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LITERATURA

Especial 330 anos: Curitiba é a capital da literatura?

31/03/2023
LIVROS

Por Isabella Honório

 

“Curitiba sem pinheiro ou céu azul, pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar –, esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo”, escreve Dalton Trevisan (foto) no livro Em Busca de Curitiba Perdida. Viajar até é uma boa, mas nada convida melhor a ficar debaixo das cobertas, com os dedos entre as páginas de um livro do que essa cidade, que às vezes consegue ser tão fria e antipática. Curitiba completou 330 anos nesta quarta-feira (29), e segue ostentando sua fama de capital cultural, dona de uma extensa produção literária. Entre as prateleiras dos sebos no centro da cidade que guardam Trevisan, Leminski e Kolody, fica a pergunta: Curitiba é mesmo a capital da literatura, ou “é só para inglês ver”?

Do vampiro ao pop

Impossível não começar falando dele. O vampiro que se escondia na esquina das ruas Ubaldino do Amaral e Amintas de Barros e só cruzava seu caminho caso fosse buscar um paõzinho francês. E se você desse muita sorte. Dalton Jérson Trevisan, nasceu na Curitiba de 1925 e colocou a cidade no mapa da literatura nacional. Sexo, violência e os pensamentos mais sórdidos que podem cruzar a cabeça de um observador calado das ruas da cidade  são os temas característicos dos seus contos, que somados ao estilo e ritmo de sua escrita, dão forma à uma literatura que é ao mesmo tempo sólida e transgressora. Entre suas obras, vale a pena incluir na estante O vampiro de Curitiba (1965), A trombeta do anjo vingador (1977) e Novos contos eróticos (2013).

 

Os textos são dignos do choque de qualquer conservador até hoje. O desapego às normas é um traço dos autores da cidade – e alguns se arriscam a dizer o porquê. Para o jornalista e escritor Marcio Renato dos Santos, “aqui em Curitiba não existe o filtro de uma editora grande, exigindo um tema comercial, então o autor talvez possa escrever o que o impulsione. O Dalton tem uma variedade temática muito grande na obra dele. Apesar de ser associado com o ‘vampiro’ e traições, ele tem um livro, por exemplo, o Desgracida, que tem cartas que ele inventa que tenha trocado com grandes amigos dele. A literatura dele tem o viés do lado mais sombrio do ser humano”.

 

Mas tem escritor que prefere jogar o jogo do mercado editorial, e o colocar ao seu favor. É o caso de Paulo Leminski (1944-1989), o poeta que bebia na fonte da contracultura nacional e internacional enquanto rolavam os ‘Anos de Chumbo’, curtia os beatniks e tinha um bigodão muito maneiro. E o cara era publicitário, se dava bem com as câmeras. Trabalhou como tradutor, viu seu poema Verduras ser gravado por Caetano Veloso e estrelou um programa de clip-poemas na TV Bandeirantes. Entre o cult e o pop – e com uma pitada de humor – a receita para o apelo popular estava pronta. O lançamento de Toda poesia, em 2013, pela Companhia das Letras, confirma o sucesso comercial do “samurai-malandro”.

 

Ainda no território dos poemas, a cidade tem Helena Kolody (1912 – 2004), que nasceu em Cruz Machado mas dá para chamar de curitibana. A poetisa foi uma grande amiga e influência para Leminski, também chegada no haicai e na cultura japonesa. Filha de imigrantes ucranianos, Kolody dedicava sua poesia ao introspectivo e reflexivo. É como sugere seu livro Sinfonia da vida. A personalidade conquistava, assim como a escrita – homenageada em 1992 na composição de Gerson Bientinez, Valsa para Helena Kolody, e no documentário de Sylvio Back, A babel da luz (1992). No mesmo ano, Helena foi a segunda mulher a integrar a Academia Paranaense de Letras, ocupando a 28ª cadeira.

Cidade dos contos e crônicas

Nenhum romancista até agora. Normal. Ao menos em Curitiba. Não é que não existam boas narrativas longas produzidas na capital do Paraná. Manoel Carlos Karam, por exemplo, entra para essa conta. Mas não restam dúvidas de que o conto seja o gênero predominante na cidade. A preferência pelo formato, de acordo com Marcio Renato, que ocupa a 36ª cadeira da Academia Paranaense de Letras, é influência direta, inclusive para ele, de Trevisan. “O conto é forte na cidade por causa do Dalton. Quando ele morrer, as pessoas vão ver, vai ser do nível do Machado de Assis – e já é. Ele não é só isso de ‘vampiro de Curitiba’, da facada pelas costas e da traição”, conta ele.

 

O escritor reforça que as narrativas curtas não são uma literatura de menor valor: “O conto é uma obra de arte. Não é fácil por ser curto, ele tem suas regras, suas nuances”, ressalta Marcio Renato. Também é estratégico. Não apenas porque se encaixam nas brechas da vida corrida e fragmentada da cidade grande. Em um lugar onde as editoras se consolidaram há pouco tempo, enquanto romances têm mais apelo comercial, a facilidade de circulação do conto é uma vantagem para autores pequenos. Yuri Al Hanati, jornalista, escritor e fundador do canal Livrada! no youtube explica que “existe uma questão editorial. O mercado pede romance e as pessoas que vão para São Paulo são as que estão mais interessadas em participar dele. Aqui o pessoal escreve mais por gosto e uma série de razões que não necessariamente encontram os anseios editoriais”. O cronista cita ainda as editoras curitibanas Telaranha, Arte & Letra e Barbante.

 

Já a crônica, o gênero híbrido queridinho dos jornalistas, é perfeito para a personalidade do curitibano. Yuri, que publicou as coletâneas A volta ao quarto em 180 dias e Bula para uma vida inadequada, arrisca a hipótese: “A crônica, como esse exercício cotidiano de observação e de exploração subjetiva literária, é um gênero muito próprio das pessoas caladas, das pessoas quietinhas. Curitiba é uma cidade que estimula esse tipo de comportamento. As pessoas são mais quietas aqui, são menos expansivas, se metem menos na vida dos outros, mas gostam de observar e anotar mentalmente o que estão vendo”.

 

Políticas públicas

Se Curitiba tem interesse em manter a imagem da capital cultural, a Prefeitura Municipal tem um papel claro: apoiar a produção e difusão de produções locais. A Fundação Cultural de Curitiba, órgão responsável pelas políticas públicas de cultura da cidade, mantém espaços culturais, promove eventos, cursos e oficinas e está ligada às leis de incentivo. A partir dos editais publicados, artistas e produtores podem acessar espaços e materiais para tornar os projetos possíveis.

 

O coordenador de Eventos e Publicações da Biblioteca Pública do Paraná, que é gerida pelo governo do Estado, Omar Godoy, comenta: “Penso que é importante sempre comparar nosso cenário com outras regiões do Brasil. Nesse sentido, acredito que estamos entre os estados e cidades que mais apoiam a cultura de forma geral”. Para ele, não apenas a oferta, mas a procura por atividades voltadas à cultura é forte na cidade. “É indiscutível que Curitiba está entre as cidades que mais promove e recebe eventos – e isso significa que a demanda e o interesse dos curitibanos por cultura e arte é grande”.

 

Fora do eixo e nas entrelinhas

Não é Rio de Janeiro ou São Paulo. Um pouco mais ao sul, Curitiba encontra espaço para desenvolver uma personalidade de escrita própria. Então, para quê furar a bolha?

 

Luci Collin, uma das maiores expoentes da literatura curitibana contemporânea, defende que não é preciso tentar se encaixar. “Rio e São Paulo são o eixo, Curitiba é o desleixo. Mas essa ideia de ‘des’, que está fora do eixo, é muito saudável. É mais ou menos ‘distraídos venceremos’ [em referência à obra de Leminski]”, diz ela. Para a autora, que afirma ser apaixonada pela cidade, não estar no centro das atenções é libertador. “Nós já exportamos tantos valores, não precisamos provar mais nada”, completa.

 

É nessa irreverência em que a cidade se imprime no papel. Novos autores locais conseguem olhar para trás e encontrar um conteúdo literário inspirador. É nessa troca entre gerações, como aconteceu com Kolody e Leminski,  que Collin enxerga uma característica em comum nas produções curitibanas. “A inventividade. Essa cidade tem alguma coisa que nos impulsiona a um tratamento diferente na palavra escrita. Temos essa marca que é demolidora quando necessária”, ressalta ela. A contista ainda ousa dizer que “pouquíssimas cidades do Brasil tem uma literatura tão inventiva, com nomes – não só de curitibanos mas de escritores que escolheram essa terra para estar – que produziram uma literatura que derruba as fronteiras da cidade”.

 

Apesar da fama áspera que seus habitantes levam, Curitiba tem um jeitinho acolhedor com autores de outros lugares. Yuri, que nasceu em Angra dos Reis (RJ), e chegou na cidade em 2004 para cursar Jornalismo na Universidade Federal do Paraná, encontrou razões para ficar. “Curitiba tem esse clima um pouco mais introspectivo e melancólico da cidade que pega a gente eventualmente. É algo que me cai bem. A cidade me abraça neste sentido e isso acaba afetando a literatura também”, confessa o escritor. A relação cidade e literatura é uma via de mão dupla. Para entender Curitiba, entenda sua literatura; e para entender sua literatura, entenda Curitiba. Talvez não seja só “para inglês ver”.

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(Foto de capa: Reprodução)

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