O Norte paranaense, com o ciclo do Café, atraiu muitos imigrantes estrangeiros e brasileiros de outras regiões. Os casarões de secos e molhados, com alvenarias caiadas em amarelo, com suas portas metálicas pintadas, em um ocre avermelhado anticorrosão, estas de enrolar, de baixo para cima eram a parte frontal destas “vendas” interioranas.
Seo Nonato Ferreira, migrante nordestino, era proprietário de uma “venda” no bairro periférico da emergente grande cidade, do Nortão paranaense. Final dos anos 50.
Em sua rua sem calçamento a terra era roxa. Já havia luz elétrica e até rede de telefonia. Os telefones eram na cor preta e faziam um alto tilintar sonoro quando acionados. O telefone do seu Nonato ficava sobre o balcão de sua venda. Seus aposentos ao fundo.
3h30 de uma fria madrugada, toca o telefone de Nonato. Levanta-se enrolado a um cobertor desde sua cama de casal, já sem a sua esposa. Resmungando, abre a porta contigua e atende, sôfrego, ao telefone.
-Alô! Alô! Alô… ouve a respiração ofegante do outro lado da linha.
– Alô cumpadi Nonato! Aqui é o Chiquinho!, (diz a voz rouca e ofegante).
– Chiquinho? Qual Chiquinho?, pergunta Nonato.
– Chiquinho Pica Fumo! (era o apelido de outro retirante, já capataz de uma fazenda da região, o Francisco Cipriano)
– ÔOO Chiquinho cumpadi….aconteceu arguma coisa? Arguém morreu?, pergunta o assustado Nonato.
– Não sinhô, cumpadi….tô aperreado cum esse frio aqui do Sul. Inté penso em vortá pro nordeste! Deiz anos tô aqui, num acostumei não!, respondeu-lhe Chiquinho Pica Fumo.
– Chiquinho, tu mi liga uma hora dessa pra fala isso cumpadi? Tô cansado vô durmi.
– Oxente Nonato! Eu preciso comprá umas miudezas e outra coisas na sua venda e acertá uma conta contigo e vortá pra Angicos, no Sergipe. Quero fazê uma compra grande, levá tudo nos sacos e entregá lá para os meu parente, tudo. Levá umas comprinha pra famiage. Vósmice pode anota o meu pedido agora?
Nonato sorri e quase gargalha.
– Chiquinho Pica Fumo, meu conterrâneo. Já que me acordou cedo mesmo pode pedi, vai dizendo o que tu precisa, homidideus. Manda aí, to iscreveno!
Chiquinho vai dizendo: 3 pacote de farinha de trigo. 15kg de farinha de mandioca. 15 Kg de arroz. 4 Kg de goiabada cascão. 10kg de pó de café. 6kg de banha. 20 kg de carne de Sol. Um martelo. 3 caixas de prego 15×15. Um serrote. 2 enxadas…e foi dizendo uma lista enorme de mercadorias.
– Chiquinho, tenho isto tudo não! Que hora você vai passá aqui pra pegá as compra?
– Vô passa aí cedinho, pegá essas coisas e acerta uma conta antiga com voismicê! Vô pegá condução hoje mesmu e segui pro Sertão!, diz Chiquinho com voz embargada, mas grossa.
E perguntou: “tem fumo di corda? Aquele grosso e du bom? Quero 3 metros de fumo de corda. (Antigamente havia cordas de fumo – tabaco – que vinham enroladas em sacos de algodão. Eram cortadas em pequenas quantidades para os fumantes quem as usavam no famoso cigarro de palha).
Nonato riu e respondeu: “tem fumo de corda sim Chiquinho! É du bão! Mas, pra quê tantos metros de fumo?
A plenos pulmões Chiquinho gritou: “É pra tu enfiá naquele seu lugar, cabra safado! Discubri que voismicê é um Volante, fio duma égua!! Mariquinha (esposa de Chiquinho) me disse que iscuto de Durvalina (esposa de Nonato) qui tu foi Volante lá em Angicos. Matô meus amigo Cangaceiros. Eu desconfiava qui tu era Volante! Ceis matárô meu primo Corisco e o parente Capitão Virgolino Ferreira da Silva , o Lampião. Mataram Maria Bonita, que era minha tia! Vô mi vinga! Vô ti passa na pexeira!”.
Atônito, Nonato também grita: “Cabra da peste! Intão si tu fô homi venha aqui se vingá! Fui Volante sim! Inda tenho parabélum i punhal.
Você vai vê que aqui tem macho! To ti isperano. Parabellum na mão, cangaceiro safado!”
Chiquinho continua gritando ao telefone: “As compra eu vô pegá tudas ela. Dispois de furá seu bucho, Volante disgramado! To aí inté 7 hora. Em frente sua venda!”.
Alvorada enevoada. Brumosa e fria de manhã. Pardais e pássaros assobiando entre as árvores. Lá vinha em sua charrete Durvalina, a parteira da região. Com sua bolsa e uma trouxa de lençóis sujos, enrolados para lavar. Havia realizado um parto em Santo Inácio. O nascituro era um menino a ser batizado de José Aparecido. De boa familia. O parto foi demorado e ela havia deixado Nonato em casa desde a noite anterior.
Defronte a venda, apeando da charrete e tirando arreios do cavalo, Durvalina observa, olha pro cumpadi Chiquinho Pica Fumo e pergunta:
“o que faiz aqui com essa faca peixeira na mão, cumpadi Chiquinho? A venda nem abriu ainda”.
Chiquinho Pica Fumo, tremendo de raiva e frio, balbuciou entre os dentes: “Vim acertá as contas com teu marido! E tirou do alforje um revólver”.
Durvalina viu Nonato abrir e enrolar a porta férrea da venda e sair a rua, armado com parabélum e facão em direção a Chiquinho!
Durvalina que era uma sertaneja forte e destemida, agiu rápido, pulou sobre ambos os homens e grudou, com seus grossos braços, o pescoço de cada um, os apertou quase em asfixias e os jogou ao chão! Ambos rolaram, perplexos e fragilizados com a agilidade e a força da parteira Durvalina. As armas de ambos caíram ao chão!
O padeiro e um entregador de leite que estavam próximos vieram socorrer Durvalina e segurar os conflitantes. Dois colegiais que iam pra escola também ajudaram.
Durvalina sentenciou: “Aqui ninguém ficará viúva! Nem eu nem comadre Mariquinha!”.
Lépida e decidida, subiu os degraus e adentrou na venda de Nonato, que tb era sua!
Enquanto os dois, meio zonzos, estavam se recompondo na calçada, ela trouxe uma garrafa de conhaque! E alguns copos!
E disse aos gritos: “Tá frio! Vamos tomá um conhaque Cumpadis. Pra isquentá o corpo, esfriá a cabeça! Ceis são véios, tá na hora di si isquecê de briga antiga! Esqueça Angicos. Sergipe. O Sertão! Volantes! Esqueçam o Capitão Virgolino! Chega de morte di cangaceiro! Chega di morte di Volante! Ah, tem aqui também uma pinguinha di Morretes, lá do Sul. Bebam uns tragos. Tamus aqui no Paraná. Lá em Morretes passa o trem, é muito bonito. Vamo oiá pra frente! Esquecê o passado do Sertão”.
Alguns minutos depois, após alguns goles, Chiquinho Pica Fumo diz: “Humm, muito bom né cumpadi Nonato! Muito boa a pinga branquinha di Morretes. Tomem essas balas de banana”.
– Cumpadi Chiquinho Pica Fumo, falou Nonato já no terceiro copo pra esquentar o corpo, naquela manhã gelada. “Vamos faze as pazes Cumpadi.
Durvalina completa: “Vô convidá cumadi Mariquinha pro almoço! Ceis home cala boca! Vorta ao trabaio em paiz! As faca e o parabelum doceis vô joga no Poço”.
Nonato e Chiquinho se abraçaram. Durvalina sorriu feliz. Naquele ano não teve geada forte e as colheitas dos cafezais foram boas! E os telefones funcionaram.
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