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GENNARO-CABECA-COLUNA

Passeio Público (I)

24/01/2025

passeio público

O quadrilátero com densa vegetação, de árvores eleitas e seus veios d’água atulhados de peixe, projeta-se sobre a malha urbana do perímetro central.

Teatro das mais vivas manifestações lúdicas da urbe, cromatismo assimétrico ao cinza gris no quadro citadino, reencontro das massas periféricas com o devaneio bucólico do campo, cenário de vivas e odes ao Deus Baco, inspirador de poetas, refúgio dos desesperados.

Abrigo da reflexão na terceira idade, jardim das meretrizes.

Campo de batalha de jovens soldados aflitos. Paraíso da criança-apartamento que atira pipocas aos pássaros. Pista de ofegantes atletas.

Uma arara vermelha profere um palavrão. Vai nascer mais um dia. Talvez seja sábado ou domingo. Detrás da tela metálica do viveiro irá contemplar mais um pouco a comédia humana do Passeio Público.

Lá vem o pessoal do Parques e Praças em busca do salário, raspando a sujeira do entorno.

O fotógrafo lambe lambe limpa a casinhola e esquadrinha a máquina fotográfica de tripé.

Os atletas passam ofegantes. Um casal de idosos caminha em compasso geriátrico.

Garças brancas riscam de giz o azul do céu. Saudades das florestas do Mato Grosso.

Casais de olhos ainda inchados de sono trazem à mão os rebentos encantados pelas cores e amplo espaço.

O pouso e a decolagem das pombas imprimem ritmo e espaço de tempo aos risos infantis a elas dirigidos.

Alguém conta o vil metal antes de alugar pedalinhos aquáticos. Vai pôr em prática seus sonhos de marinheiro ou pirata.

Leitores tomam assento. Idosos jogam xadrez ou damas, e os pássaros ciscam, ciscam aflitos o chão para não pensar nas livres florestas de outrora.

Uns lavam os bicos, outros chacoalham as penas de tantos carnavais.

Já se pode ouvir o frenético burburinho dos convivas, o tilintar de copos e garrafas. Começou a congratulação etílica.

Uma banda vai ensaiar uns dobrados em falsete, agitar corações e transferir energias até o entardecer, depois vai passar como passam as bandas, como quem está à toa na vida e seu amor o chamou.

Algodão doce passeia alegre em mãos infantis. Pequenas mãos agitam-se frenéticas, às vezes com coloridas bolas oxigenadas. A correr em descontínuos sobressaltos, para arrepios dos pais.

Um primata dança como um pêndulo negro sobre a copa das árvores. Funcionários do zoológico o perseguem sob os apupos da plateia, que aplaude e pede bis, ela só deseja ser feliz.

Vick Milagrosa, uma nova rica, desfila seu nariz novo por entre assobios. Seus quadris balançam como os pratos na bandeja dos garçons e enchem de brilho os olhares masculinos.

Um poodle passeia o seu dono. Ostenta uma belíssima coleira.

Vira-latas contemplam-se invejosos.

Aqui e ali, neste princípio de outono, os vegetais deixam cair folhas.

Um casal qualquer procura um orgasmo atrás de uma fileira de plátanos.

O quadrilátero está salpicado de autos estacionados sobre a calçada e o meio-fio.

A caravana metálica sobre pneumáticos desfila, entrecortada por miríades de reflexos luminosos.

O som dos escapes e o alarido de vozes compõem um conjunto sem diferenças classistas.

As horas se repetem, vagarosas e frenéticas ao sabor das inclinações emotivas.

Mas o Rei-Sol, este sim, vai retirando seus holofotes deste palco para iluminar espetáculos mais a oeste destes tristes trópicos.

A moldura de edificações do entorno mistura seus ocres tons às opacas nuvens que formam figuras imaginárias. Suas vias de tráfego perdem fluxo como uma veia anêmica.

Nas cercanias não houve nenhum esfaqueamento, registrou a crônica policial.

A dispersão da massa aflita aglutina se nos acessos laterais.

Princípio de noite. A pressa é inevitável. Alguns regressam ao doce lar embalados na dança eufórica do álcool consumido.

Do alto de um edifício, alguém imagina possuir um rifle com luneta e disparar sobre a multidão.

O mosaico colorido dispersa-se, ponto a ponto, sob o breu da noite incipiente, e os animais entoam a sinfonia do entardecer de todos os dias.

Curitiba, 1985.

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