Por Ernani Buchmann –
Trezentos e sessenta e nove anos depois cumpri meu dever mais uma vez, depois de ter estripado um vanderlei à beira do Capibaribe. Escutei os passos de Felipe Camarão atrás de mim, cortando o pelotão na diagonal, antes de sentir uma cutelada nas costelas:
— Liquide o vanderlei, gritou.
Dei um passo à frente e tratei de desenrolar a espada da corda que também amarrava as calças. Segurei a arma com a mão direita e marchei em direção ao condenado.
O vanderlei não tirou os olhos azuis dos meus. Preso com as mãos para trás, desprezou o cumprimento da sentença e seu executor.
Parei antes de dar o último passo. Levei a perna direita à frente e empurrei a espada na região dos intestinos, cortando tudo até dilacerar o fígado.
O galego rugiu baixo e apoiou-se nos joelhos. Foi desabando devagar, enquanto o sangue jorrava. Limpei a espada na calça e voltei de costas, contando os dez passos até entrar de novo em posição.
Camarão deu ordem de sentido, meia volta volver e marche.
— Acrescente mais detalhes, disse o oficial. De onde veio a espada, se sabemos que os soldados não tinham esse tipo de arma naquela guerra?
— Os oficiais vanderlei tinham. A espada era de um capitão que encontrei morto, atingido por estilhaços de canhão e deixado para morrer. Roubei a espada porque a peixeira curta me deixava exposto. Aí passei ela para o quadril esquerdo.
— Tenho dúvidas se as formações eram rígidas a ponto de permitir o Camarão cruzar o pelotão na diagonal.
— Pode ser deformação da minha memória, Major. Tenho certeza de ver o vanderlei acompanhando a marcha do comandante com os olhos.
— Quantas pessoas seguravam o condenado?
— Nenhuma, havia dois soldados ao lado dele, vigiando seus movimentos.
— Em que data em que ocorreu a execução?
— O fato se deu às cinco horas e oito minutos da manhã do dia 28 de setembro de 1648. O corneteiro convocou o pelotão às cinco horas. Marchamos cinco minutos até o local. Camarão chegou em seguida, em dois minutos tinha atravessado a formação. Levei mais um minuto para estripar o vanderlei.
— Anotado, soldado. O inquérito será completado com suas informações.
O resultado poderia levar meses, talvez um ano. No intervalo, poderia procurar um padre para contar meus pecados com a mulher do francês, 122 anos mais tarde, na praia de São José da Coroa Grande.
Não são os únicos pecados a me torturar. Tenho à frente outros séculos de expiação, começando pelos mais dilacerantes à memória. Toda noite, sem nunca mais sair desta vida, remoo cada um deles.
Sobre a mulher do francês, foi paixão doida, daquelas de fazer estremecer as pernas, encher o corpo de brotoejas, salivar 24 horas por dia, até amortecer os sentidos e dormir desfalecido. Então fui ao padre.
— Como vocês se encontravam?
— O francês me hospedou em sua casa. Ele vivia naquele paraíso em frente ao mar, amancebado com a rapariga Maria de São Thiago, nome de batismo arranjado pelo padre viajante que lhe deu o sacramento, já que a moça Maria, com 12 anos, não tinha pai conhecido. Três anos depois, quando o francês aportou ali agarrado a um tronco, sobrevivente de naufrágio, ela cuidou dele e se tomaram por marido e mulher. Viveram bem por quase dez anos, até o francês se desgarrar da vida por conta da cachaça. Quando cheguei, cansado de andar pelo sertão há mais de século, ele me deu pouso.
— Então tu e a mulher traíram a confiança do francês.
— Foi aos poucos. Quando a paixão desembestou, padre, não houve Cristo que segurasse a luxúria, a volúpia, o tesão, desculpe o palavreado.
— Quanto tempo durou a sem vergonheira?
– Dois meses, se tanto. É que o francês acordava e bebia. Entornava pela manhã adentro, a ponto de desabar antes do sol se pôr a pino. Dormia onde estivesse. Mas antes mesmo de fechar os olhos, eu e a mulher já estávamos montados um no outro.
— Quantas vezes por dia chegavam ao êxtase?
— Muitas, padre. Às vezes ela derramava mais uns goles na boca do marido, enquanto eu a pegava por trás. Preciso entrar em tantos detalhes?
— Já não é necessário, meu filho. Estou satisfeito.
— Espero sua complacência. Estar condenado a não morrer, castigo maior alguém conhece?
— Que outras ofensas cometeste?
Nem precisei puxar pela memória. Na Revolução Pernambucana de 1817 alinhei com a reação do Império sob o comando do Conde dos Arcos. No açoitamento do Frei Caneca, estive entre os que lhe deitaram o lenho.
— Relate.
— Ele foi preso para Recife. Eu era do pelotão do capitão Tiburço, vigia da cadeia. O capitão mandou quebrar o orgulho do Frei. Então tiramos o homem da cela e levamos para o pátio, onde o corpo foi colocado sobre um toco de árvore que servia de descanso. Açoitamos até ele desmaiar. Naquela noite, ainda meio morto, foi jogado dentro do navio que seguia para o sul.
— E o orgulho?
— Quebrou não, o cabra era uma rocha.
— Aonde mais aplicaste teus desatinos?
— Em Canudos estive também. No exército do Conselheiro empalei alguns esbirros do Coronel César. Ficaram lá, pendurados em poste, descarnando ao sol.
O padre mandou que rezasse. Todas as rezas, todos os dias, quem sabe o Senhor se apiedasse. Depois segurou as pontas da batina e deixou o confessionário sem proferir a sentença de morte.
Isso faz tempo, para mais de cinquenta anos. Já me tinha conformado: se não posso morrer, aceito o destino de homem desde sempre em guerra.
Não trago mais a peixeira nem a espada. Agora sirvo-me de uma faca, lâmina com dois palmos de comprido, aço damasco forjado, cabo de chifre de cervo argentino – os de cervo brasileiro não prestam, são ocos, podem se soltar da lâmina – estilo sorocabana, pomo de prata fechando a empunhadura.
Ontem, como contei lá atrás, estripei mais um. Na subida do cemitério escutei alvoroço. O pirralho chamou:
— Múmia, a chefia convocou seu serviço. Um x-9 espera pelo destino lá no barraco do comando.
Afiei a faca no granito de um túmulo, pedi licença ao homem do céu, rezei pela alma do bandido e fui cumprir a obrigação. A vida é isso mesmo.