano de São Paulo”, mudou para Curitiba (pouca gente sabe), onde viveu desde 1999, por dez anos. Aqui foi professor na Universidade Tuiuti do Paraná e produziu seus últimos escritos. No texto “Ecos de Pignatari (ou) Décio: Livre Pensador; Polêmico e Irreverente”, Elza de Oliveira Filha conta que:
“Anuschka Reichmann Lemos, aluna de Pignatari no Programa de Pós-Graduação da Tuiuti, lembra que ele justificava a opção pela capital paranaense por razões estéticas: “Dizia que Curitiba é uma cidade cuidada nos mínimos detalhes, quando andava pela periferia, numa lojinha qualquer observava uma logo, uma marca própria”. Também enaltecia o fato de morar junto a um bosque, o João Paulo II, e poder caminhar pela área respirando ar puro.
“Uma outra atração que prendeu Pignatari à cidade foi descoberta por intermédio da própria Anuschka: uma ala de consulta especial, existente na biblioteca central da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com milhares de títulos, muitos dos quais raros e originais, de autoria ou versando sobre a obra de Søren Aabye Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês a cujos textos Pignatari dedicou seus estudos nos últimos anos de vida. O acervo havia sido doado pelo avô da então aluna do mestrado, Ernani Reichmann, professor aposentado da UFPR e um reconhecido especialista no pensamento kierkegardiano. “Uma vez, por volta de 2005, Décio fez uma viagem de estudos para a Dinamarca e voltou desgostoso, dizendo que pouca coisa se encontrava de Kierkegaard nas livrarias e bibliotecas dinamarquesas. Depois de conhecer a ala especial da universidade, passou a dedicar todas as suas tardes de terças-feiras àquelas obras”, lembrou Anuschka.
“Identificado por vezes como machista, Décio Pignatari fazia questão de comemorar seus aniversários jantando em bons restaurantes com pequenos grupos de amigos. No final da festa, invariavelmente acompanhava a canção “Peixe Vivo”, executada em sua homenagem. O mesmo ocorreu na solenidade de despedida organizada pela Universidade Tuiuti em 2010, quando um coro de centenas de vozes cantou o clássico. Ele morreu em São Paulo, vítima de insuficiência respiratória em consequência do mal de Alzheimer, no dia 2 de dezembro de 2012, aos 85 anos.
“Em maio de 2007, Pignatari concedeu entrevista à revista Interin, da Universidade Tuiuti e falou sobre o projeto de pesquisa ‘Cibermídia, cibermassa’, que desenvolvia na ocasião. Fazendo uma alusão à popular Lei de Murphy (segundo a qual o lado negativo tenderá a prevalecer no desfecho de um evento), Pignatari formulou a Primeira Lei de Comunicação Globalizada – a saber: “A uma cibermassa mercadológica corresponde uma cibermidia. E vice-versa: A uma cibermidia tende a corresponder uma cibermassa. Ou seja: as novas tecnologias surgem e se aproximam para atender e suscitar a expansão do mercado de usuários que, por sua vez, ciberneticamente, suscitam o surgimento e a expansão das novas tecnologias midiáticas”.”
Num artigo para a Folha de São Paulo, Claudio Leal, jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP, fala mais sobre “Poesia Pois É Poesia”:
“Dos três mosqueteiros paulistas, Pignatari tinha a prosa crítica mais beligerante e espinhenta. “decius é o cão/ pignatari – o canil”, escreveu em “Hidrofobia em Canárias”, de 1951, com a força expressiva reincidente nos ensaios. Pelo capricho da reedição, “Poesia Pois É Poesia” tem o potencial de aproximar jovens poetas do centro nervoso da criação de Pignatari, elástico em suas experiências posteriores à fase crucial do movimento.
“Seu manifesto de poesia concreta apareceu em novembro de 1956 com a proposta de “uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular”, apontando para a “transição do verso ao ideograma”. Sua arte poética tem feições variadas e envolve poemas participantes, semióticos e líricos. Na linguagem, a realidade: ele reflete a sociedade de consumo, o autoritarismo, a revolução, as desigualdades, a Guerra do Vietnã e os artifícios da publicidade.
“A expressão lírica está no início e no fim de sua caminhada de poeta pactuado com o demônio da dissidência. “Apenas o amor e, em sua ausência, o amor,/ decreta, superposto em ostras de coragem,/ o exílio do exílio à margem da margem”, diz em “Noção de Pátria”, de 1951.
“A nova edição aprofunda a presença espacial de “terra” (1956), “LIFE” e “beba coca cola” (1957), um dos mais célebres poemas concretos, “caviar” (1959) e “Cr$isto é a solução” (1967). O poeta e designer André Vallias se inspirou nas publicações dos anos 1950 e utilizou no projeto gráfico a fonte favorita dos concretos, Futura. Além de apresentar o livro, Augusto de Campos dividiu a supervisão editorial com Vallias, que contou com colaborações de Omar Khouri e Walter Silveira.
“”O que sempre afirmei é que o Décio foi o mais inquieto, imprevisível —como acentuou o Haroldo— poeta da minha geração e de muitas outras, além de um grande artífice”, diz Augusto de Campos, 93. “Certamente ainda não foi bem compreendido, porque só se tem acentuado, em geral, a sua poesia da fase concretista, quando a sua competência como artesão do verso, tanto na fase pré como pós-concreta, é menos conhecida.”
“”Seu temperamento crítico e agressivo terá contribuído para isso. Mas também a maior dificuldade dos seus textos, dado o caráter radical e complexo de sua poesia.”
“Augusto propôs a reedição de Pignatari à Companhia das Letras. Encerra, assim, todo um ciclo de lealdade ao amigo. “Nunca duvidei da alta qualidade de sua poesia. Posso afirmar que foi o poeta brasileiro que mais me influenciou, desde ‘O Lobisomem’, texto que me impressionou assim que publicado na imprensa em 1948 por Sérgio Milliet, como tudo o que construiu ao longo de toda a sua poesia experimental. Era às vezes de difícil convívio, e nem sempre concordamos em tudo.”
“”Mas a minha admiração pelo seu trabalho e a sua inteligência nunca se apagou. Para reunir numa só frase John Cage e Thelonious Monk, parecia estar certo mesmo quando estava errado… e a nossa amizade perdurou até os últimos dias.”
“…O poema “Interessere”, da década de 1980, enfeixa a duradoura arte do avesso de Décio Pignatari. “Na flor interessa o que não é flor/ Em Joyce interessa o que não é Joyce/ No concretismo interessa o que não é concretismo.”
“”É verdade, o ‘concretismo é frio e desumano…’. Haroldo traduziu Homero. Décio, Dante. E eu, Arnaut Daniel. Ninguém se definiu melhor do que o próprio Décio: um ‘designer da linguagem’. O resto é poesia”, diz Augusto de Campos.”
Apesar de ter vivido por dez anos em Curitiba, não conheço nenhum poeta daqui que conseguiu estabelecer uma relação com Pignatari, o que foi uma grande perda de oportunidade de evolução para a cultura local. Certamente por seu temperamento difícil, como salientado acima por Augusto de Campos. Mas quem pode reclamar de temperamentos difíceis na terra de Dalton Trevisan?
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