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23/04/2024



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Uma fina camada de gelo

 Uma fina camada de gelo

Ralph Waldo Emerson, poeta e filósofo do século XIX, certa vez definiu a modernidade a partir da seguinte metáfora: “um andarilho que corre sobre uma fina camada de gelo. Ele não tem um destino certo. Mas sabe que, se parar, o piso racha e morre afogado”.

Parece-me uma imagem que cabe pra carreira do rock curitibano, tão bem historiada num livro de 555 páginas (!) chamado “Uma fina camada de gelo: o rock autoral e a alma arredia de Curitiba”, de autoria de Eduardo Mercer e produção do músico Fabiano Neves Macieywski. Teve uma tiragem inicial de mil unidades, que se esgotou das prateleiras em pouco tempo, motivando uma nova impressão. Se você procurar bem nas livrarias da cidade, ainda pode encontrar algum exemplar perdido desta obra fundamental para nossa cultura. Mesmo publicado em 2017, continua valendo uma resenha literária pelo seu valor histórico e atualidade dos assuntos que ali são discutidos.

A ideia original de Fabiano era descrever a cena roqueira local dos anos 90, quando houve um ápice de bandas ascendentes e Curitiba era conhecida nacionalmente como a Seattle brasileira. Na orelha do livro, Fabiano, que é um renomado advogado, escreve: “Lutar pelo rock curitibano, advogar para que uma banda local despontasse no cenário nacional foi minha primeira causa impossível. Quase impossível, pois era apenas uma causa muito difícil sendo julgada em um tribunal de exceção… Tradicional ritual dos vampiros de Curitiba.”

No entanto, o escritor Eduardo Mercer logo se deu conta que para falar do rock do começo dos anos 1990, a ideia original, precisaria recuar no tempo e contar a história das bandas que abriram o caminho nas décadas de 1970 e até antes. O livro começa nesta ‘pré-história’ da Chave, Blindagem, Contrabanda, Beijo AA Força, entre tantas outras, até chegar aos dias de hoje. Ele fez uma pesquisa profunda, com diversos depoimentos de personagens da época, inclusive deste que vos escreve.

Mais do que revelar a história oculta deste importante segmento da cultura local, Mercer mergulhou na alma da cidade para entender algumas de suas idiossincrasias. A invisibilidade do artista curitibano é realmente um enigma. Poderia tanto vir do conselho dos primeiros imigrantes poloneses a seus filhos: “não fale com estranhos”, para que não sofressem bulling das outras crianças por causa de seu sotaque carregado, como pelas atitudes
fechadas e respostas curtas dos cidadãos, que por pressa de chegar em casa para não ficarem expostos ao frio intenso dos invernos da capital paranaense, evitavam parar para conversar. O fato é que alguns de nossos escritores mais célebres ficaram famosos por serem arredios a pessoas. Dalton Trevisan que o diga. A invisibilidade foi tratada com humor refinado por outro grande escritor, Jamil Snege, em sua crônica “Como tornar-se invisível em Curitiba”, uma maravilha, nunca um sucesso, afinal, pode procurar por aí se quiser ter certeza: um livro de Snege é mais difícil de encontrar do que agulha em palheiro. Os curitibanos são, por opção, definição e história, cults. Onde mais se gosta de frio, neblina, silêncio e solidão? Tudo isso junto? Só em Curitiba, cidade incomum e cheia de gente talentosa, mas de difícil acesso e relacionamento.

Constituído de dezenas de entrevistas com os artistas da cena roqueira, cada um com uma desculpa diferente para nenhuma banda da cidade ter alcançado o almejado sucesso, o livro traz ainda um brinde precioso. Uma das últimas entrevistas com o produtor musical gaúcho Carlos Eduardo Miranda (falecido em março de 2018), conhecido por revelar nacionalmente bandas como Raimundos, Skank, entre tantas outras. Ele trabalhou com artistas curitibanos e conhecia a cena musical a fundo, contribuindo com uma visão de fora em sua entrevista, em que não poupa críticas, apontando motivos internos que ele julgou serem responsáveis pela cena roqueira da cidade não ter a projeção esperada. É, sem dúvida, o ponto mais polêmicos do livro.

Uma das histórias mais emblemáticas da Fina Camada de Gelo é justamente a do Sr. Banana, banda de Fabiano Neves, que quase chegou lá nos anos 90. A origem de tudo foi um outro grupo de nome Falsa Doutrina que se reuniu pela primeira vez em abril de 1990. No início se apresentou em festas locais e logo começou a tocar um repertório de covers em bares, casas noturnas e clubes.

Em agosto de 1992, a banda chega ao ápice de sua carreira cover, em uma super apresentação na Pedreira Paulo Leminski. A partir daí, veio o interior paranaense, depois de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Começaram então a deixar de lado o cover e passaram a dar importância às ideias que já vinham brotando, com base num funk metal de qualidade. Gravaram a primeira demo, que já entra nas rádios locais. Marcou-se esta nova fase com um show no Aeroanta, só com composições próprias. Em novembro de 1992, o Falsa Doutrina toca no Brahma Rock Festival, ao lado de Virna Lisi, Yo Ho Delic, Bel, TNT e outras importantes do cenário alternativo. Motivada pelas críticas, a banda escolheu o Estúdio Solo e o produtor Vitor França para a realização do seu primeiro disco.

Iniciou-se então uma nova maratona, só que pelo circuito underground da cidade. Uma das casas que reconheceu o trabalho da banda e abriu espaço foi o Aeroanta, onde fizeram mais de dez apresentações desde o lançamento do disco em agosto de 1993. Sua última excursão foi para o Paraguai, onde dizem que conquistaram o público local. Ritmos marcados pela fusão experimentalista do rock pesado com baião, samba, funk , ritmos latinos e melodias, onde o peso e o swing são traços marcantes, caracterizavam bem o que era o Falsa Doutrina. O produtor Fabiano Neves vai relançar todo o material da banda nas plataformas digitais em breve. O primeiro produto será o EP “Superior”, com cinco faixas. Veja a capa abaixo:

 

superior

 

Acontece que, no final de 1994, este mesmo Fabiano estava finalizando uma demo da Falsa Doutrina no Estúdio Solo quando conheceu Sérgio Soffiatti, cantor e multi-instrumentista que trabalhava lá como produtor e técnico de gravação. Fabiano contou que mandaria aquela demo para diversos nomes importantes do eixo Rio-São Paulo. Soffiatti sentiu firmeza na proatividade do rapaz e logo propôs que montassem uma banda de reggae, com pitadas de rock eletrônico, inspirada na inglesa UB40, numa linha que Soffiatti já fazia na época. Fabiano Neves mandou algumas letras que logo foram musicadas por Sérgio e estava montada a base para a mais nova banda da cidade: o Sr. Banana. A motivação para este estranho nome foram as famosas balas de bananas de Antonina.

Arregimentaram mais alguns músicos e gravaram uma demo com sete músicas, que foi encaminhada para gente de peso no cenário do rock nacional, como Carlos Eduardo Miranda e Pena Schmidt. O show de lançamento do Sr. Banana, em 03 de dezembro de 1994, aconteceu em alto estilo na boate Coração Melão, em Curitiba, com a presença de diretores de três gravadoras e lotação esgotada. Dias depois, recebem uma ligação de Jorge Davidson, presidente da Sony Music, avisando que estava mandando passagens aéreas para Fabiano e Soffiatti irem ao Rio de Janeiro para uma reunião na gravadora. Lá foram muito bem recebidos por Ronaldo Viana, diretor artístico da Sony, que ouviu empolgado todas as músicas. Em seguida, passaram para uma reunião com o advogado da gravadora, que apresentou um contrato de preferência, por um período de seis meses, uma vez que fariam um grande investimento e não poderiam correr riscos. Fabiano e Soffiatti assinaram e voltaram felizes pra Curitiba, mas depois veriam que não havia motivos para comemorar.

Foram enrolados por semanas pela Sony Music, até que ouviram “Calango”, o segundo CD do Skank, num estilo bem parecido ao das músicas que o Sr. Banana tinha mostrado pra gravadora. Por coincidência, o produtor foi o mesmo Ronaldo Viana, que ficou protelando a continuidade do trabalho com o Sr. Banana para dar tempo de lançar o “Calango”. Só então se tocaram que tinham sido vítimas de um contrato paralisante: as gravadoras majors assinavam contratos com algumas bandas apenas para prendê-las, sem o objetivo de lançá-las, ou lançar sem trabalhá-las, o que quase dá na mesma. Mundo cruel este do show business…

Mas, com a ajuda de Carlos Eduardo Miranda, os mocinhos venceram no final: se livraram do tal contrato paralisante e receberam uma oferta pra valer da Virgin Records, que estava se estabelecendo no Brasil, pra gravar quatro álbuns em oito anos. E não tiveram o que reclamar do tratamento vip: o produtor do primeiro disco foi George “Fully” Fullwood, legendário baixista que tocou com vários mestres do reggae. O show de lançamento foi no mesmo Coração Melão, em 08 de agosto de 1995, quando a gravadora fretou um avião pra trazer a imprensa especializada de Rio e São Paulo. Com isso, conseguiram estourar as músicas “Dignidade”, “Não Tenho Medo” e a regravação do clássico da Jovem Guarda “Ritmo da Chuva”, que entrou como primeira música do lado A da trilha da série “Armação” da Rede Globo.

No seu primeiro ano de vida, o Sr. Banana fez mais de 200 shows nas principais casas do Brasil, de norte a sul. O auge aconteceu em agosto de 1996, quando tocaram no Sunfest, na Jamaica, para 65 mil pessoas. Nesse ano a música “Não Tenho Medo” foi escolhida para a trilha sonora da novela “Quem É Você?” da Rede Globo, feito que só um curitibano tinha conseguido antes: Paulo Leminski numa parceria com Moraes Moreira. Ouça aqui.

Mas a coisa estava muito boa pra ser verdade: num belo dia de 1997, Fabiano foi chamado por Zé Celso Guida, diretor artístico da Virgin, que queria lhe mostrar uma demo gravada e enviada por Sérgio Soffiatti, sem o conhecimento do grupo, com a intenção de assinar um contrato solo com a gravadora. Merecidamente, Soffiatti foi expulso da banda, mas isto possibilitou que a gravadora acionasse uma cláusula do contrato: se algum integrante saísse do Sr. Banana, o contrato poderia ser rompido. Como Soffiatti era o principal artista da banda, o contrato foi rescindido sem dó nem piedade.

Nesta fase pós-Virgin, o Sr. Banana durou um ano e meio fazendo shows no Sul do país. Chegaram a gravar um segundo CD no Estúdio Solo, mas acabou não sendo lançado. Como naquela frase de Ralph Waldo Emerson, a velocidade foi diminuindo até que a camada de gelo se rompeu e a banda congelou-se em 1998. Vinte anos depois, reuniram-se novamente para tocar justamente no lançamento de “Uma fina camada de gelo”, num show no Jokers, em Curitiba. Animados com o retorno do público resolveram retomar a carreira e firmaram contrato com a Midas Music, principal gravadora independente do Brasil, capitaneada por Rick Bonadio. A primeira música lançada pelo selo foi “Olhos Verdes”, que tem tocado nas rádios do Brasil.

Quanto a Sérgio Soffiatti, mudou pra São Paulo onde toca em algumas bandas, como a Orquestra Brasileira de Música Jamaicana, sem nunca ter alcançado o tão almejado sucesso.

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