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16/04/2024



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Revolução Ocular do Globo

 Revolução Ocular do Globo

Este livro é, com certeza, o mais criativo lançamento do ano. REVOLUÇÃO OCULAR DO GLOBO trata-se uma coleção de escritos óticos do poeta americano Bob Brown. Totalmente inédita no Brasil, a edição reúne poemas em verso, poemas caligráficos, receitas de comida, fragmentos do manifesto “Readies” e o conto “Meu Marjonário”. Os textos foram selecionados e traduzidos por Gabriel Kerhart, que não se limitou a transpor os textos pro português. Este é um livro feito de poemas-quadros. De um lado, há as obras caligráficas de Bob Brown, impressas em litografia em 1929, e trans-caligrafadas à pena com nanquim pelo tradutor. De outro lado, retraduzindo a própria tradução, há transposições dos poemas de volta às pedras, via pichações ou pixos. Durante um final de semana de 2019, numa casa prestes a ser demolida no bairro de Pinheiros, em São Paulo – SP, os poemas foram gravados nas paredes e fotografados por Camila Picolo, como aquele da foto acima.

 

Assinam as orelhas, de um lado, Craig Saper, pesquisador e editor da poesia de Bob Brown nos EUA, que cedeu os direitos para a publicação; e de outro lado, Augusto de Campos, poeta que também contribuiu com duas traduções e participou da revisão do livro. Em 1965, no suplemento literário de O Estado de S. Paulo, Augusto foi o primeiro poeta brasileiro a ver com bons olhos os poemas óticos de Bob Brown e elogiou a “ausência de formalismo versificante” nos manuscritos e desenhos de “1450-1950”, comparando-o ao humor e à liberdade plástica de um contemporâneo brasileiro, o poeta Oswald de Andrade do “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia” (1927).

 

“Seus pés são figurados um na China e outro no Brasil. O Brasil pau-brasil de Oswald? Trinta anos depois, Oswald ressuscitado, não podemos também faltar à ressurreição de Brown. Seus poemas óticos precisam ser vistos”, recomendou Campos, com pioneirismo, no ensaio incorporado ao livro “À Margem da Margem”, de 1989.

 

No auge do modernismo de 1922, Brown residia no Brasil, mas se desconhece algum encontro seu com os escritores igualmente fascinados pela antropofagia. Aliás, seu interesse pelo tema era mais literal, como revela em um poema antirreligioso. “Eu tenho pensado/ Um bocado/ Sobre missionários/ Sendo cozidos em/ Panelas Pretas/ Por homens pretos/ E eu sempre chego à conclusão/ Por que não?”

 

Mas afinal, quem foi Bob Brown, poeta, avô do ebook e colecionador de arte indígena no Brasil?

 

Num artigo escrito por Claudio Leal, mestre em história do Cinema pela USP, para a Folha de São Paulo, ficamos sabendo que Robert Carlton Brown nasceu em Oak Park, subúrbio de Chicago, em 1886, e morreu em Nova York, em 1959. De uma ponta a outra da vida, assumiu as máscaras de aventureiro, poeta vanguardista, inventor de máquina de ler, colecionador, fazendeiro e jornalista de economia. Enquanto moraram no Brasil, de 1919 a 1927, com recaídas nas décadas de 1930 a 1950, ele e a esposa, Rose Brown, ziguezaguearam entre São Paulo, Rio de Janeiro e os rios da floresta amazônica.

 

Ainda hoje, o poeta é um desconhecido do mundo intelectual brasileiro, mas não só aqui. Fotografado nos anos 1930 por Man Ray, circulou no círculo de expatriados americanos em Paris. A amizade ou o simples diálogo com expoentes da vanguarda do século 20 — Gertrude Stein, Ezra Pound, Marcel Duchamp, H.L. Mencken, William Carlos Williams— não resultaram em uma difusão maior de sua obra, apesar dos esforços do poeta Jonathan Williams, editor dos Jargon Books. Augusto de Campos bem diz: “os próprios norte-americanos custaram a redescobrir a juventude clamorosa desse poeta de 74 anos, estranhamente marginalizado na própria faixa marginal de vanguarda”.

 

Em 1930, sob influência da escrita automática dos surrealistas e do estilo de Gertrude Stein, Brown apareceu com o projeto de uma máquina elétrica de leitura, em que os textos eram introduzidos em bobinas e lidos em um visor. Ele desejava ler um romance de centenas de milhares de palavras em dez minutos: “Sou a favor de novos métodos de leitura e escritura e acredito que o leitor-antena, quando compra algo para ler, merece encher os olhos. Modernas transportadoras de palavras são necessárias agora, leituras serão feitas por máquinas; tipos microscópicos em fitas móveis correndo sob uma grelha equipada com uma lupa e trazendo o tamanho da vida no pássaro olho do leitor.”

 

Outra faceta interessante de sua biografia foi a época em que viveu no Brasil. Duas raras entrevistas do escritor foram concedidas a jornais hoje extintos. Em 23 de setembro de 1941, no Diário da Noite, o repórter descreveu seu português “trescalando alemão”, carregado de erres. Em uma fotografia, ele aparece num quarto do Hotel dos Estrangeiros, no Flamengo. “O sr. Brown abre-nos a porta, risonho e afável, gordo, corado, a fronte e a camisa umedecidas pelo suor, apesar da baixa temperatura.” Em torno da cama, a desordem de malas e cerâmicas. “Meu marido cada dia aumenta a bagagem, e quer tudo bem arrumado, para não se quebrar. Então, ninguém conseguiu ainda lugar bastante para tantos objetos diferentes”, avisou Rose Brown.

 

“Encostados pelas paredes, arcos indígenas, montes de flechas, cestos de palha, esteiras. Pelo chão, baús velhíssimos, com grandes fechos de ferro, móveis antigos, e uma profusão de pacotes de formatos diversos, em papel de jornal. Nas prateleiras de uma estante, uma quantidade de peças curiosas da cerâmica dos povos que primitivamente habitaram as selvas amazônicas”, detalhou o jornalista.

 

“Minha mulher e eu fizemos uma excursão de cinco meses pelo rio Amazonas e alguns dos seus afluentes, a fim de colher dados para um livro. Mas vimos coisas tão bonitas e curiosas, ficamos tão encantados com os hábitos e as tradições locais, que compreendemos que aquele trabalho só não bastaria para satisfazer o interesse dos nossos patrícios norte-americanos. Projetamos então realizar também algumas conferências, acompanhadas por uma exposição do material que levamos”, explicou Brown. “Nossa ideia maior é fazer com que uma das grandes empresas de Hollywood mande fazer um filme natural de grande metragem na Amazônia. Já tomamos algumas providências e estamos certos de que a ideia vingará. Os americanos apreciarão muitíssimo o assunto. O Brasil tem nessa região material exuberante para interessar todos os povos.”

 

O livro de viagens à floresta, escrito com Rose, seria lançado em 1942. Jamais editado no Brasil, “Amazing Amazon” mereceu uma resenha do New York Times. O biógrafo Craig Saper elogia o caráter incomum do guia dos Brown, que chegaram a almoçar peixes pescados pela janela de um hotel, sem escapar do exotismo nas refeições: “Vem à mesa capivara, veado, pato selvagem e outras caças ocasionais, mas só comemos frango duas ou três vezes por semana, porque o preço é proibitivo”. Na longa jornada amazônica de 1941, Bob Brown torrou o dinheiro acumulado com o argumento do filme “Nobody’s Baby” (1937), de Gus Meins, e o adiantamento da editora para a pesquisa de “Amazing Amazon”. Em Hollywood, o casal escreveu cinco tratamentos de histórias brasileiras, absorvendo o movimento tenentista e o projeto da estrada de ferro Madeira-Mamoré.

 

Em 19 de novembro de 1944, de volta ao Rio de Janeiro deram uma entrevista pro Diário Carioca , recém-chegados de uma viagem de coleta de cerâmica indígena no vale amazônico. Antes de atravessar a fronteira brasileira, o casal percorrera o México, Peru e Equador em busca de heranças artísticas dos povos maia e asteca. Nas mesas, esparramaram uma coleção de “bonecos pretos”. “São dos mochicas e chimus, da costa norte do Peru”, ele explicou. “Como puderam trazê-los intactos através de tão grandes distâncias?”, indagou o repórter. “Trouxe-os ao colo como ‘sábios’, e isso passando pelo Yurimaguas, pelas cabeceiras do Huallaga e do Marañón até Iquitos”, contou Rose.

 

Brown exalou alegria no retorno ao Brasil e recordou sua presença na exposição do centenário da Independência, em 1922, como membro da Comissão Americana. “Nesta terra passamos alguns dos anos mais felizes da nossa vida. É como se fosse nossa segunda pátria, ou nosso segundo ‘home'”, acrescentou Rose. “Queríamos rever os sítios onde em 1940-41 estivemos escrevendo o livro ‘Amazing Amazon’. Paramos, então, em Santarém, por algum tempo, pois, a nosso ver, é a cidade mais interessante da Amazônia”.

 

Já estive umas dez vezes em Santarém e Alter do Chão e concordo plenamente. Poucos brasileiros conhecem estes lugares.

 

O poeta levou as cerâmicas de Santarém a Hollywood para que fossem integradas ao cenário de um filme ambientado na Amazônia. A Segunda Guerra Mundial esvaziou o projeto, e ele se contentou em expor sua coleção num museu de Los Angeles. “Essa foi a primeira exposição brasileira vista em Los Angeles. Os arqueólogos do museu e nossos amigos artistas exilados de Paris estudaram as peças e ficaram encantados com o padrão do seu super-realismo, aguçando-lhes a curiosidade de conhecerem o lugar de onde provinham.” A maior parte de sua coleção acabou adquirida pela Fundação Brasil Central, criada em 1943, e mais adiante entrou no acervo do Museu Nacional. Os tesouros arqueológicos de Rose e Bob Brown, para nossa vergonha, foram certamente destruídos pelo incêndio de setembro de 2018, mas uma parte da arte indígena coletada no Brasil e Peru persiste no Museu Nacional do Índio Americano, em Nova York, que comprou as peças de Brown em 1942.

 

Os Brown decidiram viver seus anos finais no Brasil. Em 1946, puseram à venda uma propriedade na rua Teresa, 153, em Petrópolis. Com cinco livros ambientados no país, um deles sobre a história do imperador dom Pedro 2º, Rose morreria em 1952, no Rio.

 

Em depressão, Brown passou a escrever cartas para a esposa morta, na esperança de uma ressurreição literária, como conta seu biógrafo. Sem a companheira de aventuras, Bob Brown regressou à vanguarda do Greenwich Village, em Nova York, e se casou com uma velha amiga. Em 1959, foi republicado o livro de poemas “1450-1950”, sua reabilitação poética nos Estados Unidos. Brown não chegou a ver o volume editado, faleceu pouco antes.

 

 

Depois de tantos anos, temos uma chance de retribuir um pouco de seu amor pelo Brasil, lendo com atenção “REVOLUÇÃO OCULAR DO GLOBO”.

 

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