Por Isabella Honório
Ensaio, passagem de som, show, fotinha pro Insta, acerto do cachê, monta e desmonta a bateria, “toca Raul!”. Já parou para pensar no que rola por trás dos palcos quando você sai para curtir uma música ao vivo? E quem são aqueles caras tocando lá em cima? Será que eles tem que ouvir da tia no almoço de domingo que era melhor “arrumar um emprego de verdade” ou será que dá para tirar uma graninha legal no final do mês com essa história de banda? Tudo isso enquanto o público reclama de pagar couvert artístico e do preço do ingresso. Por isso, essa reportagem foi atrás dos dois lados da coisa – dos músicos e dos bares da noite curitibana – e descobriu que nem tudo é sexo, drogas e rock n’ roll – às vezes é preciso falar de dinheiro.
A disputa é eterna e a negociação é quase sempre tensa. São bares e bares, e bandas e bandas. No caso de artistas menores, que tocam em bares pequenos e com menos estrutura, não é incomum o cachê vir em forma de “experiência” e dois vale-cerveja. Entre as modalidades de pagamento, a grana pode vir da venda de ingressos, couvert artístico, cachê pago pelo caixa do bar ou consumação. Além disso, a falta de respaldo legal dos contratos feitos na base da conversa, leva muitos artistas que estão começando a levar calote.
A divisão não tem muita regra – a casa pode ficar com porcentagem do couvert sem dar explicações ao artista. Inclusive, na busca pela regulação, o Projeto de Lei 117/2023, ainda em tramitação, propõe que todo o valor arrecadado com a cobrança de couvert artístico seja pago ao músico, que terá direito a fiscalizar todo o processo, que ainda vai depender de quantas pessoas vão aparecer por ali para consumir durante a noite.
E claro, a casa também corre riscos ao contratar música ao vivo. O artista pode não dar o retorno financeiro esperado pelo contratante. Além disso, nos movimentados bairros Centro e São Francisco, donos dos estabelecimentos precisam conviver entre a necessidade de garantir o entretenimento do público e a reclamação dos moradores da região, no constante risco de ter o evento interrompido por ações policiais ou levar multas pelo som alto. Esse é o caso do Janaíno Vegan (@janaino.vegan), que conta com duas unidades, uma na clássica Rua São Francisco e outra no Largo da Ordem. A proprietária, Natyla, conta que no primeiro endereço era mais difícil colocar som no bar, que tinha apenas discotecagem, devido às reclamações. Após a abertura da unidade do Largo, a programação noturna do fim de semana é sempre cheia de shows de artistas independentes de jazz, samba e rock n’ roll.
Janaíno Vegan no Largo da Ordem (Foto: Gabriel Peralta)
Acerto de contas
“A negociação é quase sempre estressante. Tem muita gente que diz que o valor é muito acima do que se pode pagar. E sem querer ser arrogante, acho que toda banda tem seu preço. Tem muita gente que leva na boa, mas também tem sempre gente que diz ‘Tá louco? Quem vocês acham que são?”, relata Eddie Foster, frontman da banda Firecraker (@firecrackerband). O grupo faz versões de hits do pop rock, como Harry Styles e Coldplay, em bares de Curitiba. Na estrada há 20 anos, Eddie explica que não é todo contratante que está disposto a pagar o preço do show, que já é tabelado.
Firecrakcer (Foto: Divulgação)
O mesmo acontece com a banda de hard rock Backstage (@backstage.tributos), que também faz covers. “A gente tem o nosso valor fixo. Não abaixamos, e ele só sobe. Não tem negociação, a gente não pode colocar preço no trabalho dos outros, e eles não podem colocar preço no nosso trabalho”, conta Beto Ferreira, vocal do grupo. Quando a banda já está estabelecida na sua cena, ela ganha o poder de escolher em quais bares vão tocar, a depender do tratamento no momento da negociação. “Só tocamos quando o bar respeita a gente e a gente respeita o bar”, completa Beto.
Ambas as bandas tocam no Sheridan’s Irish Pub, localizado no Batel, que recebeu elogios dos músicos. Para a Backstage, locais como Blood Rock Bar, Tork n’ Roll, Crossroads e Clay Highway, atendem os padrões de remuneração da banda e recebem suas apresentações frequentemente. Eddie e Beto relataram o rompimento de relações com bares no passado por sentirem que o trabalho da banda estava sendo menosprezado.
Backstage (Foto: MAteus Cantaleano)
O vocalista da Firecracker conta ainda que considera abusiva práticas de alguns bares, como a remuneração por número de músicos na banda ou o não pagamento do valor integral do couvert, recursos que driblam a possibilidade do artista de precificar o próprio trabalho. E uma constante entre os músicos entrevistados foi a de que não se pode colocar preço no trabalho alheio. A opinião é compartilhada por Natyla. No Janaíno, quem define o valor do cachê é o artista: “Eles passam o valor e se está muito acima do que a gente pode pagar, explicamos a situação. Às vezes dá para entrar em um acordo, mas quando não dá, a gente não fica insistindo. Eu não gosto de colocar preço no trabalho dos outros”.
Mas claro, não é toda casa que trabalha com essa política. Artistas menores constantemente relatam se sentir desvalorizados. Ton Black (@tonblackmusic_), músico independente de R&B e soul music, se apresenta em bares e eventos, mesclando uma setlist de autorais e covers, no esquema voz e violão ou guitarra. O artista diz entender músicos que precisam de dinheiro e acabam aceitando qualquer valor oferecido pelos contratantes, e relembra uma situação pessoal: “Uma vez entrei em contato com um bar para mostrar meu trabalho, eu queria tocar. E eles me responderam que o cachê era R$ 180 para tocar por 4h. Ainda falaram que eu tinha direito à uma água. Nisso eu senti muita desvalorização, não só no meu trabalho, mas dos músicos no geral”.
Ton Black (Foto: Divulgação)
Para a baterista da banda de garage punk Cigarras (@bandacigarras), Babi Age, não dá para confiar só no cachê quando o assunto é manter a banda financeiramente estável. Hoje, a principal fonte de renda do grupo autoral é a venda de merchandising. “Na verdade o cachê é bem mínimo perto dos gastos que a gente tem. Acho que as pessoas poderiam valorizar bem mais. Ainda mais porque somos uma banda que está crescendo e conseguindo chegar a lugares diferentes”, diz Babi. A grana arrecadada é revertida para o próprio projeto, custeando a compra de equipamentos e gastos com shows fora da capital.
A batera da Cigarras ainda comenta sobre a falta de adesão do próprio público, que dificulta a arrecadação dos bares para pagar os músicos convidados: “Eu até entendo o lado dos bares, porque às vezes tem show e o público não aparece. Tem que ter um equilíbrio para não apontar o dedo e dizer que a culpa é só dos bares. A culpa também é do público, que quer shows, mas quando tem, não vai”.
Cigarras (Foto: Divulgação)
Apesar do relato de experiência negativa com o engajamento do público, para Jean Rodri, produtor de eventos do pub Jokers (@jokerspub), também localizado na badalada rua São Francisco, as apresentações têm um impacto positivo no movimento e faturamento do bar. “A música ao vivo tende a proporcionar mais momentos de diversão. E cliente feliz, é igual a comércio feliz”.
E tocar por bera, pode?
Depende. Quando o assunto é tocar de graça, as opiniões se dividem. Deixando as guitarras um pouco de lado, Marcos Bientinezi faz parte do grupo Samba do Presidente, projeto que surgiu para divulgar o trabalho da escola de samba curitibana Imperatriz da Liberdade (@imperatrizdaliberdade). Com shows fixos no bar Canecão, ali no comecinho do Largo, toda quinta e domingo (que inclusive, é um rolê muito massa), Marquinhos consegue complementar sua renda: “Eu tenho meu salário e o samba para mim é um hobbie onde eu consigo ganhar uma renda extra. Do meu cachê sobra o valor quase integral. O cachê me ajuda a pagar bastante coisa”.
Por isso, diferente do que já fez no começo da carreira, Marquinhos hoje só toca com remuneração: “De graça é complicado. A gente só faz quando é relacionado à Fundação Cultural ou à Escola de Samba, porque tem gastos como gasolina e Uber”.
Tocar de graça em eventos abertos promovidos pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC) também é constante entre os músicos. Ton Black conta que se apresentar nesses espaços é uma chance de divulgar suas próprias composições: “Nunca toquei de graça em bares e casamentos, jamais. Mas já em relação a ser um artista autoral, já toquei de graça por ser uma oportunidade como um festival da prefeitura. Aí não tem cachê, mas é uma questão de opção do artista, se ele quer ter mais visibilidade, uma oportunidade de tocar e se apresentar para as pessoas da cidade”.
Samba do Presidente (Foto: Divulgação)
Não receber para fazer shows é muito mais comum entre bandas autorais. Babi Age lembra que no começo da banda, não era raro se apresentar sem receber cachê, tudo em nome da divulgação da banda. Neste ano, a Cigarras ganhou um sorteio para abrir o show de Marky Ramone em Curitiba, na próxima quarta-feira (11), no Tork n’ Roll. Mesmo com a falta de remuneração, Babi conta estar animada: “É uma oportunidade de mostrar o trabalho. Vai lotar, vai ter um monte de gente que nunca soube da nossa banda, porque é dificil você chegar em certos lugares sendo uma banda independente. E a gente super topou, vale a pena tocar de graça nesses casos”.
Tanto no Jokers quanto no Janaíno, todas as apresentações são remuneradas. Jean reconhece a importância de sempre pagar os músicos que tocam na noite do bar. “O cachê é definido em conjunto, através de uma negociação entre músico e produção. O que se pode dizer é que de modo geral é isso: se contratamos, pagamos”.
A proprietária do Janaíno também conta sobre o modelo de remuneração da casa: “Todas as bandas recebem. Isso é um dos pontos que definem quem a gente consegue trazer. A maioria dos rolês é gratuito, então tem alguns artistas que gostaríamos de trazer mas não conseguimos, porque o cachê sai das nossas vendas e não tem bilheteria, então acaba travando um pouco”. Os músicos contam também que quando o contratante não paga cachê, geralmente recebem cerveja e lanches.
Alestorm no palco do Jokers Pub (Foto: Jean Rodri)
Dá para viver de música? autoral versus cover
A ideia cruza a cabeça de todo artista. Imagina ver seu projeto dar lucro e poder viver apenas do que ama. Life could be dream. Muitas vezes é complicado até mesmo sustentar a própria banda, e a grana gasta com os instrumentos, equipamento de som, transporte e material de divulgação sai do próprio bolso dos músicos. Vários fatores, como tempo e espaço para ensaiar, possuir carro próprio ou quando o músico tem filhos e é o principal responsável por colocar comida na mesa, definem se é possível “largar tudo” para correr atrás do sonho de viver de música. E em uma questão as bandas autorais e covers concordam: falta união da classe artística para exigir valores mínimos e tratamento adequado dos contratantes.
Na Firecracker, a banda sempre teve uma pegada profissional, e atualmente, todos os membros tiram o sustento do próprio projeto. Eddie conta que nunca encarou o grupo como um passatempo – para ele, é um trabalho. A escolha por seguir como banda cover facilitou o processo, ainda mais com a estratégia adotada pelos músicos, que renovam o repertório da banda conforme o que está no topo das paradas no momento. O vocalista trabalha paralelamente em um projeto solo autoral, mas admite que é o cover que dá dinheiro.
Já Beto relata que ainda precisa trabalhar por fora, mas espera depender somente da renda do Backstage. “Todo músico tem o plano de viver de música, mas nem sempre sai como planejado. A não ser que mude para outro estilo. Mas no meu caso não vai acontecer porque eu amo o rock”, diz ele. Com um repertório de Bon Jovi, Queen, Aerosmith e Guns n’ Roses, o grupo tributo faz cerca de três shows por semana. Mesmo com a agenda cheia, o vocalista admite que, se bandas autorais receberem mais apoio dos bares e do público, optaria por fazer música autoral. “Mas para nós não compensa. Todos os bares de Curitiba tem uma demanda por bandas, e são covers”, conta Beto. “A mesma pessoa que paga R$ 30 para ver uma banda cover, não quer pagar R$ 10 para te ver tocar seu autoral”, completa.
Há uns 20 anos, Babi tocava em uma banda tributo aos Beatles, época em que ganhou os maiores cachês da vida. Mas agora não quer mais saber. Sócia de uma loja de produtos para bateria, onde a guitarrista da banda também trabalha, a baterista vai se virando para complementar a renda e sustentar o projeto. Assim como Beto, Babi enxerga que o público faz parte do problema, principalmente no cenário da capital paranaense: “Em Curitiba, as bandas autorais recebem menos, porque o público infelizmente prefere ir em um bar que toca cover, do que ir em um bar underground ver uma banda que compõe sua própria música”.
Mas nem tudo está perdido. Apesar da preferência dos curitibanos por bandas cover, e a resistência para pagar ingressos e couvert (mesmo que muitas vezes o valor seja baixo, em torno de R$ 15 para bandas de punk rock autoral como a Cigarras), bares do Centro, como o Janaíno Vegan, Lado B e Capivara são alguns dos que são abertos para receber artistas independentes em busca de espaço – o que também gera resultados positivos para a casa. Sobre o cenário, Babi conclui: “Eu espero que as coisas mudem, não só para a gente mas para todo mundo que acredita e que faz algo novo. A gente precisa estar renovando. As Cigarras acreditam que ainda vão poder viver de música”.
Confira alguns sons autorais
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(Foto de capa: @Gabriel Peralta)
Créditos da foto de capa: Gabriel Franco @peralta_jpg no Janaino Vegan – show da banda Cassandra @cassandraduo