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28/03/2024



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Levadas Brasileiras

 Levadas Brasileiras

Quem é do meio musical curitibano conhece bem o Glauco Sölter, um dos baixistas mais renomados do País, mas recentemente ele mostrou sua nova faceta: a de escritor de livros. De volta de uma turnê pelo continente europeu, onde apresentou seu trabalho e uma homenagem especial ao grande trombonista Raul de Souza, com quem trabalhou nos últimos 15 anos, Glauco lançou o livro “Levadas Brasileiras” na Biblioteca Pública do Paraná, no último dia 23 de novembro.

“Levadas Brasileiras” teve um lançamento simbólico durante a 37a Oficina de Música de Curitiba, marcando a presença do músico e apresentando à classe musical essa pesquisa colocada nas páginas do livro num formato de crônica ágil, em linguagem simples e cativante: a história do contrabaixo na música brasileira. O lançamento voltado ao público geral, não músico, seria em abril de 2020, mas veio a pandemia e tudo foi adiado.

Levada é o nome dado à linha de condução do contrabaixo na música, e no caso do seu livro, também à linha cronológica adotada pelo autor para contar a história da música brasileira através do prisma do contrabaixista. São abordadas 80 linhas de contrabaixo fundamentais para a evolução do instrumento e da própria música brasileira.

São oitenta levadas comentadas, na partitura impressa e também no canal do youtube do autor, que pode ser acessado na hora, pelo celular, através do QR Code impresso em cada capítulo. Veja aqui um exemplo das sacadas de Glauco nesta análise da levada da música “Odara” criada pelo baixista Arnaldo Brandão.

Para quem não é músico a primeira pessoa percebida numa banda é o vocalista, depois o guitarrista e o baterista. Por ser um instrumento emissor de frequências baixas, o baixo geralmente não é notado de primeira. O que gera piadas entre os músicos com o fato de que todos da plateia falam durante o solo de baixo. Por isso a importância deste livro para iluminar um lado pouco conhecido de nossa música tão rica.

“Levadas Brasileiras“ tem o prefácio do trombonista Raul de Souza, recentemente falecido, além de ilustrações de Luiz Antonio Solda, que apresentou uma exposição dos cartuns do livro no lançamento na Biblioteca Pública do Paraná e que ficará no seu hall até meados de janeiro de 2023. Tem o formato de livro físico e de e-book digital, podendo ser comprado no site de sua editora.

Em entrevista ao jornal Bem Paraná, concedida em 2020 para o grande jornalista e músico Ivan Santos, Glauco conta como enveredou por esse caminho, relata as agruras e desafios que enfrentou na estrada e explica como a arte pode ser um instrumento de mudança e de promoção de valores humanistas.

 

Ivan Santos – Seus pais nasceram aonde?

Glauco – Meu pai é alemão de Hanover. Minha mãe é curitibana. Meu pai veio para o Brasil com cinco anos de idade, após a guerra. Então também é alemão, mas brasileiro. Na família de meu pai todo mundo tinha que aprender música. Meu pai era o único dos irmãos que não conseguiu tocar nada. Acho que uma das frustrações dele foi que ele não se deu bem com música. Acho que eu vim depois compensar um pouco. Eu trabalhar com música para ele foi uma alegria. Talvez por isso ele tenha me apoiado muito. A família acaba sendo muito importante. Quando o cara decide ser músico é aquela tragédia.

 

Ivan Santos – Quando entrou na música você tinha que idade?

Glauco – Tinha 16 para 17. Foram os meus primeiros cachês. Eu tive sorte. Eu peguei uma banda chamada CWB. Ela tocava semanalmente, três, quatro vezes por semana. Já cheguei trabalhando bastante. Uma banda meio cover, meio baile. Tinha umas 40, 50 músicas para pegar por final de semana.

 

Ivan Santos – Você é meio autodidata?

Glauco – Sou autodidata. Depois eu fiz uns cursos. Tive umas aulas com uns caras. Fiz oficinas de música com o Arismar do Espírito Santo. Nelson Faria. Grupo Uakti. Mais tarde eu fiz Berklee College. Mas isso foi depois. No começo eu tive aula com um cara chamado Yuri Daniel, baixista que mora em Lisboa há muito tempo. E ele me ensinou os conceitos básicos do baixo e me deixou um catatau de métodos. Como eu já lia partitura do piano eu fui estudando sozinho. Depois fui fazendo cursos aleatórios. E aprendendo muito com os músicos que eu tocava. Eu comecei a tocar com o Polaco guitarrista e o Paulinho Branco (saxofonista). Que eram duas escolas. Ali eu parei de tocar com a banda cover. ‘Vou encarar a música instrumental’. Comecei a curtir jazz rock. Eu comecei tocando rock. Quando veio a MPB e tudo mais, eu queria ter essa versatilidade. Eu gostava de outros ritmos. Adoro reggae. Outras vertentes. Aquilo foi abrindo, e aí no jazz. ‘Aqui vou conseguir aprender muita coisa, me expressar’. A música instrumental me atraiu por causa disso. A abertura que isso deu do instrumento se comunicar.

 

Ivan Santos – Você foi a primeira vez para a Europa nos anos 90. Como foi isso?

Glauco – A primeira vez que eu fui mesmo foi sem instrumento. Eu estava morando em São Paulo. Na verdade foi com o Polaco que a gente foi para São Paulo em 89. E aí eu fiquei um ano em São Paulo e me bateu uma crise de identidade. ‘Será que eu nasci para ser músico?’. Eu estava em um momento de ruptura. Estava querendo sair de São Paulo. Vendi tudo. Não consegui vender o baixo. Que eu tinha comprado do Celso Pixinga. Que me deu uma super força em São Paulo. Fui para a Europa sem baixo. Deixei meu baixo na casa dos meus pais. Fui tentar meus papeis para a cidadania alemã que não consegui. Tinha 19, 20 anos. Tentei a papelada em Berlim. Não consegui. Estava na casa do meu tio. Falava muito pouco alemão. Meu plano era ir para Londres, onde estavam meus amigos, mas eu fui deportado. Passei por várias situações. Me mandaram para a Alemanha de volta. Daí eu voltei para o Brasil, para a casa dos meus pais. Tinha um amigo meu que abriu um bar de jazz em Curitiba. Ele me convidou para tocar lá. Trabalhei toda semana, casei. Um pouco antes comecei a tocar com o João Lopes.

 

Ivan Santos – Na segunda vez você voltou para a Europa com o João Lopes?

Glauco – O João, quando acabou a campanha do ‘Bicho do Paraná’, ganhou uma grana e convidou para tocar na Europa. Fomos tocar no Festival de Jazz de Montreux. Eu fui tocando em um esquema diferente. Mas também uma aventura e uma super roubada. Foi o produtor na frente, e a gente deu uma grana para ele para garantir a nossa hospedagem lá. Quando a gente chegou lá a gente tinha hospedagem até dois dias antes do Natal. E ele foi embora. A gente ia voltar no final de janeiro. E depois do Natal a gente não tinha onde ficar. E eu fui para Londres no Natal. Porque eu tava encasquetado com aquele negócio. Como é que pode não entrar em um lugar. Queimei meu passaporte, fiz outro. E fui para a Suiça fazer uns trabalhos com o João Lopes. A casa em que a gente ia ficar em Montreux tinha mais dois brasileiros, um professor de espanhol de Florianópolis. Ele me emprestou o dinheiro para ir para Londres. Entrei na Inglaterra e voltei. E depois voltamos em 94 com o João Lopes para gravar em Genebra. E daí foi feito um contato muito forte com músicos suíços. Na época o Paulinho Branco estava morando em Montreux. O Mário Conde estava morando em Lausanne. O Endrigo Bettega estava morando em Genebra. Tinha muitos curitibanos na Suíça. E eles já estavam enturmados.

 

Ivan Santos – Fala-se muito que os artistas e músicos curitibanos têm dificuldade de sair daqui. E você não só tocou no País inteiro como em várias partes do mundo. Você buscou isso ou aconteceu naturalmente?

Glauco – Digamos que eu já tinha um pouco essa visão que eu acho que, de uma maneira geral, por uma questão de sobrevivência, para o músico é expandir as fronteiras do trabalho dele. Não vender em um beco e ficar lá dentro. Porque daqui a pouco ele vai estar disputando com os ratos e brigando pelas migalhas. O músico, o artista, ele precisa de projeção, ele precisa sair. Eu sempre tive essa visão. Como eu sou filho de família estrangeira, eu sempre falei duas línguas. Tinha aula de alemão com minhas tias com 8 anos de idade. Minha mãe é professora de inglês, meu pai é professor de alemão. Na verdade, o que aconteceu? Os músicos que a gente conheceu na Suíça eram muito gente boa, deram uma super força. Os caras eram uns anjos. Tinha um cara que era Michelângelo. Filho de brasileiro, mas da Suíça. A mãe brasileira e o pai suíço. Esses amigos me proporcionaram voltar. Quando eu voltei foi abrindo. Tinha um amigo meu na Bélgica, o Grafite, filho do Lápis. Ele estava na Bélgica. Eu fui lá umas três, quatro vezes. Fiquei na casa dele, toquei.

 

Ivan Santos – As oportunidades foram surgindo e você foi aproveitando.

Glauco – Exatamente. Mesmo as primeiras viagens que foram roubadas acabaram sendo um investimento. A gente tem que ser conhecido em outros lugares. Quanto mais você for, mais você vai. Tanto que teve uma época que tinha passado uns três, quatro anos que eu não tinha feito nenhuma viagem para a Europa, eu falei: ‘cara, eu vou pagar do meu bolso e vou. E vou inventar coisas lá. Eu não posse deixar passar tanto tempo senão vou perder esse gancho’. Eu vejo assim, tão importante quanto tocar no interior do Paraná é você ter um nicho lá na Europa. É você ter Santa Catarina, Joinville, Jaraguá. Tem que ir lá tocar. Tem que cavar na pedra. São mercados importantes. São Paulo, do lado aqui de Curitiba, importantíssimo. Mas é engraçado você dizer que os músicos curitibanos têm dificuldade de romper a casca, porque eu não vejo dessa forma. Eu vejo assim que os músicos que estão a fim de som, estão logo saindo de Curitiba. Os músicos mais espertos nem dão bola para esse tipo de estigma.

 

Ivan Santos – Falando em estigma, o que você acha daquela história de que curitibano não valoriza os artistas locais, autofagia?

Glauco – Esse é um discurso que eu também ouvi sempre, mas nunca vivi. Sempre tive apoio do público, as pessoas sempre gostaram do que eu faço. Sempre incentivando. Eu acho que o curitibano tem um jeito. A sua maneira. Uma vez eu estava tocando, acabei de tocar e o pessoal não bateu palma. Eu falei: ‘gente, eu sei que vocês não bateram palma, mas eu sei que vocês estão gostando, eu também sou curitibano’. Eu sempre tive uma energia boa do pessoal daqui.

 

Ivan Santos – Você tocou nas ruas de Paris. Como foi isso?

Glauco – Em 98, eu fiz um show no festival de jazz de Montreaux com meu trio. Eu o Endrigo Bettega, e um guitarrista belga, Bernard, esqueci o sobrenome dele. Um cachê bacana, e tal. E dali eu já fui para Paris e fiquei uns cinco meses. Na época minha esposa estava fazendo um curso em Paris, e eu fiquei junto com ela. Determinado momento o cachê acabou, eu precisava ganhar dinheiro. Eu comprei um amplificador daqueles que você carrega na tomada e fui tocar na rua. Eu preparei um repertório que era baixo seis cordas solo, um troço super complexo, nem baixista consegue ouvir aquilo. Pesado. Não era muito acessível. Depois de três horas tocando eu não recebi um centavo. Eu não sabia onde era o lugar certo. Não deu certo. E agora, o que eu vou fazer para sobreviver nessa cidade. Eu já sabia falar francês. Eu tinha uma caixa de CDs que eu lancei em 92 e relancei em 94. ‘Cara, vou vender CD pela rua’. Com um discman (aparelho de CD portátil), botei na cintura com o meu CD e saí pelas ruas andando e abordando as pessoas nos cafés, nas mesas. Eu vendi em média um por hora. Eu trabalhava dia sim, dia não. Aí acabaram os CDs, liguei para o meu pai ele mandou pelo correio duas caixas que garantiram minha sobrevivência ali por um tempo. Foi em uma dessas que eu conheci o trombonista Raul de Souza. Eu vi no jornal que ele ia tocar no ‘Le Duc des Lombards’, um bar de jazz. ‘Vou lá vender o meu CD’. E aí eu encontrei com ele. Começamos a conversar. Começamos um contato. O contato foi aumentando até que eu entrei na banda dele. Estou há quinze anos tocando com ele.

 

Ivan Santos – Em quantos grupos você toca atualmente?

Glauco – São em torno de doze, quinze. Por exemplo, eu acompanho a cantora Rogéria Holtz. Com a Rogéria a gente tem alguns trabalhos. Um deles é com o Daniel Migliavacca, acabamos de gravar um disco de samba. A gente viajou o ano passado para a Europa. O meu principal trabalho é o Raul de Souza. Mas com o Raul eu tenho três projetos atualmente. Um é o quarteto, que a gente tem o ‘Blue Voyage’, que é um disco lançado o ano passado pelo Sesc. E agora estamos lançando dois discos: um na Europa que é o ‘Plenitude’, que é um trombonista alemão convidando ele. A gente gravou em outubro agora, vai ter lançamento na Rússia, Alemanha em junho. E esse trabalho novo do Raul que é o ‘Raul 58’ que vai ser lançado em janeiro, um trabalho com a Gramophone que vai ser lançado agora em janeiro, produzido em Curitiba, lembrando os tempos em que ele morava em Curitiba. Fora o Raul, o Mano a Mano Trio que é o meu principal trabalho. Acabamos de fazer um trabalho com o João Bosco. Ontem eu toquei com o Sérgio Coelho. Tayana Barbosa, minha mulher, somos um duo, também. São coisas que eu vou administrando, vou fazendo períodos. Há três anos eu estou morando também em São Paulo, para tocar com o pessoal de lá. Com o Arismar, fizemos agora o projeto Cataia, eu e o Mauro Martins, baterista de Curitiba que mora na Europa há 30 anos. Tem o Daniel Oliva, guitarrista lá de São Paulo que a gente criou um projeto sobre o Pat Metheny.

 

Ivan Santos – Agora você virou escritor e está lançando um livro: ‘Levadas Brasileiras’. Como surgiu isso?

Glauco – Eu sempre gostei de escrever. Desde a escola. Eu tinha redações premiadas. Teve uma época em que eu escrevia uma coluna semanal no Jornal do Estado (atual Bem Paraná). Eu escrevia sobre os acontecimentos artísticos da cidade. Eu sempre pensava nessa história do livro. E aí pintou um negócio, o Mola Jones – baterista, me procurou. Ele é da editora e eles queriam fazer uns métodos de instrumentos musicais. A coisa não andou. A minha ideia era falar sobre os baixistas. Todos os métodos de baixo são iguais. Eu senti essa lacuna. Ninguém fala sobre os baixistas brasileiros. A única fonte disso eram as conversas informais entre os músicos. Quantos personagens passam e a gente não conhece? A princípio eu pensava em fazer um guia, muito seco. A foto do cara, um breve histórico e as partituras, quatro levadas para as pessoas conhecerem o trabalho do cara. Aí montamos um projeto para a Fundação Cultural na lei de incentivo. Eu com o Mola, aí entrou o Luiz Antonio Ferreira (ex-Beijo AA Força), e o Alexandre Benato para fazer os vídeos. O Maurélio Barbosa já estava desde o começo. Entramos com o projeto, aprovou. Nesse momento eu pensei que ia ficar muito seco. Pensei em aproveitar a oportunidade e fazer algo maior. Que fosse um método, mas também um livro. Fazer algo com crônicas, reflexão, algo autobiográfico, história dos caras. É para ser um livro divertido. Não precisa ser baixista. É para ser interessante para qualquer leitor. Se você não é baixista você também vai curtir, entrar na história. O personagem central é o baixo passando por todos esses personagens que foram criando a linguagem do baixo brasileiro. De várias vertentes.

 

Ivan Santos – Como você vê a situação da cultura e das artes em geral no Brasil hoje?

Glauco – Eu vejo com preocupação tudo que acontece hoje, lógico. Acima de tudo, antes de ser baixista, eu sou humanista. E a arte é totalmente relacionada a isso. No Brasil o que não falta é gente boa na cultura. Eu vejo com preocupação, mas vejo com otimismo. Porque eu acho que o Brasil tem capacidade de reverter. Acho que a gente tem que acreditar, porque da nossa crença virá a força. Nós temos hoje baixistas no Brasil que tocam mais do que nunca se tocou no mundo. Eu estou falando do baixo só para citar um exemplo. Acredito que acontece em várias áreas. Existe uma juventude trazendo muita coisa boa. Essas pessoas vão virar essa maré. É um período. Faz parte da democracia a gente passar por esse período. O povo escolhe, independente de como foi, e a gente tem que se adaptar e passar. Eu sei que o preço que a gente está pagando é muito alto. Muito mais alto do que a gente nunca pagou. A gente tem coisas acontecendo irreversíveis com o meio ambiente, com tudo. Os caras estão batendo na cultura. Mas na cultura não adianta bater. Quanto mais bate, mais ela fica brilhante. Ela corre por dentro de outros…ninguém alcança. A arte verdadeira acontece. Os músicos estão aí para despertar a sensibilidade nas pessoas. É um esforço conjunto que leva tempo.

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