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CRÔNICA DO LEITOR

DANIELA AMARAL | Sábado

17/09/2024

Por Daniela Amaral

Naquela manhã, tive um sonho desagradável. Na verdade, durante a noite toda fui atormentada por lembranças. Ao despertar, logo recordei que ele sempre me acordava com aquela tosse irritante. Não sei dizer se o mais incômodo era ele ou aquela maldita tosse que estava sempre presente na vida dele, até mais do eu própria. Mas, nesse sábado eu estava animada. Afinal, era um dos meus dias favoritos e eu podia andar tranquilamente pelas ruas de forma descompromissada, sem a necessidade de ser simpática, amável ou sexy. Não precisava fingir que gostava de ir no muquifo do Alcides e muito menos deglutir um sonho rançoso de nata. Ando no calçadão e em meio as minhas desagradáveis lembranças vejo um vendedor de algodão doce. Que como uma aranha, tece os fios de açúcar nas cores do arco-íris, alegrando as crianças ao seu redor. Parada e fascinada com aquela dança açucarada, sou despertada por uma gota de chuva que cai sobre o meu rosto. Lembrando-me imediatamente do motivo de estar ali naquele momento. Saio a passos apressados em direção à loja de cortinas, com todo o cuidado para não arranhar os meus sapatos. Há certos prazeres na vida de uma mulher que somente ela tem o dom de entender. Esses momentos não são feitos para ser entendidos e sim vividos. Por isso, nunca se deve desprezar o poder e o equilibro de uma mulher em cima de um Louboutin.

Voltando os meus pensamentos ao que realmente interessava, fui de encontro ao vendedor e lhe mostrei o meu objeto de compra do dia. Aquela era a primeira vez na vida em que eu comprava algo do tipo, aliás nunca fui uma mulher muito prendada e ligada aos pormenores do lar. E sinceramente nunca achei que cortinas tivessem muita utilidade. No entanto, naquele momento, peguei-me pensando na possibilidade de brincar com elas. Assim que estivessem instaladas, podia abri-las e a qualquer momento, como ocorre em um palco de teatro, poderia abri-las e apresentar o espetáculo da minha vida aos espectadores dispostos a apreciá-lo. Encenando momentos rotineiros do meu dia ou talvez satisfazendo o público com peças um pouco mais “calientes”. Como eu vazia com ele. — Que diabos, por que logo hoje ele insiste em me assombrar? Por que logo no sábado?

Do lado de fora da loja a garoa insistia em cair, lenta e preguiçosa. Para o dia de hoje, havia escolhido uma camisa de seda, eu sabia que, se me molhasse, mostraria um pouco mais do que devia. No entanto, o simples fato de me ver aprisionada naquele lugar ou naquela situação me deixou inquieta e, então, ajeitei a camisa com delicadeza dentro da saia e saí correndo. Não podia deixar aquele pequeno contratempo estragar os planos que havia traçado durante a semana. Já fora da loja, fui rumo à banca de revistas. Se é que podia chamar aquele lugar assim. Era fato que o local não tinha o charme do velho mundo e nem a sofisticação do mundo novo. Mas, ao menos devia ter a Marie Claire do mês. Desviei o máximo possível dos pingos que caiam, como se pudesse ter algum poder sobre eles. Cheguei ao meu destino, extremamente irritada, pois as coisas estavam começando a sair do meu controle.

Entrei correndo na banca, pois a chuva insistia em cair e comecei a procurar o periódico. Mas tudo o que eu vi foram revistas em quadrinhos e sentado ao lado delas, um homem magro, velho e porque não dizer assustado. Ali diante de mim, vi todos os meus pesadelos. Aquela figura, era tudo o que eu lutava para esquecer, aquele homem me lembrava tudo o que eu mais odiava em mim. Recordava-me a minha pior versão e trazia as piores lembranças do que um dia eu havia sido. Não senti culpa ou remorso do que fizera com ele naquele trágico dia. Porém, ali parada, diante daquele fantasma, revivi cada palavra pronunciada naquele hospital. E por mais que parecessem cruéis, tinha certeza de que tudo que fizera havia sido uma espécie de libertação para ambos. As palavras ditas naquele dia não só nos libertaram, mas também encerraram um ciclo doentio de dominação e poder. Ele havia alimentado a sua vaidade e sugado a minha alma, a essência da minha juventude e beleza. E eu me satisfazia com o luxo material que ele proporcionava. Ambos nos valíamos de pura vaidade e ganância. Sempre acreditei que era um acordo de negócios, em que ambos ganhavam. Sabia que ele havia seguido a sua vida, me julgando como uma mulher fria e cruel. E por um breve momento desejei não existir. E ao mesmo tempo soube que eu estava tentando matar tudo aquilo que eu fui um dia. Em seguida corri. Fugi de mim, fugi dele. Corri, como nunca o tinha feito antes. E nesse momento, simplesmente pensei: — Danem-se os Louboutin.

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