A exposição do esquema de fraudes no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em abril deste ano, deixou claro que, além da fragilidade do acesso aos sistemas Instituto, a inclusão digital de idosos ainda é um problema no Brasil.
A investigação da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União (CGU) revelou que um golpe aplicava descontos indevidos em aposentadorias e pensões, em descontos feitos diretamente na folha de pagamento de benefícios para idosos. Sem o conhecimento de como acessar ou usar as plataformas do INSS, milhares de idosos foram afetados pelo esquema sem, sequer, ter percebido o problema — e a notificação para os afetados sobre ressarcimento também ocorre somente por lá. Ao todo, mais de 9 milhões de beneficiários teriam sido atingidos, e o prejuízo pode ultrapassar R$ 8 bilhões desde 2016.
Edna Maria Silva, aposentada de 75 anos e participante do programa USP 60+, não foi uma das vítimas da fraude, mas se encaixa na parcela que não faz uso diário da plataforma do instituto. Ela relata que prefere resolver questões presencialmente. “Não uso o app do INSS. Prefiro resolver as coisas pessoalmente. Teve uma vez que minha irmã recebeu um pedido de empréstimo com a minha voz. Dá medo”.
José Mauro Pereira Brandão, 63 anos, aposentado, também enfrenta barreiras quando tenta acessar o sistema. “Tenho o app do INSS no celular, mas quem acessa são meus filhos. Eu mesmo só entro quando preciso, tipo na época do imposto de renda. Tenho dificuldade até com totens em shoppings e lanchonetes. Fico nervoso, me atrapalho, eu digo até que tenho fobia disso”.
A digitalização dos serviços do INSS, embora tenha agilizado processos como a prova de vida, impôs barreiras para muitos idosos. Em uma pesquisa da CGU, 72,4% dos entrevistados desconheciam os descontos associativos em seus benefícios, e 42,4% nunca haviam utilizado o aplicativo Meu INSS. A falta de familiaridade com ferramentas digitais dificultou a identificação e contestação das cobranças irregulares, aumentando a vulnerabilidade desse público.
Essa não é uma história nova. De acordo com um levantamento do TIC Domicílios 2024, o porcentual total de usuários de internet que utilizam a rede para acessar serviços digitais como INSS, FGTS, seguro-desemprego, auxílio-doença ou aposentadoria é de 25%. Para a faixa acima de 60 anos, esse número cai para 14%, enquanto a maior porcentagem de acesso está na faixa etária de 25 a 34 anos, com 32%. Isso provavelmente representa filhos ou netos desses idosos, que acessam os serviços em nome deles.
Procurado pelo Estadão, o INSS não comentou sobre a possibilidade de o ressarcimento ser feito exclusivamente pelo aplicativo Meu INSS, mas afirmou que o app é apenas um dos canais de comunicação utilizados para alertar sobre problemas envolvendo o Instituto. Segundo o órgão, os canais principais de divulgação foram a imprensa e a Central de Atendimento 135.
Com dificuldades de acesso, os idosos viram alvos preferenciais de golpistas, que enviam mensagens falsas pelo WhatsApp ou realizam ligações para solicitar dados pessoais sob o pretexto da prova de vida.
O problema se agrava com a redução do atendimento presencial. “Hoje, quem não está incluído digitalmente está socialmente excluído”, afirma Egidio Dórea, coordenador do programa USP 60+, que oferece cursos de letramento digital para idosos. “Num mundo envelhecendo, com alta taxa de isolamento e preconceito etário, a inclusão digital é essencial”.
Desafios variados
Especialistas apontam que a digitalização avançou sem considerar o nível de conhecimento dos idosos. A vice-presidente da Sociedade Brasileira de Gerontecnologia, Taiuani Marquine Raymundo, destaca que os idosos têm enfrentado dificuldades crescentes com apps governamentais, como o do INSS. “Muitos relatam problemas, bloqueios e até descontos indevidos na aposentadoria. Isso mostra como a vulnerabilidade digital impacta diretamente seus direitos”, afirma.
Situações do dia a dia, como pedir comida em shoppings, tornaram-se novos desafios. Em muitas praças de alimentação, o pedido só pode ser feito via aplicativo ou totem digital, sem atendentes físicos, restringindo o acesso de idosos que não dominam a tecnologia ou sequer possuem smartphone.
“Tenho fobia de mexer com caixa eletrônico, por exemplo”, relata Brandão, de 63 anos. “Nunca procurei curso de letramento digital, embora eu saiba que eles existem. Acho útil, mas no meu caso é mais complicado por causa do medo mesmo.”
Serviços essenciais também exigem habilidades digitais. Em farmácias, por exemplo, descontos só são acessíveis via login em aplicativos. “Hoje até na conta de luz colocam nosso CPF, antes não era assim”, diz Edna, “Nossos dados estão com qualquer um e por isso ficamos receosos”.
Medo de confiar na tecnologia
A queixa é recorrente entre os mais velhos. Segundo Taiuani, “os idosos chegam até nós com receio de usar tecnologia. Buscam também a paciência que não encontram em casa. As dificuldades são básicas: acessar, confiar e saber até onde ir em um aplicativo. Eles têm muito medo de errar, de clicar em algo errado e não ter quem resolva”.
Para a especialista, o problema vai além da interface dos aplicativos. “A digitalização avançou sem considerar o nível de conhecimento dos idosos. Muitos apps mudam o tempo todo, como os do governo ou bancos, gerando insegurança. Essa população, que já está à margem digital, se sente mais vulnerável e, por isso, está mais sujeita a golpes”.
Guilherme Silveira, CIO da escola online de tecnologia Alura, explica que muitos idosos não tiveram formação profissional com computadores e evitam cursos da área. “Aplicativos com reconhecimento facial, por exemplo, também criam barreiras. Essas soluções pressupõem que todos têm o mesmo nível de familiaridade com tecnologia, o que não é verdade”.
Cursos de letramento digital
No programa USP 60+, um dos cursos mais procurados é o de letramento digital, dividido em níveis. “Quem nunca usou celular começa aprendendo o que é internet, como ligar o aparelho e acessar redes sociais. Conforme avança, aprende a usar ferramentas mais complexas”, explica Egidio Dórea.
Apesar de 70% dos idosos brasileiros acessarem a internet, apenas 15% fizeram algum curso de capacitação digital. Dórea detalha: “Cerca de 50% estão no nível básico, ou seja, só conseguem mandar ou receber mensagens no WhatsApp. Outros 40% estão no nível intermediário, com dificuldade para fazer compras online ou usar aplicativos”.
Segundo Guilherme Silveira, a ausência de políticas públicas agrava o problema. “O mercado de tecnologia é guiado pelo capital. Ferramentas são feitas para quem consome mais. Só quando há pressão, via regulação ou denúncia, mudanças são feitas pensando em públicos como o dos idosos”.
Para os especialistas, o caminho está na educação. Taiuani mantém desde 2016 um projeto de letramento digital presencial na Universidade Federal do Paraná, com aulas baseadas nos interesses dos alunos. “O método é centrado no interesse deles: WhatsApp, Uber, app de banco, redes sociais. Alguns já querem aprender sobre inteligência artificial”.
Edna, que fez diversos cursos na USP, incluindo o de letramento digital, reforça que o processo de aprendizado é possível, mas demanda tempo e apoio. “Dificuldade com tecnologia todo mundo tem. Lá na USP, os colegas ajudam muito, coisa que a família não tem tempo para fazer. Hoje me viro bem, resolvo tudo pelo celular.” Mesmo assim, ela é cautelosa: “Não gosto de comprar nada pelo celular. Prefiro ver com meus olhos, vejo tantos caindo em propaganda enganosa”.
A pressão social também pesa. “Há o reforço social de que idosos ‘não sabem usar tecnologia’, o que eles acabam absorvendo”, diz Taiuani. “A família também não ajuda: dizem ‘deixa que eu faço’ e o idoso continua sem aprender”.
Silveira lembra que nem mesmo notificações importantes chegam da forma certa. “A tecnologia costuma propor soluções como apps e notificações, mas uma pessoa mais velha que não foi letrada digitalmente terá o celular cheio de alertas irrelevantes. A notificação importante acaba se perdendo no meio”.
Apesar dos desafios, há esperança. “A pandemia mostrou que idosos podem aprender e se adaptar. O que falta são políticas públicas para garantir acesso a todos, não apenas aos que conseguem chegar até a USP ou ao SESC”, conclui Dórea.
(Imagem: Freepik)
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