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28/04/2024



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Se acaso você chegasse

 Se acaso você chegasse

A colunista da Folha de São Paulo Mônica Bergamo publicou, em março e outubro de 2023 dois furos de reportagem sobre o grande compositor Lupicínio Rodrigues. A música “Se Acaso Você Chegasse”, que é considerada um dos maiores sucessos da carreira do gaúcho, fez parte da trilha do filme musical americano “Dançarina Loura”, de Frank Woodroof, cuja trilha sonora foi indicada ao Oscar de 1945. O nome de Lupicínio, porém, não faz parte da indicação porque a canção nunca foi creditada no longa metragem.

 

“Nós não queremos indenização nem nada financeiro. O que buscamos única e exclusivamente é que a obra e o seu autor sejam reconhecidos pela Academia”, disse à coluna Lupicínio Rodrigues Filho, um dos herdeiros do compositor brasileiro. A história da indicação foi revelada pelo documentário “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor”, do diretor Alfredo Manevy, que mostra como o músico se equilibrou entre o estrelato mediano, as oportunidades limitadas e o talento impactante. “Nós tratamos da potência da música do Lupicínio, mas, ao mesmo tempo, mostramos a invisibilidade desse homem negro, que era compositor no Rio Grande do Sul”.

 

Lupicínio Rodrigues, nascido em 16 de setembro de 1914, no bairro da Azenha, em Porto Alegre, foi um dos mais icônicos compositores e intérpretes da música popular brasileira. Sua vida e obra marcaram profundamente a cultura musical do país, e seu legado continua vivo mesmo após mais de um século do seu nascimento. Na minha opinião, há um quinteto mágico do samba brasileiro representado pelos compositores Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniram Barbosa e Lupicínio Rodrigues. Ninguém acima deles, um monte de gente talentosa abaixo.

 

Lupicínio e Cavaquinho: dois gênios fazendo um brinde

 

Lupicínio cresceu em um ambiente repleto de música. Seu pai era violonista e sua mãe cantora de serestas, o que o colocou em contato com a música desde tenra idade. Lupi, como era chamado desde pequeno, foi um papa-prêmio. Onde ele colocava música, ganhava troféu. Com 14 anos, já estava fazendo samba. O pai viu que o guri não era flor, gostava de samba, de mulher, de noite, já tinha roda de amigos… Tanto que ele gravou o primeiro samba com 14 anos. Gravou e já ganhou prêmio. A música se chamava Carnaval.

 

Lupi compôs marchinhas de carnaval e principalmente sambas-canção, músicas que expressam muito sentimento, principalmente a melancolia por um amor perdido. Foi o inventor do termo dor-de-cotovelo, que se refere à prática de quem crava os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pede um uísque duplo, e chora pela perda da pessoa amada.

 

Lupicínio nunca morou fora de Porto Alegre e nem se afastava da cidade por períodos muito prolongados. Ao longo de toda a sua vida, o período de tempo mais longo em que ficou fora da cidade foi de apenas um mês, em seu período de férias relativo ao ano de 1939, para conhecer o ambiente musical carioca. Curiosamente, depois de Porto Alegre, a cidade em que ele mais se apresentou foi Curitiba, que tinha uma noite efervescente nos anos 40 e 50, embalada pelo dinheiro do café.

 

Lupi viveu na antiga Ilhota, um núcleo de concentração da população negra, onde hoje se situa o Quilombo dos Fidélix, um dos onze quilombos urbanos de Porto Alegre. Boêmio, foi proprietário de diversos bares, churrascarias e restaurantes com música, todos falidos por problemas na administração financeira.

 

Torcedor do Grêmio, ele compôs o hino tricolor, em 1953: “Até a pé nós iremos / para que der e vier / Mas o certo é que nós estaremos / com o Grêmio onde o Grêmio estiver”. O hino foi composto durante uma greve de ônibus em Porto Alegre e é considerado por muitos, inclusive por mim, como o mais belo hino de futebol do Brasil. Seu retrato está na Galeria dos Gremistas Imortais, no salão nobre do clube.

 

Deixou cerca de uma centena e meia de canções editadas; outras centenas que compôs foram perdidas, esquecidas ou estão à espera de quem as resgate. Só anos mais tarde, ele se preocupou com a questão dos direitos autorais. Surgiu, então, o interesse de assumir a SBACEM (Sociedade Brasileira dos Compositores Autorais), na qual atuou por 28 anos.

 

Lupi tinha uma rotina diária interessante. Quando ia para a noite, tinha uma carta de alforria da mulher até às 4 horas da manhã. Se chegasse às 4h01min, a casa caía. Então, ele tinha um costume de segunda à sexta-feira: chegava em casa pontualmente às 4 horas, tomava uma sopinha e ia deitar. Perto do meio dia, acordava e ia cozinhar. Almoçava, tirava uma sesta e, lá pelas 15 horas, começava o ritual: vestia o melhor terno e saía. Como ele era representante da SBACEM, dava uma passada na sede e, logo depois, ia de bar em bar para “fiscalizá-los”. Usava como desculpa a função de representante do sindicato, mas era só isto: uma desculpa. Aproveitava para dar uma canja, cantava um pouquinho, e os fãs iam de bar em bar com ele. Logicamente, sua despesa era por conta das casas.

 

O maior amigo do Lupi era o Orlando Silva, não o famoso cantor, mas um cara conhecido como Johnson. Eram corda e caçamba. O Johnson era boxeador, teve até grande destaque em Porto Alegre. E era um doce de pessoa: chegou a apanhar de um amigo em comum deles, e apanhou quieto, porque sabia que era muito mais forte que o outro. O Johnson era um dos maiores intérpretes das composições do Lupicínio, cantava na noite. Era um grande amigo, tanto que as pessoas contam que, no enterro do Lupi, o Johnson não conseguia aceitar que ele estava morto, perdeu totalmente a noção da realidade, a referência. Lupicínio Rodrigues encontra-se sepultado no Cemitério São Miguel e Almas em Porto Alegre, desde 1974.

 

Na época em que “Se Acaso Você Chegasse” fez parte da trilha indicada ao Oscar, o gaúcho trabalhava como bedel em uma faculdade e não vivia da sua música (ele foi bedel da Faculdade de Direito da UFRGS de 1935 a 1947). O documentário mostra que Lupicínio ficou imensamente feliz quando soube que a canção estava em um filme estrangeiro. “Infelizmente, ele morreu sem ter esse reconhecimento do Oscar”, diz Manevy, o diretor do documentário.

 

A música do brasileiro é tocada em “Dançarina Loura” por um minuto e trinta segundos. O musical contava a história de uma patinadora, interpretada pela atriz e patinadora Belita, que entra em um grupo de dançarinas para salvar um resort de luxo da falência.

 

Em outubro último, a mobilização da família de Lupicínio Rodrigues para que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood reconheça a indicação do compositor ao Oscar de 1945 ganhou dois aliados: o advogado norte-americano Miles Cooley, que atua com grandes nomes do entretenimento como Rihanna e Jay-Z, e os ministérios da Cultura e das Relações Exteriores. Ao saber da notícia, Miles Cooley, que é casado com a cineasta brasileira Claudia Costa, procurou a família de Lupicínio para representá-los juridicamente junto à Academia. Ele atuará pro bono, sem remuneração. O diretor Alfredo Manevy também entrou em contato com o Ministério da Cultura. Representantes da pasta se sensibilizaram com o tema e pediram a colaboração do Itamaraty, que tem atuado na causa. “Identificando a importância de reparar a invisibilização de eminente músico brasileiro negro, o Consulado-Geral do Brasil em Los Angeles tem concedido apoio ao advogado que atua no caso em favor do pleito da família, bem como tem realizado gestões junto à presidência da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que não emitiu resposta oficial até o momento”, diz o Itamaraty, em nota enviada à coluna de Mônica Bergamo. No mesmo outubro, Lupicínio Rodrigues foi homenageado no Los Angeles Brazilian Film Festival, com a apresentação do documentário de Manevy. Segundo ele, não está muito claro como a canção de Lupicínio chegou até os produtores americanos. “Mas temos algumas pistas”, afirma. Eles sabem, por exemplo, que a música, ao lado de outros sambas brasileiros, foi encaminhada em 1941 aos Estados Unidos como parte da “Política da Boa Vizinhança” adotada pelo presidente americano Franklin D. Roosevelt para se aproximar culturalmente da América Latina. “Um acidente de percurso pode ter levado a canção de Lupicínio a não ser creditada como deveria”, diz o diretor. “É uma justiça histórica e simbólica que esse reconhecimento aconteça agora”, afirma ele. “Se Acaso Você Chegasse” foi a música que lançou Elza Soares em seu primeiro disco. Clique aqui para ouvir a versão original.

 

Como Elza Soares, Lupi sofreu atos de racismo mesmo sendo famoso. Ele costumava ir ao restaurante de um português em Porto Alegre. Certo dia, o garçom se recusou a atendê-lo e informou que o dono não queria mais receber negros. Lupicínio protestou, chamou a polícia e citou a lei Afonso Arinos (assinada por Getúlio Vargas em 1951, proibindo a discriminação racial no Brasil), que tinha sido aprovada havia pouco. Na época, era quase inédito um negro protestar dessa maneira, como também era muito difícil que um delegado acatasse a queixa. O dono do restaurante foi citado judicialmente, respondeu processo. E a vingança do Lupi foi ir em um outro restaurante do mesmo dono, para ser servido por ele.

 

 

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