Nos últimos anos em que vivi em São Paulo, tive o prazer de conhecer um grupo de poetas que agitava bastante na cidade. Reuniam-se em torno da editora de poesia Patuá e seu bar Patuscada. Seu líder inconteste era Rubens Jardim, da geração de Roberto Piva, Jorge Mautner e tantos outros. Tinha um belo porte, lembrando um pouco Vinícius de Moraes, e recitava como ninguém. Mas seu principal traço era a generosidade, além do profundo amor pela Poesia.
Infelizmente, como foi dito no seu obituário na Folha de São Paulo: na manhã do dia 13 de maio, o poeta e jornalista Rubens Jardim fez valer um de seus próprios poemas:
“Morrer de manhã
é quase colher
a luz do amanhã.”
Rubens integrou o movimento Catequese Poética, criado pelo poeta catarinense Lindolf Bell em 1964. Em plena ditadura militar, o grupo realizava apresentações públicas com o intuito de “levar a poesia ao povo”, num gesto de resistência artística ao regime. Esse misto de recital e performance tirava a poesia dos livros para levá-la à praça pública e democrática, onde pudesse sensibilizar as pessoas e transformar a sociedade.
Nas palavras do próprio Rubens, a poesia precisa “recuperar o conteúdo mágico de cada palavra e de cada gesto humano para oferecê-los de novo a todos os homens da Terra”.
Promoveu e organizou o ANO JORGE DE LIMA em 1973, em comemoração aos 80 anos do nascimento do poeta, evento que contou com o apoio de Carlos Drummond de Andrade, Menotti del Pichia, Cassiano Ricardo, Raduan Nassar e outras figuras importantes da literatura do Brasil. Organizou e publicou JORGE, 😯 ANOS (uma espécie de iniciação à parte menos conhecida e divulgada da obra do poeta alagoano).
Rubens, nascido em 1946, publicou diversos livros e participou de inúmeras antologias. Suas publicações, como “Ultimatum” (1966), “Espelho Riscado” (1978) e “Cantares da Paixão” (2008), tinham projeto gráfico feitos por ele, fortemente influenciado pela poesia concreta. Seja no aspecto visual ou performático, o importante era libertar a poesia do mero registro impresso, retomando uma tradição que remonta aos primórdios do gênero.
Davi Kinski, um dos poetas que se podia dizer discípulo de Rubens Jardim, disse sobre ele: Hoje partiu um grande poeta e amigo, que ele seja sempre lembrado por sua colaboração incessante à poesia brasileira. Tive a sorte e o prazer de trabalhar com ele por 3 anos seguidos, homenageando muitos poetas e celebrando a poesia como algo vivo e vital em nossa sociedade. Um grande homem e poeta que nos deixa o ensinamento da comunhão através da arte e do poder da palavra declamada. Que sua memória nos seja um norte, um guia, um farol para a tão necessária poesia! Evoé poeta Rubens Jardim!
Ele tinha clara a diferença entre poesia (“necessidade atávica e concreta, presente em tudo”) e poema (“o lugar natural e específico da poesia”). Nas palavras de Affonso Romano de Sant’Anna, “Rubens Jardim solucionou, ao seu modo e de maneira criativa uma série de impasses vividos pela poesia nas últimas décadas”.
Com o mesmo ardor que escrevia, lia Rilke, Manuel Bandeira, João Cabral, Nietzsche e Guimarães Rosa. Trocou correspondência com Drummond que, diante da obra de Rubens, definiu com precisão o ofício que os unia: “A poesia é exatamente o projeto de solução que encontramos para os desencontros e absurdos do mundo”.
Rubão (como muitos o chamavam) tinha um gosto musical autêntico, enxergando na música a mesma dimensão dionisíaca que encontrava na poesia. Ouvia em alto volume Wagner, Rachmaninoff, Johnny Rivers, Míkis Theodorákis, Pena Branca e Xavantinho, Horacio Guarany, Pablo Milanés e, para a tortura de seus familiares, Eros Ramazzotti.
Da mesma forma, foi amante da boemia. Nos anos 1970 e 1980, quando trabalhava como artista gráfico no Diário Popular, Gazeta da Lapa, Editora Abril e Gazeta Mercantil, era visto pela madrugada no Franciscano, no Gigetto e no Pirandello, lugares de uma época em que as redações de jornal se estendiam para os bares e restaurantes do centro da cidade.
Nos últimos anos, atuou como agitador cultural, promovendo saraus e organizando antologias. Fiel à missão de levar a poesia a todos os lugares, militava nas mídias sociais divulgando o trabalho de outros autores para o conhecimento das novas gerações. A obra “As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira”, publicada em 2022, reúne em três volumes mais de 430 autoras de todo país.
Admirador da Revolução Cubana, via no capitalismo a origem dos males do mundo, causador da injustiça social e inimigo da fraternidade humana. À brutalidade da vida, respondia com palavras e gestos de amor genuíno, incondicional e gratuito. Desconhecia a maldade e desprezava o valor material das coisas.
“Este poema não diz nada
Da mesma forma
Que a história não diz tudo.
Língua cortada
Este poema não fala:
-falha.
E insiste:
-dedo em riste.”
Rubens Jardim
Fez parte do Catequese Poética, movimento iniciado pelo catarinense Lindolf Bell em 1964 com o objetivo de tirar a poesia das gavetas, tornando-a mais acessível através de apresentações, declamações, conferências e debates nas ruas e em universidades. No início o palco era a praça, pois dali extraía-se o pedestre de seu rumo anônimo e indeterminado, reavivando sua condição de homem, cidadão. Como prova desta identidade humana, anos depois Milton Nascimento passou a cantar “o artista tem que ir aonde o povo está”.
Lindolf Bell (1938-1998) era formado pela Escola de Arte Dramática de São Paulo. Seu gosto pela poesia veio dos pais, Theodor e Amália Bell, ambos lavradores (o pai também foi caminhoneiro ). Sua mãe costumava declamar poemas em reuniões familiares. Essa influência foi definitiva na carreira de Bell, encontrando-se enraizada na vida e nas obras do poeta. Foi líder do movimento Catequese Poética, uma iniciativa que levava a poesia às ruas por meio de recitais e de cantorias que fazia na janela de sua amada, praças, ruas, viadutos, escolas e universidades, permitindo que milhares de pessoas conhecessem essa forma de arte. Esse trabalho deu a Bell um grande reconhecimento, no Brasil e também no estrangeiro.
Lindolf Bell é atualmente o nome mais citado da poesia catarinense e Rubens Jardim continuou reverenciando seu nome até sua própria morte, como fui testemunha.
Outro dos grandes poetas da turma da Patuá é Daniel Perroni Ratto, que falou assim de Rubens Jardim em sua página do Facebook:
Rubão, sei nem o que dizer. Pegou-me de surpresa. Como assim, bicho? Tu és tão imenso que nem sei o que será da poesia depois da sua partida.
Rubens Jardim
não era só poeta,
era
poesia plena
poesia viva
poesia generosa
poesia revolucionária
poesia quente
poesia na pia
poesia fantástica
poesia lema
poesia sina
poesia glamorosa
poesia da esquina
poesia na rua
poesia extraordinária
poesia tua
poesia minha.
“O lugar da poesia é em todo lugar”.
Ah, Rubens Jardim,
você sempre será poesia.
Por sinal, os curitibanos terão a primeira oportunidade de ver uma apresentação ao vivo de Daniel Perroni Rato no dia 11 de junho, no evento Porão Loquax, no Wonka. Estarei lá na primeira fila. Quem sabe ele não recita também um poema do Rubão.
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2 Comentários
Rubens Jardim nos deixa de coração partido. De dor, de saudade. Está voando por aí, semeando poesia e irreverência. Sua missão, o significado de toda sua vida neste planeta. Perdemos sua companhia iluminada, e a literatura brasileira perdeu um grande e verdadeiro poeta. Ficamos órfãos. Todos.
Nenhuma lágrima consola, nenhum sentir tão perto o coração do poeta no sempre abraço podem acalmar a dor da sua ausência.
Bela publicação.