Este ano de 2024 está sendo marcado por vários centenários: de nascimento e morte de homens e mulheres célebres a movimentos culturais marcantes como foi o Surrealismo. André Breton, publicou em 1924 um longo manifesto que lançou o movimento. Leia um trecho fundamental:
“Surrealismo, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. […] Tenha algo para escrever com você, depois de se estabelecer em um local o mais favorável possível à concentração da sua mente sobre si mesma. Coloque-se no estado mais passivo ou receptivo possível. Desconsidere sua genialidade, seus talentos e os de todos os outros. Diga a si mesmo que a literatura é um dos caminhos mais tristes que levam a tudo. Escreva rapidamente, sem assunto pré-concebido, com rapidez suficiente para não se conter e não ficar tentado a reler. A primeira frase virá por si só, pois é verdade que a cada segundo há uma frase, estranha ao nosso pensamento consciente, que apenas pede para ser expressada…”
Breton também declara no Primeiro Manifesto sua crença na possibilidade de reduzir dois estados aparentemente tão contraditórios, sonho e realidade, “a uma espécie de realidade absoluta, de sobre-realidade [surrealité]”.
Fortemente influenciado pela Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), o surrealismo enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Um dos seus objetivos foi produzir uma arte que, segundo o movimento, estava sendo destruída pelo racionalismo. O poeta e crítico André Breton (1896-1966) era o principal líder e mentor deste movimento, nascido em Paris.
Em uma carta a Breton, datada de dezembro de 1932, na qual Freud tenta esclarecer a polêmica em torno de quem teria sido referido como o primeiro autor a tratar da simbologia dos sonhos, se Volkelt ou Scherner, o “pai da psicanálise” resolve deixar bem claro o distanciamento de seu trabalho de sua aplicação na arte, defendida pelos surrealistas.
“Caro Senhor, agradeço-lhe sinceramente por sua carta tão detalhada e amável. Você poderia ter respondido mais brevemente: ‘Tanto barulho…’. Mas teve a amabilidade de considerar minha susceptibilidade particular sobre este ponto, que é sem dúvida uma forma de reação contra a ambição desmedida da infância, felizmente superada. Não poderia levar a mal nenhuma de suas outras observações críticas, embora nelas eu possa encontrar vários motivos de polêmica. Assim, por exemplo: acredito que, se não prossegui a análise dos meus próprios sonhos tão longe quanto a dos outros, a causa raramente é a timidez em relação ao sexual. O fato é, muito mais frequentemente, que eu teria que descobrir regularmente o fundo secreto de toda a série de sonhos, consistindo em meus relacionamentos com meu pai que havia falecido recentemente. Pretendo que eu tinha o direito de estabelecer um limite à inevitável exibição (assim como a uma tendência infantil superada). Agora uma confissão, que você deve acolher com tolerância! Embora receba tantos testemunhos de interesse que você e seus amigos têm pelas minhas pesquisas, eu mesmo não sou capaz de entender claramente o que é e o que quer o surrealismo. Talvez eu não seja de todo feito para compreendê-lo, eu que estou tão distante da arte. Seu cordialmente dedicado, Freud.”
Apesar de sua difícil compreensão, o Surrealismo é um dos movimentos artísticos mais populares da história, estando até hoje inserido no imaginário geral, como veremos mais adiante. Surgiu na década de 1920, completamente inserido no contexto das vanguardas que viriam a definir o modernismo no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Reúne artistas anteriormente ligados ao dadaísmo ganhando dimensão mundial.
A palavra surrealismo supõe-se ter sido criada em 1917 pelo poeta Guillaume Apollinaire (1886-1918), jovem artista ligado ao cubismo, e autor da peça teatral As Mamas de Tirésias (1917), considerada uma precursora do movimento.
Em outra parte do Manifesto, Breton fala assim sobre as influências do movimento: “As NOITES de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre. Swift é surrealista na maldade. Sade é surrealista no sadismo. Chateaubriand é surrealista no exotismo. Constant é surrealista em política. Hugo é surrealista quando não é tolo. Desbordes-Valmore é surrealista em amor. Bertrand é surrealista no passado. Rabbe é surrealista na morte. Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo. Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo. Fargue é surrealista na atmosfera. Vaché é surrealista em mim. Reverdy é surrealista em sua casa. Saint-John Perse é surrealista a distância. Roussel é surrealista na anedota. Etc.”
Alguns temas como a violência, a sexualidade e os desejos reprimidos, beirando o nonsense, já estavam presentes na literatura francesa, antes que o método psicanalítico os confirmasse como conteúdos latentes, ou seja, aqueles que, estando encobertos pelas normas do comportamento em sociedade, são sempre mais importantes e influentes em nossa vida do que os que se dão por manifesto.
A obra do Conde de Lautréamont (pseudônimo de Isidore Lucien Ducasse) é um exemplo disso. Os seus “Cantos de Maldoror” (1868) são uma espécie de rapsódia perversa que destrói deliberadamente a prosa francesa com erros ortográficos propositais, plágios explícitos de outros autores e repetição encanecida de convenções literárias antiquadas. É famosa a sua frase: (que se tornou quase um mote para a composição de alguma obra surrealista) “belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”.
Breton ensinou métodos semelhantes para a composição surrealista, do “primeiro e último jato”, com a escrita rápida, sem muito pensar, que espelhava o método clínico de Freud, de deixar o paciente falar à vontade, sobre qualquer coisa que lhe viesse à mente, por mais insignificante que fosse.
Dentre as características deste estilo estão a combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente. Entre muitas das suas metodologias estão a colagem e a escrita automática. Segundo os surrealistas, a arte deve libertar-se das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência cotidiana, procurando expressar o mundo do inconsciente e dos sonhos.
No manifesto e nos textos escritos posteriores, os surrealistas rejeitam a chamada ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho e honra. Humor, sonho e a contra lógica são recursos a serem utilizados para libertar o homem da existência utilitária. Segundo esta nova ordem, as ideias de “bom gosto” e “decoro” devem ser subvertidas.
Mais do que um movimento estético, o surrealismo é uma maneira de enxergar o mundo, uma vanguarda artística que transcende a arte. Busca restaurar os poderes da imaginação, castrados pelos limites do utilitarismo da sociedade burguesa, e superar a contradição entre objetividade e subjetividade, tentando consagrar uma poética da alucinação, de ampliação da consciência.
A escrita automática procura buscar o impulso criativo artístico através do acaso e do fluxo de consciência despejado sobre a obra. Procura-se escrever no momento, sem planejamento, de preferência como uma atividade coletiva que vai se completando. Uma pessoa escreve algo num papel e outro completa, mas não de maneira lógica, passando a outro que dá sequência. O filme Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel, por exemplo, é formado por partes de um sonho de Salvador Dalí e outra parte do próprio diretor, sem necessariamente objetivar-se uma lógica consciente e de entendimento, mas um discurso inconsciente que procura dialogar com outras leituras da realidade.
Esse e outros métodos, no entanto, não eram exercícios gratuitos de caráter estético, mas, como disse Octavio Paz, seu propósito era subversivo: abolir esta realidade que uma sociedade vacilante nos impôs como a única verdadeira. Para além de criar uma arte nova, criar um homem novo.
Grande parte da estética surrealista apoia-se na concepção de imagem poética de Pierre Reverdy, segundo a qual a imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos remotas. Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá… Reverdy distancia mais ainda o mundo captado pelos sentidos e o mundo criado pela poesia. Além disso, a linguagem surrealista faz grande uso de descontextualizações, esvazia-se um significante de seu significado para atingir novos e inusitados significados. Herança de Arthur Rimbaud, procuram o desregramento também das relações de significação para a emersão de uma nova linguagem. Há uma busca da expressão por meio de uma linguagem não-instrumental e uma associação de liberdade à ruptura discursiva.
Em 1929, os surrealistas publicam um segundo manifesto e editam a revista A Revolução Surrealista. Entre os artistas ligados ao grupo em épocas variadas estão os escritores franceses, Antonin Artaud (1896-1948), também dramaturgo, Paul Éluard (1895-1952), Louis Aragon (1897-1982), Jacques Prévert (1900-1977) e Benjamin Péret (1899-1959), que viveu no Brasil. Entre os escultores encontram-se os italianos Alberto Giacometti (1901-1960), o pintor italiano Vito Campanella (1932), assim como os pintores espanhóis Salvador Dali (1904-1989), Juan Miró (1893-1983) e Pablo Picasso, o pintor belga René Magritte (1898-1967), o pintor alemão Max Ernst (1891-1976) e o cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983).
Nos anos 30, o movimento internacionaliza-se e influencia muitas outras tendências, conquistando adeptos em países da Europa e nas Américas, tendo Breton assinado um manifesto com Leon Trotski na tentativa de criar um movimento internacional que lutava pela total liberdade na arte – FIARI: o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente.
Salvador Dalí e René Magritte criaram as mais reconhecidas obras pictóricas do movimento. Dalí entrou para o grupo em 1929, e participou do rápido estabelecimento do estilo visual entre 1930 e 1935. Foi expulso por Breton, que criticava sua ganância pequeno burguesa e passou a chamar Salvador Dalí pelo anagrama Avida Dollars.
O surrealismo como movimento visual, tinha encontrado um método: expor a verdade psicológica ao despir objetos ordinários de sua significância normal, a fim de criar uma imagem que ia além da organização formal ordinária.
Em 1932, vários pintores surrealistas produziram obras que foram marcos da evolução da estética do movimento: La Voix des Airs, de Magritte, é um exemplo deste processo, no qual são vistas três grandes esferas representando sinos pendurados sobre uma paisagem. Outra paisagem surrealista do mesmo ano é Palais Promontoire, de Tanguy, com suas formas líquidas. Formas como estas se tornaram a marca registrada de Dali, particularmente com sua obra A Persistência da Memória, na qual relógios de bolso derretem.
A Segunda Guerra Mundial provou ser disruptiva para o surrealismo. Os artistas continuaram com as suas obras, incluindo Magritte. Muitos membros do movimento continuaram a corresponder-se e a encontrar-se. Em 1960, Magritte, Duchamp, Ernst e Man Ray (autor da foto que inicia este artigo) encontraram-se em Paris. Apesar de Dali não se relacionar mais com Breton, ele não abandonou os seus motivos dos anos 30, incluindo referências à sua obra “Persistência do Tempo” numa obra posterior.
O trabalho de Magritte tornou-se mais realista na sua representação de objetos reais, enquanto mantinha o elemento de justaposição, como na sua obra Valores Pessoais (1951) e Império da Luz (1954). Magritte continuou a produzir obras que entraram para o vocabulário artístico, como Castelo nos Pireneus, que faz uma referência a Voix de 1931, na sua suspensão sobre a paisagem.
As ideias e tendências surrealistas chegaram ao Brasil a partir da década de 30 e foram assimiladas pelo movimento modernista. Alguns dos principais artistas brasileiros influenciados pelo surrealismo foram Tarsila do Amaral, Cícero Dias, Ismael Nery, Murilo Mendes, Aníbal Machado, Mário Pedrosa, Maria Martins e Darcílio Lima.
Recentemente, o escritor Sérgio Rodrigues escreveu um artigo na Ilustríssima da Folha de São Paulo chamado “Palavra ‘surreal’ passou da vanguarda para a boca do povo”. Veja um pedaço de suas ideias:
É surreal o caminho percorrido pela palavra “surreal”, nascida na vanguarda artística francesa de cem anos atrás, para estar hoje na boca do povo em conversas corriqueiras. “Os preços no supermercado andam surreais.” “Que surreal você duvidar de mim!”
Para tanto o surreal precisou se libertar pouco a pouco de seus sentidos mais precisos, ligados ao movimento estético fundado por André Breton, para se tornar o que os linguistas chamam de palavra-ônibus —aquela, quase sempre coloquial, cujos significados são tantos que não se deixam delimitar com muito rigor, como “legal” e “coisa”.
Se “surreal” não perdeu suas conotações oníricas ligadas à livre associação e às manifestações do inconsciente, ganhou outras: a de algo que é extraordinário, surpreendente, absurdo, bizarro, estranho, insano, exuberante, chocante.
Nenhuma contraria o sentido geral de “sur” + “réalisme” (suprarrealismo, aquilo que está além do real), termo cunhado em 1917 pelo poeta Guillaume Apollinaire e reciclado sete anos depois por Breton. Faz apenas o que a linguagem comum costuma fazer com termos técnicos: apropria-se deles segundo suas próprias necessidades de expressão.
Notável esta trajetória de um movimento cultural que surgia há cem anos de uma teoria complexa e antinatural e virou algo popular, à revelia de seu principal criador e dirigente, Breton. Até um desenho muito assistido da Disney já sofreu profunda influência do Surrealismo. Que surreal!!!
Leia outras colunas Frente Fria aqui.