Talvez nem mesmo os maiores fãs de David Bowie saibam de sua incursão na comédia romântica – e por um bom motivo: o filme foi lançado em 1992 e desde então tem sido quase impossível assisti-lo. Agora, seu diretor restaurou, recuperou e reeditou o longa em questão, The Linguini Incident, lançado em Blu-ray, nos Estados Unidos, no último 23 de julho.
Richard Shepard tinha apenas 25 anos quando dirigiu o peculiar filme independente ambientado em Nova York, que foi sua estreia como diretor solo. (Ele tinha dirigido Cool Blue com Mark Mullin). Como era comum na época, o baixo orçamento vinha de várias fontes. “O filme inteiro foi financiado de um jeito muito estranho”, disse Shepard em entrevista por Zoom. “Tínhamos dinheiro de vídeo caseiro, dinheiro de vendas no exterior e um dinheiro misterioso – muito dinheiro misterioso”.
Sua primeira grande jogada de elenco veio logo no começo, quando ele conseguiu Rosanna Arquette, já uma estrela com Depois de Horas e Procura-se Susan Desesperadamente no currículo. Mas o que a fez dar uma chance a esse jovem novato? “Adorei o roteiro”, disse Arquette em entrevista por telefone. “Achei que era bem escrito e engraçado. E aí, veja só, tínhamos David Bowie, o que era muito empolgante”.
Shepard mandou o roteiro para Bowie só de brincadeira, com a ideia de que ele e a lenda do rock Mick Jagger poderiam interpretar os extravagantes donos do restaurante do filme. “Mandamos o roteiro para eles na maior ingenuidade, para eles fazerem papéis pequenos, sem oferecer dinheiro nem nada”, lembrou Shepard. “Recebemos um bilhete de Bowie dizendo: ‘Estou interessado no seu filme, mas não quero fazer esse papel coadjuvante. Gostaria de fazer o papel principal’”.
Bowie queria interpretar Monte, o barman britânico de um restaurante badalado no centro da cidade que tenta convencer uma de suas colegas de trabalho, a aspirante a escapologista Lucy (Arquette) a se casar por causa do green card, mas é convencido a ajudá-la a roubar seus empregadores. Marlee Matlin, Eszter Balint, Buck Henry e Andre Gregory completaram o elenco; o futuro indicado ao Oscar Thomas Newman compôs a trilha sonora, e Robert Yeoman, o diretor de fotografia de Wes Anderson, estava atrás da câmera. O filme foi filmado em trinta dias em 1990.
“Ele era simplesmente fantástico no set”, disse Arquette sobre Bowie. “Adorei trabalhar com ele, adorei a energia dele e sua capacidade de se conectar com o momento, o que é o sonho de todo ator”.
A natureza colaborativa e descontraída da filmagem não se estendeu à pós-produção. Shepard tinha apenas cinco semanas para entregar uma versão, então seu corte estava mais para montagem bruta. “Eu tinha uma lista de coisas que queria mudar”, explicou, mas, como era um cineasta novato e sem poder nenhum, o filme foi cortado sem sua supervisão. “Tem uns jump cuts estranhos, tomadas muito longas”, disse ele, acrescentando: “Não tinha ritmo nenhum”. Essa versão de 98 minutos foi lançada sem cerimônia nos cinemas americanos na primavera de 1992. Uma versão mais longa saiu na Europa.
As críticas foram variadas – desde Janet Maslin, do New York Times, que caracterizou o filme como uma “comédia alegremente bizarra”, até Lawrence Cohn, da Variety, que o considerou uma “produção pobre e sem inspiração”. Mas as resenhas não importaram muito: ninguém foi ver. Com certeza não ajudou o fato de o filme ter chegado às telas de Los Angeles no momento em que a cidade estava sob toque de recolher devido aos violentos protestos pela absolvição dos policiais que foram flagrados em vídeo espancando Rodney King. The Linguini Incident caiu no esquecimento.
Mas a carreira de Shepard decolou: ele dirigiu (entre outros) Pierce Brosnan em O Matador, Jude Law em A Recompensa e Allison Williams em A Perfeição. Mas o gosto ruim daquele primeiro esforço ficou na garganta do cineasta, hoje com 59 anos. “Era o único filme que tinha meu nome, mas não era a minha versão”, disse ele.
Assista ao trailer:
Até agora. Três anos atrás, Sarah Jackson, uma das produtoras do longa, entrou em contato com Shepard e sugeriu que eles readquirissem os direitos de The Linguini Incident, refizessem o filme de acordo com a visão original de Shepard e o lançassem pela primeira vez em Blu-ray e streaming [Nota da redação: até a publicação deste texto, o filme havia sido lançado somente para o mercado dos Estados Unidos]. Foi mais fácil falar do que fazer. As produtoras e os financiadores originais do filme tinham falido havia tempos, depois de vender os direitos para outras empresas que também faliram. Os cineastas foram salvos por uma pesquisa da Variety: um artigo de 2004 revelou que Linguini era um dos sete filmes cujos direitos autorais haviam sido reivindicados pelo Screen Actors Guild por causa do não pagamento de “valores residuais” aos atores. Depois de uma longa negociação, Shepard e Jackson fizeram um acordo com o sindicato para comprar de volta os direitos.
Mas tudo o que o sindicato possuía eram os direitos autorais. Quando Ridley Scott ou Francis Ford Coppola montam uma versão do diretor, eles podem trabalhar com os elementos originais – filmes, negativos, montagens anteriores, trilhas sonoras. Mas, neste caso, os materiais já tinham desaparecido, espalhados aos quatro ventos naquela enxurrada de fechamentos e falências. Shepard não conseguiu encontrar nem mesmo uma cópia em 35 mm, o mínimo necessário para a digitalização em 4K de que precisaria para começar a trabalhar. Por fim, ele encontrou um cinema de arte em Zurique que tinha exibido o filme alguns anos antes, e esse cinema o colocou em contato com uma distribuidora britânica que detinha os direitos europeus do filme. E para fazer novas cópias, se necessário, essa distribuidora tinha um interpositivo de 35 mm – um negativo duplicado, “quase imaculado”, explicou Shepard, “principalmente porque eles nunca fizeram muitas cópias, então não estava arranhado nem nada”.
Como esse interpositivo era para a versão europeia, um pouco mais longa, a digitalização em 4K deu a Shepard mais espaço para trabalhar. “Então, no novo corte”, disse Shepard, “pude acelerar o ritmo e me livrar de todos aqueles jump cuts estranhos que não estavam dando certo. E depois, com a nova tecnologia 4K, pude fazer zooms e reenquadramentos e dar ao filme uma energia que ajuda a contar essa história meio esquisita”.
E assim, finalmente, o cineasta está feliz com seu longa-metragem de início de carreira.
“Olha só, eu sei que ele não vai bater nenhum recorde quando for lançado em Blu-ray e streaming”, disse ele, dando risada. “Mas, para mim, é a versão do filme que eu quero que as pessoas vejam. É diferente. É estranho. Não se parece com nenhum outro filme”.
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(Foto: Divulgação/Isolar)
Texto traduzido pelo Estadão do NYT