Nunca havia conhecido Paris, mas, na adolescência, Katya Patella, de 60 anos, passeou pelas ruas da capital francesa por meio da descrição de um livro. Não se lembra do título ou mesmo do enredo da obra, entretanto as descrições ficaram marcadas em sua mente.
Enquanto lia, acabou divagando e imaginou a si própria na cidade. O resultado disso foi um sonho que carregou consigo até conseguir uma bolsa para ficar seis meses na França como parte de um doutorado sanduíche.
“Eu fui até a França, divaguei e, de repente, voltei para a realidade, mas com um planejamento muito grande na minha cabeça: ‘Eu vou para a França. Não sei como, mas eu vou’.”
Katya se lembra de como, na infância, gostava mais de passar os dias lendo na biblioteca da tia do que brincando no quintal. Lia desde Machado de Assis até obras de Direito, mesmo sem conseguir entender muita coisa.
A paixão pela possibilidade de desbravar mundos oferecida pela leitura resultou na escolha de carreira como professora de Português. Hoje, ela dá aula no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Para Katya, entrar em um devaneio durante a leitura permite explorar possibilidades, memórias e cenários futuros.
Nem toda viagem em que Katya entra ao ler algo diz respeito àquele material em si ou é produtiva. Pode ser, por exemplo, o caso de ter se lembrado de uma tarefa pendente. Nessas situações, ela diz que ri e volta a se concentrar na leitura.
Mas nota a frustração de seus alunos diante da divagação, vista como algo que os fez perder tempo. “Se culpam por aqueles 5, 3 minutos e como se tivesse perdido tempo da vida.”
De acordo com uma pesquisa publicada em março de 2023 na revista Frontiers in Human Neuroscience, a divagação tem potencial de enriquecer processos cognitivos que ocorrem durante a leitura, como imaginação e reflexão.
As conclusões dos autores se contrapõem à ideia de que devanear atrapalha o fluxo de leitura e a tirar conclusões do texto, por ser considerada uma atividade que interrompe comportamentos direcionados para objetivos.
A professora de Literatura da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat) Marta Cocco considera que a divagação pode ser bastante produtiva. “Essa abordagem de que a leitura é linear, de que a gente tem que prever objetivos específicos e ter um controle sobre os efeitos do sentido, isso é furada”, diz.
Ela considera que tem em si própria uma “mente divagante”. “Até pouco tempo atrás isso pra mim era um problema do qual eu queria me curar”. Apesar da frustração de Cocco, foi a partir de um momento de devaneio durante uma leitura teórica sobre gêneros textuais que ela teve uma ideia na qual resultou no livro infantil de título Escrituras animais. No livro, diferentes bichos falam sobre diferentes gêneros textuais por meio de rimas.
Com as letras estáticas e congeladas, o texto escrito permite ao leitor divagar e retornar ao mesmo ponto, enquanto nem todos os formatos oferecem essa possibilidade. Para o audiobook por exemplo, o ouvinte precisa pausar o conteúdo e, então, mergulhar em seus próprios pensamentos.
Segundo a professora, o hipertexto, intensificado pela internet, fornece uma experiência similar à da divagação. O ato de clicar em links na internet, muitas vezes sem retornar ao texto original, leva o leitor a diversos lugares. Da mesma forma, age a divagação.
Além disso, uma pergunta feita a partir de uma divagação durante a leitura na internet pode resultar em um clique em um diversos outros links.
Mesmo em meios em que a leitura tem maior tendência a ser linear, como um livro, a mente não lê de forma linear. Em algum momento, algo pode chamar atenção do indivíduo, como uma palavra desconhecida, e levá-lo para outros lugares, principalmente em leituras que exijam maior capacidade de atribuir significados.
A professora explica que o primeiro ato da leitura, o que as crianças aprendem primeiro durante a alfabetização, é a de decodificar as palavras, ou seja, um trabalho quase de tradução. Mas ler envolve mais do que combinar letras e formar sons.
Durante a leitura é preciso interpretar e atribuir significados às palavras e à combinação delas. O esforço imaginativo durante essa atividade é grande. “Na divagação, não há um vazio mental. Pelo contrário, é uma atividade intensa, como é a imaginação”, explica Marta Cocco. Ela cita o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard que nomeou a divagação como faculdade de imaginar.
Quando a divagação pode ser negativa?
A professora de leitura da Universidade Federal de Goiás (UFG) Rosângela Carreira ressalta, no entanto, que nem todo o devaneio tem efeitos positivos. Em alguns casos, ela decorre do não entendimento e da desconexão do leitor com o texto.
Nesse caso, diz ela, existe um problema na leitura. “É aquela divagação que vai interferir nas inferências que você pode fazer, que vai interferir no processamento, porque não tem entendimento, então o sujeito divaga”, analisa. Uma das causas para a desconexão pode ser a falta de letramento do leitor. À diferença da alfabetização, o letramento varia para cada pessoa e corresponde à capacidade de leitura do mundo.
Já a divagação positiva possibilita o processamento de informações, o que pode construir conhecimento. Para ela, ainda quando a divagação não é benéfica para o leitor, trata-se de um processo natural da leitura.
“Mesmo você sendo leitor proficiente vai ter divagações que vão interferir no seu processamento. É natural. Vai depender de muitas coisas, como do seu dia, do cansaço, do seu conhecimento daquele texto.”
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(Foto: Annie Spratt/ Unsplash)