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TITTON-CABECA-COLUNA

O retrato e a fotografia

20/05/2025

“(…) fotografei você na minha Rolleiflex
Revelou-se a sua enorme ingratidão. (…)”

De Tom Jobim e Newton Mendonça, interpretada por João Gilberto, “Desafinado” foi gravada em 1958. Já a afinadíssima câmera fotográfica Rolleiflex, fabricada e produzida pela empresa alemã Franke & Heidecke e lançada em 1929, tornou-se um símbolo de qualidade e de status, um ícone até os dias de hoje. Com ela, profissionais e amadores “tiravam retratos”, como costumávamos dizer. As câmeras revelavam, muitas vezes, segredos que os fotografados não imaginavam demonstrar, como nos falou da ingratidão o triste “desafinado”.

Tirar retrato e fotografar eram quase sinônimos. Quando, obrigados pela burocracia, tínhamos que fazer uma “três por quatro”, preparávamos o melhor penteado sabendo que a imagem que saísse daquela câmera nos perseguiria por longo tempo, grampeadas, coladas e carimbadas em inúmeros documentos que iriam dizer quem éramos, registrando nosso crescimento e desenvolvimento por longos anos de nossas vidas. Éramos reféns do fotógrafo, do banquinho, da fortíssima luz e daquele assustador fundo branco.

Na época em que as pessoas ainda não tinham suas próprias câmeras, os profissionais da fotografia montavam seus estúdios com grandes arranjos de flores e fundos caprichados com colunas, de onde pendiam tecidos drapeados. Havia cadeiras e grandes poltronas onde se sentavam os patriarcas, com ou sem suas famílias. Nesses espaços fantásticos habitavam também os cavalinhos revestidos de couro, com rabo, crina e arreios, que faziam parte de um cenário que encantava os clientes. Eu mesma me deixei fotografar no estúdio da rua São Francisco, no Centro Histórico de Curitiba, para a disciplina de modelagem da Escola de Belas Artes. O fotógrafo tinha o domínio da iluminação que seria fundamental para destacar os relevos dos nossos perfis, que depois serviriam de guia para os autorretratos em argila.

Estudio fotográfico contemporâneo - Curitiba
Estudio fotográfico contemporâneo – Curitiba

Já os chamados povos “não civilizados”, como os que víamos nos filmes de Tarzan, não queriam suas fotos tiradas, pois consideravam ter, assim, suas almas roubadas. De certo modo, têm razão. Basta ver hoje quantas pessoas têm suas vidas prejudicadas por terem suas imagens roubadas, usadas indevidamente e espalhadas, irrecuperavelmente, pela internet no mundo, no nosso mundo, dos civilizados.

A fotografia, como os desenhos rupestres gravados nas cavernas e em pedras pelo mundo, tinha finalidades que iam além da arte. Era, antes de tudo, uma forma de registrar o mundo e seus acontecimentos, transmitir mensagens e cumprir outros objetivos. A fotografia também documenta, informa, apresenta fatos e momentos. Quando, então, a fotografia se torna arte? Quando é bela ou inédita, quando rompe com o habitual, quando é original, quando apresenta uma ideia que vai além da própria imagem, quando transmite novos significados. Quantos de nós já não vimos fotos 3×4 em bienais de arte ou outros retratos que, além da qualidade fotográfica, traziam na forma como foram expostos um propósito inovador, uma mensagem que marcou uma época.

Hoje, as câmeras fotográficas e mesmo as Rolleiflex estão quase que exclusivamente nas mãos dos profissionais. Os telefones celulares, cada vez com maior qualidade, foram ocupando o espaço antes exclusivo das câmeras e popularizando a fotografia e os “retratos”. Nem sempre criando arte ou revelando a poesia dos desafinados, mas povoando o mundo de imagens.

(Ilustração de abertura: ” Auto retrato” Elizabeth Titton – bronze fundido -1979- acervo da artista; “Retrato” fotografia- Foto Progresso – 1979.)

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