Uma das personagens mais fascinantes que conheci pessoalmente nos anos 80 foi o notório ladrão inglês Ronald Biggs. Em 1983, a Contrabanda tocou no Circo Voador um de nossos melhores shows e depois fomos levados pelos nossos novos amigos cariocas (membros do Kid Abelha, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, etc) ao melhor bar da cidade: o Cochrane’s, sociedade de três ingleses, um deles o próprio Biggs, que estava lá naquela noite.
Lendo a Wikipédia ficamos sabendo que Ronald Arthur Biggs (Lambeth, 8 de agosto de 1929 — Barnet, 18 de dezembro de 2013) foi um criminoso britânico conhecido por escapar da cadeia após sua participação secundária no roubo a um trem postal. Fugiu para o Brasil em 1970, permanecendo no país até retornar a Inglaterra em 2001.
Em 1929 se alistou na RAF, mas foi dispensado com desonra em 1949 por deserção. Ficou famoso após assaltar um trem postal em Buckinghamshire, em 1963. Com a ajuda de mais 15 comparsas, roubou 2,6 milhões de libras, sendo detido no ano seguinte, juntamente com a maioria dos envolvidos. Depois de processado e condenado, escapou da penitenciária Her Majesty’s Prison Service em Londres, em 1965, escalando o muro com uma escada feita de cordas. Fugiu para Paris, onde adquiriu um passaporte falso e passou por uma cirurgia plástica. Em 1970, mudou-se para Adelaide, Austrália. Trabalhou na montagem de cenários (antes do crime, Biggs era marceneiro) no Channel 10, até que um repórter o reconheceu. Fugiu então para o Brasil no mesmo ano, deixando esposa e filhos para trás, chegando aqui em plena euforia do tricampeonato mundial de futebol.
Em 1974, foi encontrado pelo jornal Daily Express no Rio de Janeiro. O repórter Colin MacKenzie recebera informações do paradeiro de Biggs, e os detetives da Scotland Yard não tardaram a surgir em seu encalço. No entanto ele não poderia ser extraditado, pois na época não havia tratados de extradição firmados entre o Brasil e o Reino Unido. Para completar, a então namorada de Biggs (Raimunda de Castro, dançarina em casas noturnas), estava grávida, situação que impedia a expulsão de Biggs, segundo a lei brasileira. Repentinamente xícaras e camisetas com a estampa de Biggs começaram a surgir em pontos turísticos do Rio. Por alguns dólares, qualquer um poderia almoçar e bater um papo com o charmoso anti-herói.
Em 1981, Biggs foi sequestrado por uma gangue de aventureiros, que o levou até Barbados esperando receber alguma recompensa da polícia britânica. O plano acabou desmascarado, e Biggs fez uso de brechas na lei para ser mandado de volta ao Brasil.
Apesar de figura menor na realização do roubo, Biggs acabou se tornando de certo modo uma celebridade. Supostamente retornou à Inglaterra diversas vezes durante a realização de um documentário sobre o assalto, sempre disfarçado. Também gravou vocais em duas faixas de The Great Rock ‘n’ Roll Swindle, filme de Julien Temple sobre a banda punk Sex Pistols. As bases de “No One is Innocent” (conhecida como “The Biggest Blow (A Punk Prayer)” e “Belsen Was a Gas” foram registradas com o guitarrista Steve Jones e o baterista Paul Cook em um estúdio no Brasil pouco depois do último concerto dos Pistols, com overdubs adicionados posteriormente em um estúdio britânico. “No One is Innocent” foi lançado como single no Reino Unido, alcançando o 6° lugar nas paradas britânicas.
O filho de Biggs com Raimunda de Castro, Michael Biggs, também acabaria seguindo carreira musical, se tornando membro do grupo infantil Turma do Balão Mágico e trazendo uma nova fonte de renda para seu pai. Pouco depois, no entanto, o grupo terminou, deixando pai e filho novamente em delicada situação financeira.
Em 2001, ele declarou ao jornal The Sun que estava disposto a voltar para sua terra natal. Mesmo sabendo que seria detido assim que desembarcasse na Inglaterra, Biggs retornou voluntariamente em 7 de maio de 2001, sendo imediatamente preso. Sua viagem, num jato fretado, foi paga pelo The Sun, que também teria pago mais de 44 mil libras, além das despesas relativas à viagem, em troca de exclusividade pela história.
Após diversos apelos e petições de soltura (baseados na saúde frágil de Biggs, que desde seu retorno sofreu dois ataques cardíacos e vários derrames) serem negados pela justiça britânica, seu advogado anunciou em junho de 2008 que, por ter cumprido um terço de sua condenação de 30 anos, Biggs teria direito à liberdade condicional. O pedido, agendado para análise em 2009 foi negado no dia 1 de julho pelo secretário de justiça britânico Jack Straw, pois segundo ele Biggs não apresentava arrependimento por seus crimes. No dia 28 de julho, Biggs foi internado com pneumonia severa e no dia 6 de Agosto de 2009, o Ministro da Justiça da Inglaterra, Jack Straw, concedeu liberdade a Biggs, devido ao seu debilitado estado de saúde.
Ronald Biggs morreu aos 84 anos na manhã do dia 18 de dezembro de 2013, em uma casa para idosos, em Londres. Ele foi velado sob as bandeiras britânica e brasileira em 3 de janeiro de 2014 e no mesmo dia seu corpo foi cremado.
Mas nem a Wikipédia sabe que Biggs teve dois bares icônicos no Rio de Janeiro: o Cochrane’s, já citado aqui no início, e o Crepúsculo de Cubatão, o preferido dos darks cariocas. Numa matéria de 03/04/2010, o jornal Extra conta esta história do ponto de vista de Ursula Westmacott e Christopher Crocker, o casal de ingleses que era sócio de Biggs nos empreendimentos. Veja aqui alguns trechos do artigo:
Quando atracaram na Marina da Glória, em 1982, Ursula Westmacott e Christopher Crocker vinham de dois anos no Atlântico a bordo de um veleiro. Aqui, embarcaram numa nova empreitada: montaram primeiro o Cochrane’s, depois, o Crepúsculo de Cubatão. Mais do que bares ou restaurantes, os dois lugares abriram uma janela anglófila para o Rio e apresentaram o som dos punks aos cariocas.
A história incrível de Ursula e Crocker começa nos anos 70, em Londres. Christopher Crocker era uma figura popular por causa de sua creperia na King’s Road, a Asterix, a única da cidade na época. Ursula era garçonete, eles se apaixonaram e foi lá que o casal se tornou amigo de vários brasileiros que viviam exilados na Inglaterra. Entre eles, os artistas plásticos Oscar Ramos e Luciano Figueiredo, Caetano Veloso e uma turma alegre. Oscar era o gerente do estabelecimento.
Mas, cansados da rotina e de uma Londres que na época explodia de novos restaurantes, o casal decidiu vender tudo e realizar um antigo sonho de Crocker: conhecer o mundo de barco. Em 1979, compraram um veleiro detonado, construído em 1909 e sem qualquer motor de apoio e zarparam da Inglaterra (“em direção ao pôr do sol”, especifica Crocker). Começaram pelas Ilhas Canárias, estiveram em Dakar, Ilha do Sal e Serra Leoa. Casaram-se na Gâmbia, numa cerimônia civil em 1980. Foi quando Ursula engravidou e eles rumaram para o Rio pensando em rever os amigos.
A primeira filha, Angélica, nasceu aqui. Apaixonado pelo Brasil, o casal comprou uma casinha na ilha de Itacuruçá, ancorou o barco na Marina da Glória e alugou um amplo apartamento na Praia do Flamengo que dividia com outro inglês, o amigo e assaltante do trem pagador Ronald Biggs. Meses mais tarde, abriram o Cochrane’s. Três anos depois, o Crepúsculo de Cubatão.
– Quando fizemos o Cochrane’s, não havia nada parecido no Rio – explica Ursula. – Queria um clube inglês, não um pub. Para compor a decoração, fui à Saara e comprei livros a metro e objetos alusivos ao Império Britânico. Pintamos as paredes de verde musgo e o resultado ficou muito bom. Mas o mais importante era a música. Trouxemos discos de The Clash, The Cure, Smiths, um som que aqui ninguém conhecia. Os bares do Rio ainda tocavam músicas hippies.
Garçons eram universitários
A freguesia veio rápido, atraída por aquele novo estilo e aquelas canções.
– Lembro vivamente de Ursula e Crocker – diz Caetano Veloso. – Ela sempre foi linda e chique, e ele muito elegante e desencanado. Ambos muito inteligentes. Eu os conheci por intermédio de Luciano Figueiredo e Oscar Ramos. Fiz uma sequência de “O cinema falado” no Crepúsculo de Cubatão: ficou bacanérrima porque o interior era ótimo. Ao Cochrane’s fui algumas vezes. Lembro de uma jovem inglesa, amiga do casal que tinha vindo passar uns dias, me explicando, numa mesa do bar, que apesar de Mick Jagger parecer uma chama acesa, ele a deixava inteiramente fria, ao passo que David Bowie, que tinha uma presença fria, a deixava acesa- continua. – No Cochrane’s se ouviam músicas e conversas que informavam sobre o espírito do tempo. Voltei a ver Ursula em Londres umas duas vezes, quando fui fazer shows lá. Ela apareceu na coletiva de imprensa só para dar um oi. Aqui, soube por Antonio Cícero sobre cada vinda deles, mas eu estava sempre saindo em viagem.
Além da música e das boas conversas a que Caetano se refere, universitários faziam o trabalho de garçons e garçonetes. O expediente, então raro por aqui, ajudou a dar um charme extra ao lugar. Na cozinha, estudantes de várias nacionalidades se misturavam à equipe brasileira. Gente dos quatro cantos passou por este bastidor, esta Babel. Na época em que Inglaterra e Argentina se matavam pelas Malvinas/Falklands, só para provocar os ingleses, uma cozinheira sueca apareceu usando camiseta com os dizeres “Las Malvinas son argentinas”. O cardápio também era uma grande novidade. O lugar lotava.
Fernanda Young conheceu o marido, Alexandre Machado, lá. E não só ele:
– O que testei na época e no Cochrane’s foi beijar uma menina, só para ver se o lugar era gay. Não cheguei a conhecer os donos. Acho que eles nem se lembram de mim. Eu era muito nova e muito durona. Amava a torta de carne de lá. E não fui expulsa ao beijar uma mulher. Um bom lugar.
Lulu Santos, na época casado com Scarlet Moon, também aparecia por lá atraído pela boa conversa de Ursula e Crocker e pelos sabores da Inglaterra.
– Gostávamos do cardápio peculiar (scottish eggs!) semi-indiano. E, a rigor, nossa geração teve fetiche anglo. Bem, talvez seja mais simples, em vez de generalizar, admitir: eu tive um fetiche anglo e eles eram na medida, acho que os fetichizei! – brinca. – Ao Crepúsculo mesmo não me recordo sequer de ter ido, não abraçava muito a coisa gothic/dark que rolava lá, afora o fetiche for all things brit.
No Crepúsculo, desfiles de moda
O Crepúsculo tinha outro estilo, mais pesadão, ligado à estética dark:
– Comprei um monte de calculadoras velhas e motores quebrados e iluminei, para dar um aspecto industrial ao ambiente – lembra Ursula, que ainda promovia desfiles de moda.
Talentos como Lucinha Karabitchevsky e Cláudia Kopke (então donas da Nefelibato) e Marcelo de Gang se lançaram ali.
– O Cochrane’s era uma extensão da minha casa e o Crepúsculo idem – lembra ele. – Ursula é minha musa até hoje. Foi a primeira pessoa que se referiu a mim como estilista. Sou o que sou por causa dela.
O casal ficou aqui até 1988, quando, já com dois filhos e cansado da instabilidade econômica e da vida noturna, acharam que era hora de voltar, criar os filhos na Europa e ter uma vida burguesa.
– Foram sete anos montando um tigre. No final, estávamos exaustos – resume Ursula. – Não dava para continuar dormindo todo dia de manhã e fazendo farra.
Foram embora deixando uma legião de amigos e uma marca na cidade.
– Amo o Brasil, digo sempre que meu coração é brasileiro – declara Ursula.
A recíproca vale: por aqui, eles são reconhecidos como locais.
– Volta e meia estou andando na rua e alguém me grita: “Ô Cochrane’s” – ri Crocker. – Meu nome acabou se misturando para sempre ao do restaurante.
Um dos meus amigos que frequentou muito os dois bares é o Olmar Lopes, baixista do Coquetel Molotov, primeira banda punk do Rio e depois da reverenciada Black Future. Ele relembra alguns desses momentos:
“Conheci o Ronald Biggs e o casal que criou o Crepúsculo de Cubatão e o Cochrane’s, numa época em que eu trabalhei com um vídeo maker também inglês, muito amigo do Bowie. Nós vivíamos no Crepúsculo: o Edinho tinha a carteira 001 da casa e o Black Future tocou várias vezes lá. Eu achava o Biggs um cara tranquilo, sempre muito educado com todos. Mas um bandido…no assalto ao trem deram tanta porrada no maquinista que o cara ficou em estado vegetativo. Esse foi o motivo pelo qual o John Lydon, vocalista do Sex Pistols, não veio ao Brasil filmar com o Biggs.”
Outro grande amigo carioca é o Eduardo de Moraes, vocalista de uma banda mitológica: o Finis Africae, também frequentava os locais:
“Eu morava em Copacabana quase Ipanema naquele tempo, ou seja, próximo de certa forma do Crepúsculo de Cubatão. Já havia estado lá algumas vezes de madrugada, lembrava pouco do lugar, mas muitos dos queridos amigos, especialmente Lui e Satanésio eram assíduos frequentadores. Num tempo em que não havia celulares, as pessoas se encontravam mais e era simplesmente delicioso. O tempo parava de tal forma que não nos preocupávamos com a hora de voltar pra casa, nem sequer como. Não havia Uber, todo mundo era duro. Não havia ônibus naquela hora e nada disso era problema. Fosse Lapa, Copacabana, Madureira a gente dava um jeito. Nem me pergunte como.
Certo dia, Olmar Lopes (Black Future) me ligou, num telefone fixo naturalmente e me disse: Edu, tu sabe que o Biggs é sócio do Cubatão?
– Sei, Olmar.
-Então, ele vai estar hoje lá.
– Aham.
– Tu fala inglês?
– Of course.
– Vamu lá trocar uma ideia com o maluco?
– Demorô
Bom,… eu fui, o resto pergunta pro Olmar.
O cidadão aqui mal se lembra como chegou lá.”
Fiz questão de perguntar pro Olmar, que também não se lembra de nada. Sabe como eram aqueles tempos…
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