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27/04/2024



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Quem é quem

 Quem é quem

No lugar da costumeira resenha de livro que faço nas segundas quintas-feiras de cada mês, vou resenhar um dos álbuns que mais toquei nos toca-discos da vida: “Quem é quem”, de João Donato. Na foto acima, Donato segura o seu cultuado vinil.

 

Na verdade, o disco era de Aparecido Batista, o famoso compositor da “Marcha do Carequinha” tocada pela Contrabanda. Eu dividia com Batista um apartamento tipo república estudantil no Cristo Rei e foi lá que escutei pela primeira vez a obra prima de Donato. De tanto ouvir, fiquei com vontade de assisti-lo ao vivo e numa das diversas vezes que fui a São Paulo, li num jornal que ele ia tocar no auditório do Masp naquele domingo à tarde do início dos anos 80. Fui pra lá correndo, bendizendo a vida cultural de SP. Quando cheguei, havia uma longa fila na bilheteria e pensei: só aqui pra ele ter uma plateia tão grande, se fosse em Curitiba não iria ninguém, já que Donato estava num relativo ostracismo na época. Quando chegou a minha vez de comprar o ingresso, me informaram que a fila era para a sessão de cinema, o show do João Donato seria no auditório ao lado. Entrei e vi um monte de cadeiras vazias: só havia umas seis pessoas pra assistir o show. Ficamos mais de meia hora esperando a chegada do pianista. Anos mais tarde Donato falou sobre sua concepção de tempo: “o relógio pra mim não tem números; é um circulo que gira sobre si mesmo, como a Terra, como o Sol”. Então ele finalmente aparece todo desenchavido e confessa que só estava ali porque o empresário o obrigou a entrar no palco. Na noite anterior, tinha encontrado com o Luiz Melodia, que estava com um problema sério de alcoolismo, e ficou tentando convencê-lo a parar de beber até de manhã. Naquele momento, estava curtindo uma puta ressaca, mas ia cumprir o compromisso, apesar de não se recordar da maioria de suas letras. Prontamente, duas fãs subiram ao palco e sentaram ao seu lado no piano pra lembrá-lo das canções. Por incrível que pareça, foi um dos melhores shows que vi/ouvi na vida, graças ao carisma e genialidade de João Donato.

 

A maioria das músicas era do disco “Quem é quem”, que é o décimo álbum de João Donato, editado em 1973 pela gravadora Odeon com a produção de Marcos Valle e de Milton Miranda. O disco apresenta pela primeira vez a voz de Donato, uma vez que sempre foi mais instrumentista do que cantor, e marcou a volta do pianista ao Brasil depois de dez anos morando nos Estados Unidos. Traz as canções “Terremoto”, “Chorou, chorou” (ambas com letra de Paulo César Pinheiro), “Até quem sabe” (com Lysias Enio, seu irmão caçula), “Cadê Jodel?” (com Marcos Valle) e “Nãna das Águas” (com Geraldo Carneiro). Até Dorival Caymmi mandou uma canção inédita, “Cala a boca, Menino”. Em carta enviada a João Gilberto, em 13 de setembro de 1973, Donato não escondeu o entusiasmo: “É o meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo que demorou, o que demonstra o máximo cuidado com que tudo aconteceu. E o resultado é um disco que eu simplesmente acho adorável”.

 

O disco nasceu após Donato ter recebido de Patrícia, sua então esposa, o pedido de divórcio. Ela deixou a casa vazia – ficou apenas o piano – e levou a filha Jodel junta. A tocante “Cadê Jodel?”, aliás, é minha música preferida do álbum. Após o divórcio, Donato passou alguns dias a mais nos Estados Unidos e voltou para o Rio de Janeiro no Natal de 1972, quando se encontrou com Agostinho dos Santos – cantor e amigo do pianista, que sugeriu a ele a ideia de botar sua voz num próximo disco, e foi assim que nasceu “Quem é quem”. Segundo João, foi um corre-corre para buscar parceiros para as composições: “Como eu nunca tinha feito música com letra, decidi não trabalhar em conjunto com os letristas, como faziam Tom e Vinicius. Só distribuí as melodias.”

 

Quando perguntou aos executivos da Odeon sobre a promoção do disco após as primeiras tiragens saírem, disseram que não haveria e então ele ouviu a sugestão do sambista J. Canseira de subir no outeiro da Igreja da Glória para lançá-lo. Donato não pensou duas vezes: chamou a jornalista Paula Saldanha para fazer uma cobertura do lançamento e arremessou uma caixa de discos do alto do morro. “Quem é quem” não teve grandes vendagens mas tornou-se cult, tanto que anos depois em 2007, a revista Rolling Stone brasileira decidiu colocá-lo na lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasileira no 90º lugar. De acordo com a revista “o disco é um reencontro de Donato com o samba-jazz, envenenado por seus experimentos elétricos no exterior”, e além da produção de Valle, tem os arranjos de Dori Caymmi, Lindolfo Gaya, Laércio de Freitas e Ian Guest, além do próprio Donato em algumas faixas.

 

Em 2008, “Quem é Quem” foi tema de programa inteiramente dedicado a ele pelo Canal Brasil, apresentado por Charles Gavin; e de livro escrito pelo produtor e músico Kassin. Ouça aqui o álbum completo.

 

Os músicos participantes foram Hélio Delmiro (guitarra), Maurício Einhorn (harmônica), Lula Nascimento (bateria), Novelli (baixo e piano), Bebeto Castilho (baixo) e Naná Vasconcelos (percussão), além de Nana Caymmi cantando em “Mentiras”. O jornalista Renato Corrente fez esta análise sobre o disco: “é uma síntese da complexidade musical que Donato desenvolvera até então – suave, arrojada, provocativa e ousadamente ensolarada, com frescor que se destacava em meio a discos mais densos e tensos no âmbito da MPB sitiada pela ditadura”.

 

Faixas

1. “Chorou, Chorou” (Donato, Paulo César Pinheiro) 2:40

2. “Terremoto” (Donato, Paulo César Pinheiro) 2:28

3. “Amazonas” (Donato) 2:10 – instrumental

4. “Fim de Sonho” (Donato, João Carlos Pádua) 3:38

5. “A Rã” (Donato) 2:31

6. “Ahiê” (Donato, Paulo César Pinheiro) 2:51

7. “Cala Boca Menino” (Dorival Caymmi) 2:23

8. “Nãna das Águas” (Donato, Geraldo Carneiro) 2:24

9. “Me Deixa” (Donato, Geraldo Carneiro) 2:18 – instrumental

10. “Até Quem Sabe?” (Donato, Lysias Ênio) 2:10

11. “Mentiras” (Donato, Lysias Ênio) 4:15

12. “Cadê Jodel” (Donato, Marcos Valle) 2:01

 

Biografia

João Donato de Oliveira Neto (Rio Branco, 17 de agosto de 1934 – Rio de Janeiro, 17 de julho de 2023) foi amigo de todos os expoentes do movimento bossanovista, como João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Johnny Alf, entre outros, mas nunca foi caracterizado unicamente como tal, e sim um músico extremamente criativo e que promoveu fusões musicais, de jazz e música latina, entre tantas outras. Segundo o crítico musical Tárik de Souza: “Durante muito tempo, João Donato foi um mito das internas da MPB. Gênio, desligado, louco, de tudo um pouco”.

 

João Donato nasceu em uma família musical, seu pai que era piloto de avião, nas horas vagas tocava bandolim. A mãe cantava e a irmã mais velha, Eneyda, pretendia ser concertista de piano. O caçula, Lysias, pendeu para as letras e se tornaria o principal parceiro nas composições com Donato. Assim, Donato cresceu entre o treino de escalas realizado pela irmã Eneyda junto ao piano e as aulas que recebia do sargento da banda militar.

 

O primeiro instrumento de João foi o acordeão, no qual, aos oito anos, compôs sua primeira canção, a valsa “Nini”. Antes de completar 12 anos, o pai presenteou-lhe com acordeões de 24 e 120 baixos. Em 1945, Donato pai foi transferido, e a família deixou Rio Branco rumo ao Rio de Janeiro.

 

Em pouco tempo, passou a frequentar o circuito musical das festas de colégios da Tijuca e adjacências. Tentou a sorte no programa de Ary Barroso. Intransigente, Ary rodou o tabuleiro da baiana e sequer quis escutá-lo, sob a alegação de que “não gostava de meninos-prodígio”.

 

Década de 1950

Segundo Ruy Castro, em sua coluna na Folha de São Paulo: “No Rio de 1950, para os meninos que sabiam das coisas, o mundo se dividia em dois hemisférios: o Sinatra-Farney Fan Club, na Tijuca, formado pelos fãs de Dick Farney, tendo Frank Sinatra como patrono, e seu rival de morte, o Haymes-Lucio Fan Club, em Botafogo, pelos fãs de Lucio Alves, rival de Dick, tendo como patrono Dick Haymes, rival de Sinatra. Exigia-se fidelidade absoluta. Era-se de um ou de outro —exceto por um membro do Sinatra-Farney, que atravessava a cidade e ia em segredo às reuniões do Haymes-Lucio: o garoto João Donato, 16 anos. Ele não entendia aquela exclusividade. Com seu ouvido musical, percebia que, como cantor, Dick Farney não tinha tanta afinidade com Sinatra. O ídolo e modelo de Dick, na voz e no jeito de cantar, era Bing Crosby, então ainda o maior cantor do mundo. Quem estava mais para Sinatra, inclusive na carreira, era Dick Haymes. Sempre que Sinatra se mudava de uma orquestra para outra, quem o substituía no emprego era justamente Dick Haymes. Mas Donato nunca poderia dizer isso a seus amigos nos dois fã-clubes. O jeito era exercer a dupla militância e tentar não ser descoberto. O que, um dia, tinha de acontecer. Donato foi chamado às falas no Sinatra-Farney e levou um ultimato: ou abandonava aquele “antro” ou ficasse por lá de uma vez. Com as orelhas em fogo, Donato jurou fidelidade a Dick —não disse qual— e eles o perdoaram. No dia seguinte, já estava de volta ao hemisfério inimigo, para alegria de seu amigo Lucio. Donato sempre foi assim. Ninguém conseguia enquadrá-lo.”

 

Em 1951, com apenas dezessete anos, namorou Dolores Duran, que tinha 21. O romance gerou polêmicas e preconceitos a época, por ela ser mais velha que ele. Após um tempo, João resolveu se separar por causa das brigas da família do casal. Assim, ele a deixou e foi morar no México.

 

Em 1956, a Odeon escalou o iniciante para fazer a direção musical de “Chá Dançante” (1956), primeiro LP de Donato e seu conjunto. Antônio Carlos Jobim fez a seleção musical do disco. O repertório escolhido foi: “No rancho fundo” (Lamartine Babo – Ary Barroso), “Carinhoso” (Pixinguinha – João de Barro), “Baião” (Luiz Gonzaga – Humberto Teixeira), “Peguei um ita no norte” (Dorival Caymmi).

 

Chegou a morar por dois anos em São Paulo. Quando volta ao Rio de Janeiro, a bossa nova estava deflagrada. Ainda em 1958, gravou “Minha saudade” e “Mambinho”, em parceria com João Gilberto.

 

Em seguida, parte para uma temporada de seis semanas em um cassino em Lake Tahoe (Nevada), onde combinou as influências do jazz com a música do Caribe, como integrante das orquestras de Mongo Santamaría, Johnny Martinez, Cal Tjader e Tito Puente. E excursionou com João Gilberto pela Europa.

 

Década de 1960

Em 1962, regressou ao Brasil e concebeu dois clássicos da música instrumental brasileira: “Muito à vontade” (1962) e “A Bossa muito moderna de João Donato” (1963), ambos pela Polydor. Este último disco introduz alguns temas originalmente instrumentais que, muitos anos depois, se tornariam obrigatórios em qualquer cancioneiro da MPB. Entre elas “Índio perdido”, que viraria “Lugar comum”, ao receber letra de Gilberto Gil. Gil também foi parceiro nos versos que transformariam “Villa Grazia” em “Bananeira”. Já “Silk Stop” é o tema original sobre o qual Martinho da Vila escreveria “Gaiolas Abertas”. A influência da música cubana é evidente em “Bluchanga”, dos tempos em que Donato tocava com Mongo Santamaría.

 

Donato mudou-se mais uma vez para os Estados Unidos e lá permaneceria por quase uma década. Trabalhou com Nelson Riddle, Herbie Mann, Chet Baker, Cal Tjader, Bud Shank, Armando Peraza, etc. Formou, ao lado de João Gilberto, Jobim, Moacir Santos, Eumir Deodato, Sergio Mendes e Astrud Gilberto, o time dos que tornaram o Brasil de fato reconhecido internacionalmente por sua música.

 

O disco que melhor representa a segunda temporada americana é “A Bad Donato” (1970), feito para o selo Blue Thumb, da Califórnia, e relançado em CD pela Dubas. Gravado em Los Angeles, “A Bad Donato” condensa funk, psicodelia, soul music, sons afro-cubanos, jazz fusion. Um Donato dançante, repleto de groove e veneno sonoro – antenadíssimo com o experimentalismo do sonho californiano.

 

Década de 1970

Esta foi a década da volta ao Brasil e do lançamento de “Quem é quem”. O álbum seguinte, “Lugar comum” (1975), pela Philips, dá sequência ao Donato vocalista, com a maior parte do repertório formado por ex-temas instrumentais. Há parcerias com Caetano Veloso (“Naturalmente”), Gutemberg Guarabyra (“Ê menina”), Rubens Confete (“Xangô é de Baê”). Só com Gilberto Gil são oito, entre elas “Tudo tem”, “A bruxa de mentira”, “Deixei recado”, “Que besteira”, “Emoriô” e pelo menos dois standards para qualquer antologia da canção popular: a faixa-título e “Bananeira”.

 

No texto que preparou para o lançamento em CD de “Lugar comum”, pela Dubas, Donato revisita um certo dia de verão nos anos 1970, na casa de Caetano. Ele se aproximara dos baianos a ponto de fazer a direção musical do show “Cantar”, de Gal Costa, registrado em disco no ano anterior: “Tava todo mundo: Maria Bethânia, Gal, Caetano com Dedé e Moreno (…). Eles tinham meus dois discos “Muito à vontade” e “A bossa muito moderna” e eu sempre provocava, desafiando eles a fazer as letras. Quando surgiu essa melodia, o Gil inventou que era “bananeira não sei / bananeira sei lá (…)”. Daí eu disse: “quintal do seu olhar”. E ele: “olhar do coração. Como se fosse um ping-pong na segunda parte”.

 

Década de 1990 – 2023

Depois desse período, Donato ficou quase vinte anos sem gravar. Foi justamente a época em que assisti seu show no Masp de São Paulo. O mainstream da época parecia não absorver o que a turma pop começou a enxergar a partir dos anos 1990. A volta de João ao mundo do disco acontece em 1996 (ele lançara apenas o instrumental e ao vivo “Leilíadas”, pela WEA, em 1986), com o álbum “Coisas tão simples”, produzido por João Augusto, para a EMI. O disco traz “Doralinda”, parceria com Cazuza, além de novas colaborações com Lysias (“Fonte da saudade”), Norman Gimbel (“Everyday”), Toshiro Ono (“Summer of tentation”).

 

A nova década começava também com a redescoberta da MPB e da bossa nova pelos DJs britânicos, quando Donato foi sampleado e também esteve nas pistas europeias e americanas com “Bananeira”, na voz dele ou de Emílio Santiago, “A Rã” e, mais tarde, com “Tudo Bem”, “Cala Boca Menino” e a versão de “Cadê Jodel”, do LP “A Bad Donato”, que o Stereolab sampleou.

 

Incansável, entre 1996 e 2022 teve cerca de 25 álbuns lançados, alguns por selos americanos, como Elephant e Jazz Station, britânicos, caso do Far Out, e até japoneses, como o Rombling Records. Veja aqui o show maravilhoso de João com Lisa Ono em Tóquio, no ano de 1995: https://www.youtube.com/watch?v=-WV8kjlHuv4. Pela Biscoito Fino, Donato fez ainda o DVD “Donatural” (2005), onde encontra – em gravação ao vivo no Espaço Sérgio Porto, no Rio – diversas gerações de parceiros: de Gilberto Gil ao DJ Marcelinho da Lua; de Emilio Santiago a Marcelo D2; de Leila Pinheiro a Joyce, com direito a Ângela Rô Rô e o filho Donatinho, fera dos teclados e dos samplers.

 

Em 2008, assisti ao meu segundo show de João Donato, produzido desta vez por Nelson Motta, no lotado auditório do Teatro do Ibirapuera, onde recebeu homenagens de Adriana Calcanhotto, Bebel Gilberto, Fernanda Takai, Marcelo Camelo [Los Hermanos], Marcelo D2 e Roberta Sá. Ainda houve o luxo da presença de Johny Alf, que tocou lindamente mas com uma visível mágoa: ele que estava no ostracismo na ocasião, teve que vender sua coleção de discos pra sobreviver no fim da vida.

 

Em 2016, João foi indicado ao Grammy Latino de Melhor Instrumental por seu álbum Donato Elétrico. O disco também foi eleito pela revista Rolling Stone Brasil como o 11º melhor álbum brasileiro de 2016.

 

Em 2017, recebeu uma homenagem dos alunos da escola de música da UCLA, de Los Angeles, com direito a palestra sobre seu clássico álbum “A Bad Donato”, gravado ali nos idos de 1970, com direito a um apoteótico show de encerramento.

 

E assim foi até o final da vida neste ano de 2023, no auge do merecido sucesso.

 

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