HojePR

LOGO-HEADER-slogan-675-X-65

28/04/2024



Sem Categoria

Zona Branca

 Zona Branca

O grande amigo Thadeu Wojciechowski me deu de presente um livro de poesias que tem uma característica rara e interessante: muitos anos depois de seu lançamento, ele ressurgiu e está vendendo novamente. “Zona Branca” é uma coletânea de poemas de Ademir Assunção, um paranaense por adoção. Publicado originalmente em 2001 pela Travessa dos Editores, de Curitiba, o livro explora uma ampla gama de temas e emoções por meio de sua poesia única e provocante. Na contracapa do livro, Glauco Mattoso, o famoso poeta cego, assim define o autor: “Sei que um poeta nunca se completa, mas Ademir Assunção caracteriza o poeta que poderia ser chamado de completo, no sentido dos sentidos: tem olhar oswaldiano, ouvido de músico, tato psicossocial, faro jornalístico e paladar tipicamente brasileiro, embora globalmente antropofágico.”

 

Uma das características mais marcantes deste livro é a linguagem direta e crua que Assunção utiliza para transmitir suas reflexões e observações sobre a vida, a sociedade e a condição humana. Seus versos não têm medo de abordar temas difíceis, como a violência, a política, a sexualidade e a busca pela identidade. Essa abordagem franca e desafiadora torna “Zona Branca” uma leitura impactante e, ao mesmo tempo, cativante. Logo na orelha do livro Ademir adverte o leitor: “Zona Branca é muito mais sofisticada do que uma colônia penitenciária convencional. E incomparavelmente mais segura. As chances de fuga são mínimas. Mas sem que o sistema de segurança encontrasse uma explicação plausível, um jovem dissidente conseguiu escapar. E resolveu escrever um livro de poesia.”

 

Além disso, o autor também se destaca pela sua capacidade de experimentação e inovação linguística. Ele brinca com a estrutura e a sonoridade dos versos, criando poesia que é ao mesmo tempo desafiadora e musical. Sua habilidade de jogar com as palavras e a linguagem é uma das características mais marcantes de “Zona Branca” e é uma parte fundamental do seu apelo. Veja este exemplo:

 

a farsa do amor

não tente esse truque

outra vez

seja mais suja

meu doce amor

espete um alfinete

no olho do gafanhoto

toque fogo

nas asas de um anjo

capture vivo um ET

& o leve a um talkshow

 

mas não tente prender os lobos

quando for lua cheia

 

Em resumo, “Zona Branca” é uma obra de mais de vinte anos que parece falar sobre os dias de hoje. Ademir Assunção aborda temas complexos com franqueza e originalidade, criando uma experiência literária intensa e memorável. Seus versos desafiam as convenções e fazem o leitor pensar de maneiras novas e inesperadas, tornando o livro uma leitura essencial para quem aprecia a poesia contemporânea brasileira.

 

Ademir Assunção é meu contemporâneo, nascemos no mesmo ano de 1961, eu em Curitiba e ele em Araraquara (SP), onde viveu até os 18 anos. Filho de ferroviário, as viagens de trem marcaram sua infância – daí talvez a ligação com o imaginário do blues americano, uma de suas paixões artísticas, e o gosto pelas estradas e ferrovias. Começou a escrever aos 16 anos de idade (em 1977), por influência do amigo Anael Aquino, que apresentou-lhe uma antologia do poeta norte-americano Robert Frost. O impacto da poesia foi tão arrebatador em sua vida que abandonou a ideia de estudar engenharia e decidiu cursar jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. A cidade do norte do Paraná vivia uma intensa agitação cultural, artística e política nos anos 1980, nos estertores da Ditadura. Logo tornou-se amigo de poetas que viriam ganhar projeção nacional nas décadas seguintes, como Rodrigo Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça e Mário Bortolotto, também dramaturgo. As descobertas literárias e musicais deste período exerceriam grande influência em sua vida e obra – entre elas estão Paulo Leminski, Torquato Neto, Augusto de Campos, William Burroughs, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção. Ao mesmo tempo, recebe influências dos quadrinhos, do cinema, da contracultura e do zen, que marcariam o fluxo e o imaginário da sua linguagem criativa.

 

Antes mesmo de se formar no curso de jornalismo, em 1983, foi contratado pelo jornal Folha de Londrina, como repórter na editoria de política. Em pouco tempo passou para a editoria de cultura, no qual desenvolveu as bases de uma linguagem jornalística que chamou a atenção de grandes poetas e intelectuais brasileiros, como Augusto de Campos, Boris Schnaiderman, Carlos Drummond de Andrade, e Waly Salomão. Paulo Leminski, inclusive, escreveu um artigo no jornal curitibano Correio de Notícias, em meados dos anos 1980, afirmando que a vanguarda do jornalismo cultural brasileiro, naquele momento, estava em Londrina – citando seu trabalho e o de Rodrigo Garcia Lopes. Creio que, se estivesse vivo, Leminski nomearia os dois poetas como seus mais legítimos representantes no cenário cultural atual.

 

Depois de três anos na Folha de Londrina, mudou-se para São Paulo e foi contratado pelo jornal O Estado de S. Paulo, como repórter do Caderno 2, onde foi colega de redação do escritor Caio Fernando Abreu. Nos anos seguintes, trabalhou como repórter no Jornal da Tarde, na revista Marie Claire e como editor-assistente do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, sempre exercendo um trabalho jornalístico de grande criatividade, ao mesmo tempo que continuava desenvolvendo sua linguagem poética e literária. Em 1988, Itamar Assumpção gravou as parcerias Ausência e Ouça-me, no cd “Intercontinental”, esta última regravada por Ney Matogrosso no disco “Inclassificáveis” (2008).

 

Após a publicação de “Lsd Nô”, seu livro de estreia, em 1994, passou a se dedicar mais a linguagem artística, sem abandonar o jornalismo. Ainda na década de 1990 publicou o livro de contos “A Máquina Peluda” e o de prosa-poética “Cinemitologias”. Em seguida, veio o livro aqui resenhado: “Zona Branca”, que acabou resultando no cd “Rebelião na Zona Fantasma”, lançado em 2005, com produção do guitarrista Luiz Waack, que pertencera à banda Isca de Polícia, do compositor e cantor Itamar Assumpção. Para levar sua inusitada fusão de poesia e música aos palcos, montou uma banda com o próprio Luiz Waack (guitarra), Reinaldo Chulapa (baixo), Daniel Szafran (teclados) e Leandro Paccagnela (bateria).

 

Nos anos seguintes consolidou seu trabalho criativo lançando vários outros livros de poesia, ficção e jornalismo, gravando discos, editando revistas literárias e realizando projetos artístico-culturais, como a exposição “Leminski: 20 Anos em Outras Esferas”, montada com grande sucesso no Instituto Itau Cultural, em 2009. Poemas e contos de sua autoria são traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, e publicados em livros e revistas na Argentina, México, Peru e EUA. Junto com os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak edita a revista literária Coyote, que obtém repercussão nacional.

 

Com o guitarrista Marcelo Watanabe e o baixista Caio Góes, montou um trio, em 2010, retomando o trabalho de poesia vocalizada e música, especialmente o blues e o rock’n’roll. Dois anos depois o trio incorporou o baterista Caio Dohogne e transformou-se na banda “Fracasso da Raça”, com a qual gravou o cd “Viralatas de Córdoba”, lançado em 2013 com apresentações ao vivo em várias cidades do Brasil.

 

Ainda em 2013 recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Poesia do Ano, com “A Voz do Ventríloquo”. O livro seguinte, “Pig Brother”, (lançado juntamente com “Até Nenhum Lugar”), em 2016, ficou entre os 10 finalistas do Jabuti.

 

 

Para ver Ademir Assunção ao vivo, assista sua conversa no “Sinestesia” do Programa do Centro de Referência Haroldo de Campos dedicado às interfaces e hibridizações entre poesia, música contemporânea, vídeo e performance. Veja aqui.

 

Vamos voltar agora ao livro “Zona Branca”: no seu final, Ademir Assunção concede cinco (!) entrevistas aos jornalistas Fabiano Calixto, Ricardo Aleixo, Rodrigo de Souza Leão, Douglas Diegues e Reynaldo Damazio. Selecionei as respostas que mais gostei:

 

Fabiano Calixto: Ademir, sua poesia é ácida, assim como sua opinião sobre as Letras e a cultura em geral na terra pindorama. Poderia nos dizer do que a poesia é capaz?

 

Ademir Assunção: A poesia é capaz de virar o mundo de uma pessoa de cabeça para baixo. Pelo menos foi o que aconteceu comigo, quando conheci Rimbaud, Ezra Pound, Cruz e Souza, Li Tai Pô, Paulo Leminski, por exemplo. Dá para imaginar o impacto na cabeça de um moleque de 16 anos ao ler algo assim:

 

Até logo, até logo, companheiro,

Guardo-te no meu peito e te asseguro:

O nosso afastamento passageiro

É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.

Não faças um sobrolho pensativo.

Se viver nessa vida não é novo,

Tampouco há novidade em estar vivo.

 

Imagine então descobrir que esses versos do poeta russo Iessiênin foram escritos com o próprio sangue, nas paredes de um hotel!!! Foi seu último poema. Ele cortou os pulsos e escreveu sua despedida com o próprio sangue. A partir do momento que tomei contato com a poesia, falei para mim mesmo: não vou ser um bundão. Não vou ser um escravo. Eu agradeço todos aqueles que incendiaram minha vida com a rebelião da poesia. Quanto à acidez dos meus escritos e das minhas opiniões… Olha, eu procuro escrever o que eu penso. Com intensidade. Com coragem. Com informação. Eu acho que ácido mesmo é o sistema financeiro que corrói a vida de milhões de pessoas em todo mundo sem a menor dor de consciência.

 

Ricardo Aleixo: Ademir, como você situa “Zona Branca” em relação a “LSD Nô”, seu primeiro livro de poesia?

 

Ademir Assunção: “Zona Branca” representa um adensamento da minha linguagem e um mergulho no inconsciente coletivo. O livro está cheio de imagens estranhas, mitológicas, trazidas dos sonhos e do cinema. O que chamamos de “realidade” acaba limitando demais a nossa percepção. Estou interessado em explorar outros níveis de consciência e penso que isto está bem evidente no livro. No “LSD Nô” essa atmosfera onírica e cinematográfica já aparecia, mas ainda um tanto tênue. O que saltava mais aos olhos era a musicalidade das palavras e dos versos. É que minha poesia, em suas origens, está mais ligada à guitarra elétrica de Jimi Hendrix, ao silêncio zen e aos tambores dos terreiros negros do que aos versos de Drummond, Bandeira e Mário de Andrade.

 

Rodrigo de Souza Leão: “Zona Branca” é um livro com versos escritos em diversas “tendências” ou “escolas” modernas. Por que o poeta deve ser um “camaleão” da poesia? A quem interessa um estilo estiloso, estilo único?

 

Ademir Assunção: Nunca me preocupei muito com unidade. Sou uma pessoa multifacetada. Minha curiosidade aponta para várias direções. Vivo num grande centro urbano. Talvez minha unidade (e a unidade das sociedades contemporâneas) esteja justamente nesta fragmentação. O cubismo e a bomba de Hiroshima já estilhaçaram tudo. As duas grandes guerras deixaram o corpus do homem moderno em frangalhos. De certa forma somos todos Adoráveis Criaturas Frankensteins.

 

Douglas Diegues: Você também é jornalista… Jornalismo e poesia são inconciliáveis? Gostaria que me falasse do que pensa do jornalismo cultural hoje no país…

 

Ademir Assunção: Gosto muito de jornalismo, desta coisa imediata, de escrever para ser lido no dia seguinte. Quando praticado com paixão, envolvimento e criatividade, o jornalismo propicia uma rapidez de raciocínio que me interessa bastante. Gosto de ler jornalistas que pensam e escrevem bem. O que anda meio raro, principalmente no jornalismo cultural. Quando comecei no jornalismo, queria escrever com aquela eletricidade do Torquato Neto. Estava cheio de ideias de vanguarda, pensava uma página de jornal como um fotograma de cinema, que podia ser composta com texto, imagens, recursos gráficos, tudo em busca de uma informação total. É assim que penso o jornalismo cultural.

 

Reynaldo Damazio: O título de seu novo livro de poemas, “Zona Branca”, foi retirado de uma ópera rock do músico norte-americano Frank Zappa. Qual é a relação de sua poesia com a cultura pop? Que outras referências dialogam em seu trabalho?

 

Ademir Assunção: Na verdade eu não me interesso muito por aquilo que a indústria do entretenimento passou a chamar de “cultura pop”. Esse conceito se transformou em um guarda-chuva para abrigar celebridades instantâneas, com os bolsos cheios de dinheiro e a cabeça cheia de merda. Zappa não é “pop”. Ao contrário: sua obra toda é uma crítica demolidora da babaquice “pop” norte-americana. A própria ópera-rock “Joe’s Garage”, da qual decalquei a ideia da “zona branca”, é uma sátira corrosiva desta indústria de clones descartáveis. É uma sátira também da mediocridade da imprensa, da truculência bélica do Pentágono, do pedantismo universitário pseudo-erudito, do exibicionismo sexual, do catolicismo repressor. A obra de Frank Zappa é extremamente complexa… Há muita confusão em torno da cultura ou das culturas produzidas pelo mundo contemporâneo. E um pouco de desinformação. Muitos desconhecem que há verdadeiras obras-primas nas histórias em quadrinhos, por exemplo. ”V de Vingança”, “Moonshadow”, “Orquídea Negra”, “Sandmann” são fantásticos. Essas manifestações artísticas todas me interessam, tanto quanto me interesso por Kafka, Pound, Dante, Borges e Rimbaud. Portanto, são muitas referências na minha poesia, na minha escrita e na minha visão de mundo. Sou um ser híbrido. Uma espécie de Frankenstein. Mas meu critério seletivo se assemelha ao que Nietszche escreveu, e que usei como epígrafe em uma das sessões do “Zona Branca”: “De tudo o que se escreve aprecio somente aquilo que é escrito com o próprio sangue”.

 

Leia outras colunas Frente Frioa aqui.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *