A resenha desta semana é do livro MADONNA: UMA VIDA REBELDE, de Mary Gabriel, a recém-lançada biografia do furacão que assolou o Brasil na semana passada. Minha turma nunca foi muito ligada na música dançante de Madonna, mas sempre tivemos muito respeito pela sua presença em cena e fora dela. Claro que sua influência maior foi entre as garotas e gays. Antes de Madonna a indústria musical era praticamente toda feita e dirigida para um público branco, masculino e heterossexual. Negros, mulheres e gays tocavam no máximo para nichos.
A autora feminista Courtney E. Martin, uma das tantas fãs de Madonna, disse: “Madonna não me ensinou a ser uma bruxa má ou uma puta. Ela me ensinou a ser destemida, insolente e multidimensional. Não tinha nada a ver com a minissaia, mas com a imaginação.”
O escritor Matt Cain se lembra do medo que sentiu no noroeste da Inglaterra quando teve questionamentos sobre a própria sexualidade aos 12 anos de idade: “É impossível superestimar o impacto emocional que ela teve. Quando escondia meu “segredo sujo”, de ser gay, e achava que todos iriam me odiar se me assumisse, eu ia para o quarto e ouvia Madonna, assistia aos clipes, lia as entrevistas e sentia que ela era a única pessoa que estava ao meu lado e me defendia. Nesses momentos, tudo ficava um pouco melhor porque eu sentia que ela estava me ajudando.”
Para se tornar esta fonte de energia inesgotável, Madonna também sofreu bastante. Nasceu numa família amorosa, de origem italiana, mas a felicidade não demorou muito: aos cinco anos de idade, sua mãe morreu de câncer, o que traumatizou toda a família. Madonna conta como isto a marcou:
“Eu lembro que ela estava muito doente, sentada no sofá, e fui até ela. Lembro de subir nas costas dela, pedindo que brincasse comigo. Ela não conseguiu, começou a chorar e eu fiquei com muita raiva. Lembro de socar as costas dela, dizendo: “Por que você não brinca comigo? “ Aí vi que ela estava chorando. Lembro de me sentir mais forte do que ela. Eu era muito pequena e a abracei. Pude senti-la soluçando e percebi que era ela a criança. Parei de perturbá-la depois disso. Esse foi o ponto de virada, foi quando eu soube. Acho que aquilo me fez amadurecer rápido. Eu sabia que poderia ficar triste, fraca e não estar no controle ou poderia assumir o controle e dizer que a situação iria melhorar.”
Segundo a biógrafa, a infância de Madonna em Pontiac, no interior de Michigan, formou o seu caráter. “Ela perdeu a mãe quando tinha cinco anos”, diz. “Nessa idade, as pessoas sucumbem ou buscam dentro de si forças para lidar e se tornam duras. Ela era uma pessoa forte desde cedo e via sua música e performance como válvula de escape. Queria fugir da família, de Michigan, e nunca olhou para trás.”
Durante um show em Nova York no último mês de janeiro, Madonna discutiu sua relação com a cidade. Disse que sempre sonhou em morar lá, mas chegou à metrópole americana ingênua, sem conexões, emprego, dinheiro e teto —”uma idiota com US$ 35 no bolso”, em suas palavras.
De 1978, quando deixou a faculdade de dança em Michigan para buscar o sonho de ser uma estrela, a 1982, quando lançou o primeiro single, “Everybody”, Madonna viveu o melhor e o pior daquela Nova York. Roubou, comeu comida do lixo, dormiu com baratas e viveu de favores. Também teve uma banda punk (dessa eu não sabia), dançou hip-hop nas boates e conviveu com gente do calibre de Jean-Michel Basquiat.
Foi quando ela trocou a dança pela música e, segundo a biógrafa, formou as bases do que viriam a ser as quatro décadas de uma das carreiras mais importantes da cultura pop. “Se você quer entender Madonna, tem de voltar ao período em Nova York na virada para os anos 1980. Foi lá que ela nasceu”, diz Mary Gabriel. Achei esta a parte mais interessante do livro e reproduzi alguns trechos desta época.
“Consegui relatos de gente desse período em Nova York que nunca falou sobre Madonna”, diz a biógrafa. “A história de como ela emergiu daquela cena das boates é contada por gente que não a conhecia direito, que a viram num clube e tiveram algumas impressões. Encontrei gente realmente próxima de Madonna e de seu melhor amigo, Martin Burgoyne, que morreu aos 23 anos.”
Entre elas está Marcus Leatherdale, fotógrafo que tinha bom trânsito na cena cultural da cidade e apresentou Madonna a Andy Warhol. Também Catherine Underhill, a outra melhor amiga de Burgoyne, e que morava com Haoui Montaug, mestre de cerimônias do clube Danceteria —epicentro da juventude mais artística e descolada da época. A biógrafa ainda teve acesso à íntegra das entrevistas que a cantora deu a jornalistas de publicações menores.
Madonna tinha 19 anos quando pegou o primeiro táxi em Nova York e pediu que a deixassem “no centro de tudo”. Desceu na Times Square e teve ajuda de um homem desconhecido, que a abrigou por alguns dias. Iniciou então um período de quatro anos em que a cada um ou dois meses trocava de teto —na maioria das vezes, ocupava um quarto ou colchão na casa de um amigo ou conhecido, ou um apartamento invadido.
No livro de Gabriel, não são poucos os relatos de gente que a visitou notando o cheiro de mofo, móveis quebrados e sujos ou a quantidade de baratas nos locais em que ela dormia. Certa vez, Madonna se mudou porque o colega de quarto a estava pressionando para transar. Em outra ocasião, sobre um apartamento insalubre em Hell’s Kitchen, chegou a afirmar que era sempre “confundida com uma prostituta”.
Não é como se a então futura estrela pop se importasse muito. “Ela tinha um desejo ardente de se tornar a Madonna que conhecemos”, diz Gabriel. “Foram dadas a ela muitas oportunidades de relaxar e aceitar ajuda, pegar o caminho fácil, mas ela sempre dizia ‘não é quem eu sou’.”
Uma dessas oportunidades aconteceu quando um grupo de empresários a levou a Paris para a treinar e depois a lançar como cantora. Ela viveu meses de luxo na capital francesa, mas não gostou nem do comportamento blasé dos intelectuais com quem conviveu nem do caminho que queriam dar à sua carreira. Preferiu a pobreza em Nova York.
No palco em Nova York neste ano, Madonna se lembrou de quando, há mais de 40 anos, encontrou um desconhecido na metrópole. “Não era exatamente o meu tipo, mas transei com ele mesmo assim, e a razão é que ele tinha uma banda e ia me ensinar a tocar guitarra.” Depois, disse que acabou namorando o rapaz. “Não me pergunte o porquê.”
Aquele cara é Dan Gilroy, com quem Madonna morou numa velha sinagoga no Queen’s com um estúdio no porão. Ela posava para que ele a pintasse, e ele a ensinou a tocar guitarra, bateria e teclado.
A biógrafa teve acesso a uma fita íntima dos dois conversando. “Eles estão na cama, é de manhã e conversam de um jeito fofo”, diz. “Ela fala com essa vozinha de garota dizendo ‘vamos levantar e sair para correr’.”
Além de tocar, Madonna começou a compor —fez “I Love New York”, lançada em 2005, nessa época— e entrou para a banda de Gilroy, chamada Breakfast Club. Tocava bateria, teclado e cantava. “Tinha muita energia acumulada de tanto ficar em Paris sendo uma francesa mimada”, ela diz, em fala recuperada no livro.
O estilo deles era algo entre o punk e a new wave, que estavam em ebulição no fim dos anos 1970 em Nova York. O grupo chegou a se apresentar no CBGB, meca do punk americano e palco frequente para gente como Blondie, Ramones e Talking Heads naquela década. No meio do show, diz o livro, Madonna se estranhou com alguém na plateia que assoviou para a baixista de sua banda.
Naqueles anos, durante ou depois do Breakfast Club, a mulher que se tornaria a rainha do pop tinha visual andrógino, cantava gritando, quebrava coisas e se banhava com champanhe no palco. “Ela pegou a liberdade do punk”, diz a biógrafa.
“Ninguém precisava saber tocar um instrumento para estar numa banda. A música podia ser qualquer coisa e você podia ser bem maluco no palco. Se fosse uma cena mais cheia de regras, ela jamais se encaixaria. Acho que ela é uma garota punk até hoje.”
Depois de sair da banda e deixar Gilroy, ela reencontrou Stephen Bray, ex-namorado e amigo músico com quem viria a trabalhar ao longo da carreira. Madonna estava sem teto porque um aquecedor elétrico havia queimado o carpete onde ela dormia num apartamento invadido.
Eles passaram a ficar no Music Building, prédio com 69 estúdios. Dormiam sobre espumas de borracha e acordavam com o barulho dos ensaios. Bray diz que costumavam revirar o lixo atrás de um saco de fast food. Tomavam banho na pia e usavam a mesma roupa todo dia.
Madonna conseguia comida e dinheiro roubando lojas de conveniência, posando nua para pintores ou enganando homens. “Deixava um idiota me chamar para jantar e pedia uns US$ 100”, ela diz em trecho do livro.
Madonna conseguia as coisas por meio de troca de favores —ou da sedução. Flertava com sua primeira empresária para a convencer a fazer o que queria e a deixou quando a mulher a quis vender como roqueira.
“Ela enganou empresários, namorados, enfim, mas não ‘transou seu caminho até o sucesso’”, afirma Mary Gabriel, a biógrafa. “Ela usava a sedução, mas as pessoas a queriam ajudar. Tinha um talento natural e, claro, era muito bonita.”
Em 1981 e 1982, Madonna já se apresentava sozinha e tinha gravado fitas demo com Stephen Bray. Executivos de gravadoras queriam sexo em troca de contratos, e ela negava. Nessa época, a cantora já havia descoberto as boates e a cena do hip-hop e da dança urbana. Passou a achar que, em vez dos engravatados, deveria popularizar suas fitas pelos DJs.
Madonna encontrou um universo encantador nas boates. Frequentava três delas —a Paradise Garage, a Danceteria e a Roxy. Nessa última, ficou amiga de grafiteiros e artistas lendários como Fab 5 Freddy e Futura 2000, este último um de seus namorados.
O Roxy, disse Freddy a Gabriel, unia o hip-hop do Bronx com o punk do centro, e “os caras de moicano ficavam lado a lado com os b-boys”. O rap crescia com “The Message”, de Grandmaster Flash, e “Planet Rock”, de Afrika Bambaataa, seus primeiros hits.
Madonna era sensação no “webo”, um passo de dança, e ela e suas amigas ficaram conhecidas como as “‘webo’ girls”. Eram “as únicas brancas que podiam dançar ‘webo’ na Roxy”, segundo a cantora. Freddy diz que ela não era “uma mulher branca qualquer que dormia com qualquer cara, era mais inteligente que isso”.
É algo que acabou na estética de Madonna. Em 1982, a gravadora não sabia se “Everybody”, seu primeiro single, deveria ser divulgado a negros ou brancos —o que era importante na época. Saiu com uma capa ambígua, sem mostrar o rosto da artista.
“Ela amadureceu artisticamente nessa época, e sua música tinha muito mais a ver com Afrika Bambaataa do que com rock”, diz Gabriel. “Não só na Roxy, ela vivia no meio de caras durões —brancos ou negros, héteros ou gays, latinos ou americanos. Era gente da rua.”
Se a Roxy absorvia a cultura underground de Nova York, a Danceteria era onde estavam os executivos de gravadora e artistas mais estabelecidos. Madonna frequentava o espaço com Martin Burgoyne —seu “duplo”, segundo a biógrafa. Eles trabalhavam de bartender num bar sem alvará chamado Lucky Star, de onde roubavam dinheiro do caixa para financiar suas aventuras.
Madonna já estava com “Everybody” em rotação no rádio, mas não tinha dinheiro. Morava numa rua caótica, que, segundo o irmão, Christopher Ciccone, parecia “Blade Runner”, com ratos em todo canto, traficantes nas ruas e gente arrombando casas. Eles viviam comendo atum com biscoitos. “Não olhe ninguém nos olhos e, mais importante, ande como se fosse daqui.” Foi o conselho que ele recebeu da irmã.
No fim de 1982, Madonna passou a namorar Jean-Michel Basquiat e, durante uma viagem dele a Los Angeles, usou seu apartamento em Nova York para criar as músicas de seu primeiro álbum, lançado em julho do ano seguinte. Foi ali onde ela finalizou canções como “Burning Up”, “Borderline” e “Physical Attraction”, entre outras. Àquela altura, Madonna era, na percepção de jornalistas britânicos da época, “uma branca que soava como negra e exalava sexo, mas se vestia como homem”.
O escritor Norman Mailer certa vez a descreveu como: “uma carcamana baixinha cujo coração era feito de bolas de ferro de cem ancestrais camponeses”.
É desse caldo que nasceu a estrela que chacoalhou o mundo nos anos seguintes e que cantou no Rio de Janeiro para sua maior multidão no último sábado. O resto da sua história as pessoas mais ou menos já sabem ou podem ler no livro que resenhei. Prefiro parar por aqui, na antessala do sucesso de Madonna.
MADONNA: UMA VIDA REBELDE
• Preço R$ 119,90 (854 págs.)
• Autoria Mary Gabriel
• Editora BestSeller
• Tradução Alessandra Bonrruquer, Luana Balthazar e Patrícia Azeredo
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