Sentada diante da TV, procurando algo interessante para assistir enquanto espero pelo Ano Novo, parei na “Cidade dos Anjos”, filme de Brad Silberling. Sempre que passo por ele, ao zapear pela programação, acho que teria vontade de rever. Lembro-me das imagens dos anjos de preto, em cima dos prédios de Downtown Los Angeles, do silêncio e da solidão. Tenho em minha memória que ele, o anjo principal, andava com vontade de ser humano, porque se a apaixonara pela médica, cujo olhar havia se encontrado como o seu, acidentalmente. Como não gosto de rever filmes, pois gosto de ser surpreendida, acabava sempre desistindo, porém, hoje, resolvi assistir.
No filme, as crianças conseguem ver os anjos, coisa em que acredito já que ainda não foram totalmente capturadas pelo mundo com sua concretude e materialidades. Foi a sensação de possibilidade que percebo nas crianças – os grandes espaços vazios que as preenchem e as permitem circular por lugares que nós, adultos, já não mais conseguimos visitar e, também, por causa dos anjos – que me levou a escrever sobre o ano que se inicia.
“Estou só
Tenho o ar e o vento
O vento desenha meu corpo
No espaço do mundo”*
Como será que nos sentiremos nesse novo ano?
Será que apesar da rudeza da realidade conseguiremos parar, criar espaços paralelos aos projetos já alinhavados no ano que se encerra? Será que conseguiremos sentir o vento no corpo, na alma, permeando nossos pensamentos, deixando-os mais leves? Viver o momento como o fazem tão bem as crianças, não por escolha própria, mas por sua condição de visitantes recentes nesse nosso planeta, assim como o Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry? “Tu falas como as pessoas grandes! Tu confundes todas as coisas…misturas tudo! Eu conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém. Nunca fez outra coisa senão somar. E o dia todo repete como tu: “Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!” E isso o faz inchar-se de orgulho!” Disse o principezinho, injuriado e preocupado com seu amigo piloto.
Não sei quando acontece o “gap” entre ser criança e ser adulto. É como adultos, e não como crianças ou anjos, que aspiramos coisas que muitas vezes não conseguimos encontrar, por buscarmos determinados caminhos que consideramos ser os mais acertados. Talvez pudéssemos deixar algumas brechas em nossas escolhas tão diretas. Será que encontraremos tempo para viver as dúvidas? Teremos tempo para encontrar o outro? Para encontrar a nossa criança? Para perceber esse encontro
“Se alguém chegar
Vai mergulhar em mim
Como o sol
Como a lua
Como a chuva
Mas se for alguém
De que gosto
Meu corpo vai ser um campo
Coberto de vagalumes
Em mim
A terra e o céu
Inteiros.”*
e, quem sabe… ver os anjos! Feliz Ano Novo!
*(Priscila Freire em Conversa de Corpo-ED Miguilim-1983)
Ilustração : litografia “Da Mitologia do Xingú” Elizabeth Titton 1984
Leia outras colunas da Elizabeth Titton aqui.