Em 1984, quando tínhamos acabado de virar punks, minha turma foi aturdida por uma bomba atômica sonora intitulada “Purple Rain”, composta por um americano chamado simplesmente de Prince. Lembro de ficar ouvindo a música, e mais tarde o álbum de mesmo nome, por horas. Não tinha como não se render ao talento do cara.
Para felicidade dos seus fãs, ficamos sabendo que a Netflix estava rodando uma série contando a vida do gênio, morto aos 57 anos, em 2016, vitimado por uma dose acidentalmente fatal de fentanil, opioide normalmente usado para aliviar dores. Mas uma matéria publicada, em 08/09, pela revista do The New York Times acabou com nossa alegria.
Segundo a longa e bem apurada reportagem de Sasha Weiss, o documentarista Ezra Edelman, oscarizado pela série documental “O. J.: Made in America”, estava impedido de exibir o documentário de nove horas de duração sobre Prince.
A excelente revista eletrônica Farol, de 13/09/24, em artigo de Zé Emilio Rondeau, explicou em detalhes o imblóglio:
O motivo do impedimento? Uma mudança na representação legal do artista anulou a permissão dada cinco anos atrás pelos então detentores dos direitos de Prince ao realizador para a feitura do filme – que cedia a Ezra o “corte final”, ou seja, a decisão incontestável quanto ao que entrava ou não no documentário –, e os novos gestores do espólio do artista agora pedem uma série de mudanças no projeto, já pronto. Em especial, pleiteiam a eliminação de partes que consideram “sensacionalistas”, referindo-se a sequências onde são levantados os casos de abuso físico e emocional cometidos por Prince, com base em diversas entrevistas feitas com colaboradores, amigos e namoradas.
Enquanto essas questões não forem resolvidas, o documentário permanecerá na gaveta, por tempo indeterminado.
No dia seguinte à publicação da matéria, duas das companhias hoje responsáveis pelos direitos legais de Prince – Primary Wave Music e Prince Legacy – defenderam-se publicamente, emitindo um comunicado no qual declaravam estar trabalhando “para resolver as questões relativas ao documentário para que a história (do artista) possa ser contada de maneira factualmente correta, sem sensacionalizar sua vida”.
A Netflix também se pronunciou, através de uma nota enviada ao jornal: “Esse projeto de documentário mostrou-se tão complexo quanto o próprio Prince. Viemos catalogando a vida de Prince e trabalhamos duro para apoiar a série de Ezra. Mas ainda existem questões contratuais significativas com o espólio (do artista) que estão atrasando o lançamento do documentário”.
O que configuraria um documentário sensacionalista? É aquele que expõe escândalos – quanto mais privados e picantes, melhor – e comportamento impróprio apenas para chocar, sem contexto. O documentário de Edelman mergulha fundo no trabalho, na genialidade, mas também no lado sombrio e nos demônios de Prince. Ele traça um retrato do artista e do homem onde convivem sua qualidade sobre-humana para a música – um dos trechos mostra o caminho até se chegar à versão definitiva do hit “When Doves Cry”, sem contrabaixo, um anátema para o pop! – com suas inseguranças, suas fraquezas e seus defeitos.
Veja o clipe da música:
Nisso, entram, por exemplo, agressões físicas a uma ex-namorada, o controle obsessivo exercido sobre a vida de outra, e o descaso com que tratou a (hoje ex) esposa quando o filho único do casal morreu logo após o parto.
São esses alguns dos muitos elementos que os representantes atuais de Prince listaram num documento de 17 páginas com tudo que deveria ser modificado no documentário.
Há, por outro lado, quem enxergue nessa combinação de elementos – o êxtase da criatividade e o horror do pior do ser humano – justamente a qualidade do documentário de Ezra.
“É um dos únicos trabalhos que vi que chegam perto da experiência de se sofrer junto, através e ao lado de um gênio”, reagiu Wesley Morris, crítico do The New York Times.
Sasha Weiss gastou um ano e meio preparando a matéria para o jornal nova-iorquino, com base em entrevistas feitas com mais de 20 pessoas. Ela acompanhou de perto o trabalho de Edelman e é uma das poucas pessoas a ter visto o documentário pronto, do começo ao fim. Como poucos, é capaz de descrever com autoridade o produto final.
“Pensei se ver essas imagens configurava uma profanação”, escreveu Sarah, referindo-se às sequências mais sombrias do documentário, que incluem a dependência dos analgésicos que acabariam matando Prince. “O mundo inteiro precisa saber todos os tormentos privados, feios, desse gênio? Mas então percebi que a principal sensação provocada (pelo documentário) era de reverência”.
“O filme mostra, de um modo mais emocionante e convincente do que qualquer outra coisa que já vi, a maneira como a vida pode iluminar a arte – e como, ainda assim, uma coisa é tão separada da outra”, Weiss conclui. “Os hematomas e a confusão de toda a experiência (da vida) são transfigurados pelo artista até virar algo coerente e coeso: um presente perfeito”.
Prince Rogers Nelson era filho de pais músicos: John L. Nelson e Mattie Shaw. O pai tocou num trio de jazz chamado Prince Rogers Trio, daí a inspiração para o seu nome.
Foi um cantor, compositor, músico, produtor, ator e dançarino norte-americano. Lançou 39 discos em vida, e sua música mistura diversos gêneros como o funk, R&B, soul, jazz, rock, pop e hip hop. Prince teve bastante contato com instrumentos desde pequeno. O primeiro instrumento que ele aprendeu a tocar foi o piano, com apenas sete anos de idade, herdado de seu pai, quando este se separou de sua mãe. Com o passar do tempo aderiu a diversos outros, como o baixo, bateria, percussão, guitarra e teclados eletrônicos. Isto lhe permitiu, já em seu primeiro disco, intitulado “For You”, gravar tudo sozinho. Além de tocar todos os instrumentos, ele também compôs a maioria das letras, bem como produziu o álbum. Esse padrão estendeu-se durante toda a sua carreira: ele não permitia que ninguém interferisse no seu processo criativo. Seguiu compondo, produzindo, tocando e ditando as regras em todos os seus trabalhos artísticos. Gravou compulsivamente a maior parte da vida, e sempre esteve trabalhando à exaustão em seu estúdio pessoal em Paisley Park. Por causa disso, Prince ganhou fama de “workaholic” e maníaco por detalhes.
Seu álbum de maior sucesso foi Purple Rain, de 1984, que veio acompanhado de um filme de mesmo nome. Purple Rain vendeu mais de 21 milhões de cópias e ajudou a fermentar a influência de Prince na década de 1980 como um dos maiores ícones da música pop norte-americana. Nos anos 1990, Prince teve um período de baixa popularidade, devido principalmente às brigas com sua gravadora na época, a Warner Bros. Ele acreditava que a gravadora estava usando seu nome, que lhe havia sido concedido ao nascer, como uma “máquina de fazer dinheiro”. Além de que, também não possuía os direitos autorais de sua música, e tudo isso levou-o a mudar seu nome para um símbolo impronunciável ( ). Em 2000, voltou a usar o nome Prince, após seu último contrato com a gravadora expirar. Voltou com mais forças em 2004, lançando o álbum Musicology. Também foi introduzido ao Rock and Roll Hall of Fame, e se apresentou no Grammy Awards junto à cantora Beyoncé. O álbum “Musicoloïgy” ficou em primeiro lugar nas paradas em cinco países. Outros fatores que marcaram a carreira e a vida de Prince durante a década foram as várias turnês multimilionárias, o seu show no intervalo do Super Bowl em 2007 e a sua conversão no grupo religioso Testemunhas de Jeová.
Prince é considerado um dos maiores ícones da música de todos os tempos. É aclamado pelos críticos, que elogiam o seu trabalho pela versatilidade em compor, tocar, cantar e dançar, e pelas suas performances, descritas como sendo algo extraordinário. Seu trabalho tem influenciado diversos músicos especialmente da black music norte-americana, como Bruno Mars, Beyoncé e The Weeknd. O público, por sua vez, fez dele um dos recordistas de vendas de discos: foram mais de 100 milhões de cópias vendidas ao longo de sua carreira. Ele ganhou sete Grammys, além de possuir dois álbuns no Grammy Hall Of Fame. Em 2003, a prestigiada revista Rolling Stone colocou Purple Rain em 72° em sua lista de 500 melhores álbuns de todos os tempos, sendo que a revista Time já o tinha classificado em 15°. A Time anexou Sign O the Times’ nesta lista. Em 2008, Prince foi eleito o 30º maior cantor de todos os tempos pela Rolling Stone. Em 2012, Prince foi eleito o 28° maior artista de todos os tempos também pela Rolling Stone, e em 2011, a mesma Rolling Stone ainda o colocaria em 33º em sua lista de melhores guitarristas. A lista foi compilada a partir dos votos de vários outros guitarristas famosos, como Tony Iommi, Eddie Van Halen e Brian May. Prince ainda figuraria na 6° posição em uma lista com o mesmo tema feita pela SPIN, a 14° na lista a Gibson de maiores guitarristas e a 10° na lista da Time. A SPIN ainda incluiria Prince em primeiro lugar na sua lista de ‘maiores frontman’ de todos os tempos. Em 2004, Prince foi introduzido ao “Rock and Roll Hall of Fame”, uma espécie de “museu da música” que perpetua os mais importantes nomes da indústria fonográfica, artistas que de alguma forma tiveram impacto na cultura norte-americana. Em 2006, Prince leva um Globo de Ouro pela canção “The Song Of the Heart”, trilha sonora da animação “Happy Feet”. Levou também um Academy Music Awards, prestigiado prêmio dado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles. Em 2013, Prince foi eleito o segundo melhor artista de se assistir ao vivo pela Rolling Stone.
Em 21 de Abril de 2016, Prince foi encontrado desacordado em sua mansão em Minneapolis. Uma ligação para o serviço de emergência foi feita às 9h43 da manhã, mas os atendentes médicos não puderam reanimá-lo e Prince foi declarado morto devido a uma overdose de fentanil às 10h07. A morte do músico repercutiu no mundo todo, com homenagens de diversos artistas como Stevie Wonder, Elton John, Paul McCartney, Mick Jagger, Madonna e Lenny Kravitz. Seu corpo foi cremado numa cerimônia para amigos mais íntimos e parentes. Como não deixou descendentes, a fortuna de Prince, estimada em 300 milhões de dólares, foi dividida entre seus seis irmãos.
Na obra Rememberings, a cantora Sinéad O’Connor relembrou duros capítulos que compreendem não só a carreira, que rendeu a icônica versão de ‘Nothing Compares 2 U’, mas também a turbulenta vida íntima. No livro, O’Connor descreve uma agressão cometida por Prince. Segundo a cantora, tudo aconteceu quando ele a chamou para ir até sua mansão, localizada em Hollywood.
Já no local, ele chamou a atenção de Sinéad por falar palavrões durante participações em entrevistas. Desconfortável, a cantora também descreveu outra situação que a incomodou. O astro a ofereceu sopa, e embora tivesse recusado o prato inúmeras vezes, o mordomo recebeu a ordem de servir-lhe a refeição.
No entanto, a situação realmente saiu de controle durante uma ‘briga de travesseiros’. A artista diz que apesar do tom doce de Prince, ela acabou sendo atingida por algo que fora inserido dentro da fronha do travesseiro. “Ele sugeriu ingenuamente a luta apenas para colocar algo duro no travesseiro dele e me acertar”, escreveu ela na obra.
Assustada, ela fugiu da casa do cantor. Já no meio da noite, se deparou com o artista a perseguindo num automóvel. Ele, ao largar o veículo, acabou por perseguir Sinéad enquanto corria numa estrada.
“Você tem que ser louco para ser um músico,” disse a cantora. “Mas há uma diferença entre ser louco e ser um violento abusador de mulheres”.
Em 2019, a cantora já havia falado sobre o episódio em entrevista ao programa Good Morning Britain. “Foi uma experiência muito assustadora. Ele me chamou para sua casa em Los Angeles e fui sozinha. Ele ficou desconfortável com o fato de eu não ser uma de suas protegidas”.
Este é um exemplo do lado sombrio de Prince que o diretor do documentário terá que cortar para que consiga levá-lo ao ar.
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