(Discurso de posse no Centro de Letras do Paraná)
Saudações!
Sejamos nós professoras e professores, escritoras e escritores, mães e pais, sempre há de prevalecer que somos educadores e, como educadores, não temos o direito de ser medianos.
Educar é a missão mais nobre que nos foi concedida pelo Criador, o que exige de nós sermos inteiros e não medianos na manifestação de afeto, resiliência e entusiasmo. A propósito, pela sua etimologia, as duas mais belas palavras do nosso léxico são “educar” e “entusiasmo”. “Educar” provém do latim ducere, que significa “conduzir, mostrar o caminho”. “Entusiasmo” tem origem no grego en-theo, que literalmente se traduz como ter “deus dentro de si” (en = dentro e theo = deus). Para os gregos politeístas, quem carrega a chama esplendorosa do entusiasmo tem um deus dentro de si. Portanto, sejamos educadores entusiastas.
Com 11 anos de idade, parti da pequena e bucólica cidade de Agronômica (SC) para estudar em Lages (SC), num colégio interno de padres. Muito latim, grego, humanidades, música, esportes, mas também a bela matemática – a rainha e, acima de tudo, serva de todas as ciências. Se os conteúdos cognitivos da escola nos conduzem ao cartesianismo, as boas lições de vida nos movem ao darwinismo, ou seja, bem se adaptar quando a realidade se impõe.
Gardner, professor e psicólogo da Universidade de Harvard, publicou em 1987 a Teoria das nove Inteligências Múltiplas. Quando uma jornalista lhe perguntou qual seria a mais importante, de início titubeou, como se tivesse de escolher uma, duas ou três filhas entre as nove, mas foi enfático na resposta: “é a combinação do pensamento lógico com a capacidade de lidar com as pessoas”. O maior mérito de Gardner foi inserir em sua teoria as inteligências Intrapessoal (valores, virtudes) e Interpessoal (habilidades socioemocionais).
De Lages, meu plano era prestar vestibular em Florianópolis, mas, por circunstâncias alheias à minha vontade, decidi estudar em Curitiba. Um episódio efêmero, aparentemente sem importância, mas aqui conto para demonstrar que as circunstâncias (citando Ortega Y Gasset), por vezes, promovem mudanças extraordinárias em nossas vidas. Se tivesse escolhido Florianópolis, hoje seria médico, portanto outra profissão, em outra cidade, outros amigos, outra mulher, outros filhos, outros netos, e o que seria de nós sem esses netos.
Permitam-me uma breve digressão filosófica, e aqui o faço, pois é o fio condutor desta modesta oratória: a vida é bela, mas tenho de aceitar que a minha vontade não é soberana, pois são as circunstâncias que se impõem. A minha vida é conduzida apenas parcialmente pelo livre-arbítrio, minhas escolhas e minha vontade. Em maior grau, sou dependente das forças transcendentes, dos desígnios do Criador, do acaso; sou caudatário das pessoas que me circundam: é a esse conjunto que podemos chamar de circunstâncias. “Eu sou eu e minhas circunstâncias” – famosa frase de Ortega Y Gasset, filósofo espanhol.
Em 1968, frustrado o plano cursar Medicina em Florianópolis, rumei para Curitiba. Quando cruzamos pela primeira vez a divisa PR-SC, brinco que “só não fiz meia volta porque estava dormindo dentro do ônibus”. Não vi as gigantescas placas que o então governador Paulo Pimentel fincou nas estradas de acesso ao Estado do Paraná, onde se lia: “Aqui se trabalha”. Não imaginava o quanto teria de trabalhar e estudar.
Desde que aqui cheguei, Curitiba me fascinou e me proporcionou grandes alegrias e oportunidades. E, se no meu peito bate um coração que ama, este coração jamais haverá de negar amor a essa terra. Se Agronômica me serviu de berço, com certeza Curitiba servirá de túmulo. Ademais, Curitiba serviu de berço para meus três filhos e quatro netos, também apaixonados por essa cidade.
Era uma época em que jovens forasteiros, com pouca bagagem e muita esperança, desembarcavam na velha rodoviária do Guadalupe em busca das boas faculdades, oportunidades de emprego e custo de vida mais acessível que em outras capitais.
Tivemos o privilégio de pertencer a uma geração de jovens com intensa participação político-social. Campeava o Regime Militar e, após 1968, eclodiram os movimentos estudantis também nas ruas de Curitiba, em que grandes marchas e passeatas partiam da Reitoria, da UPES e da CEU.
E aqui presto uma homenagem póstuma a dois grandes baluartes da literatura paranaense: sim, também conhecemos a Curitiba provinciana que Dalton Trevisan tão bem descreveu em prosa e verso como a cidade das belas “polacas”, mas que prudentemente nos ignoravam. Ou nos reportemos a Paulo Leminski (com o qual convivemos, pois ele era professor de latim no Curso Camões e quase todo mês nós, professores dos cursinhos de Curitiba, jantávamos no velho Bar Palácio). Leminski, irreverente e entre tragadas de cigarro e talagadas de vodca, subia numa cadeira, na qual em alto e bom som declamava algumas de suas pérolas. Lembro-me de uma delas: “Rio de Janeiro é o mar, Curitiba é o bar e onde beber é legítima defesa”.
No entanto, a homenagem de hoje não faz sentido se não rendermos um tributo à ternura, ao afeto e, principalmente, à gratidão. Primeiramente à família, pois na família, quando se convive com zelo e paixão, se de um lado alternam-se muitas alegrias, de outro originam-se conflitos e crescimento pessoal. A sabedoria milenar chinesa ensina que nenhuma família pode ostentar em frente à sua casa uma tabuleta: “Aqui não temos problemas”. Sim, é na família que o ser holístico de cada um – corpo, mente e espírito – se desnuda e revela suas virtudes e fraquezas. Aos filhos, devemos dar-lhes asas e raízes, e nós, pais, educamos pouco por meio de cromossomos e muito de como somos.
Somos um pouco de cada amigo, de cada colega de trabalho, a quem venero com muita gratidão. Por muitos deles cultivo uma inveja santa.
Bem sabemos que a vida contemporânea tem imposto reveses ao afeto e às amizades reais, verdadeiras. Um dos bons analistas dessa realidade foi o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido há apenas oito anos, que chamou os atuais laços afetivos de líquidos, frágeis e individualistas. Ele refletiu em sua obra sobre as relações humanas efêmeras do mundo das redes sociais, onde tudo é fugaz: se sentia perplexo com as pessoas com 500 ou 1000 “amigos”, pois ele, que passou dos 90 anos, contaria nos dedos aqueles a quem chamaria de amigos.
Para Bauman, é um grande paradoxo, pois é um solitário em meio a uma multidão de solitários, onde “tudo é mais fácil na vida virtual, mas perdemos a arte das relações sociais e da amizade. Esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem-feito. O que se consome e o que se compra são apenas sedativos morais que tranquilizam os próprios escrúpulos éticos.”
Finalizando, sempre há vida e vida boa quando há propósito, espiritualidade e positividade, desde que nos mantenhamos úteis, solidários, com a mente ativa e, acima de tudo, saudáveis, como bem se manifesta Schopenhauer: “se tens saúde não diga que a vida não te deu uma oportunidade.”
E, sobremaneira, não perder o estímulo de ser um eterno aprendiz, de ser interessante e interessado. Quando se chega à fase do 60+, é preciso ter a sabedoria de assumir a própria desimportância, sem perder a autoestima.
(Este texto reflete a essência de meu discurso de posse no Centro de Letras do Paraná, em 10/12/24, na minha admissão e de mais 11 novos membros desta entidade literária e cultural fundada em 1912, talvez a mais longeva do Estado. Naturalmente, há acréscimos e supressões entre a apresentação oral e este texto.)
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