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HojePR

Especial: A constituição cidadã que mudou o Brasil

18/07/2022
constituição

Por André Lopes, Fernando Ghignone e Israel Reinsteim

 

Nos últimos quatro anos, a Constituição brasileira virou a “Geni” da sociedade. Como a personagem da música de Chico Buarque, parte do campo político e do econômico, impulsionados por movimentações estranhas e escusas, apedrejam a Lei Magna, buscando desmoralizá-la. Os pedidos de mudanças da constituinte, que é normal em qualquer sociedade, foram substituídos pela agressão e desvalorização da mais longeva das constituições brasileiras.

Nos gabinetes do Congresso, nas audiências públicas, nos corredores da Câmara Federal e Senado mais de 10 mil pessoas circulavam levando propostas e emendas populares para se tornaram lei. Vale saber como esse processo foi democrático e como os interesses de todos, de banqueiros a bancários, de sem-terra a fazendeiros, entre outros, foram postos dentro da Constituição brasileira.

A Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1985 pelo presidente José Sarney, trabalhou durante 20 meses. Participaram 559 parlamentares (72 senadores e 487 deputados federais), com intensa participação da sociedade.

Diante disso, para debater sobre o tema, o HojePR convidou personagens que participaram da Assembleia Constituinte e escreveram a Constituição Cidadã de 1988. Na mesa, os ex-deputados Nelton Friederich (PDT), Nilso Sguarezi e Roberto Freire (Cidadania). Todos descreveram a importância da Constituição e como ela foi feita. A conversa contou com a participação do empresário Atilano Oms Sobrinho.

 

Momento político brasileiro

Nelton Friederich – Nós vivíamos um momento intenso e de tensão. Houve a democratização, mas havia uma situação crítica. A criação de uma Assembleia Constituinte não era uma proposta prevista pelos militares. Para eles, essa era uma proposta maldita.

É preciso retroceder um pouco na história e lembrar que o processo de reabertura democrática e a implantação da Constituinte foram feitos graças a pressão popular. Essa pressão começou entre 1972 e 1974 e foi crescendo. Tivemos movimentos vindos do MDB, movimentos da Sociedade Brasileira pela Ciência e da Associação Brasileira de Imprensa. Tudo culminou na reabertura, processo de Diretas Já, que culminou no primeiro ato pelas Diretas em Curitiba. Depois ganhou corpo com 1,5 milhão de pessoas em um extraordinário movimento em São Paulo.

 

Roberto Freire – A possibilidade de discutir a Constituinte deixou a sociedade efervescida. Todos queriam participar da criação das leis num processo democrático e sem o jugo do poder militar. Era a oportunidade de ajudar no projeto de construção do Brasil, sob o olhar democrático. Havia um senso de responsabilidade, de luta por direitos, movidos pelo anseio de criar uma sociedade justa e atendendo ao cidadão brasileiro.

 

Nilso Sguarezi O que chamou a atenção nesse processo foi o envolvimento da sociedade. Todos tinham uma história de luta democrática e trouxemos de nossas terras para Brasília. A minha luta começou no movimento estudantil, na Faculdade de Direito, onde participei do Congresso de Belo Horizonte (Congresso da União Nacional dos Estudantes – UNE), ao lado de Vitorio Sorotiuk, uma das vítimas da ditatura. Depois me tornei vereador e três vezes deputado estadual até me tornar um deputado constituinte. Meu sonho, quando cheguei em Brasília, era participar do processo de redemocratização e da instauração de um novo Estado de Direito.

 

Atilano Oms Sobrinho E é verdade que todos queriam participar. Os empresários em Curitiba formaram o Grupo de empresários de Curitiba e o Grupo dos 13,  que passaram a estudar as leis e discutir propostas para encaminhar aos deputados. Havia a porta aberta para o diálogo. A discussão pela democracia era intensa. Nosso objetivo era tornar um país que gerasse o desenvolvimento e a Constituinte acaba trazendo avanços que não existiam. E o desenvolvimento econômico, de um Brasil forte, era o ideal dos empresários.

 

Como se formou a Constituinte

Freire Nosso projeto de Constituinte fugiu de todos os modelos que existiam no mundo. Nós viramos a discussão de cabeça para baixo. Em geral, as constituintes eram discutidas antes e se criavam um projeto que serviria de base. Era o “boneco” da Constituinte. A comissão Afonso Arinos tinha avançado em algumas ideias e propostas, mas queríamos dar, de verdade, a voz para a sociedade. E saímos do zero. A ideia fundamental era ter o maior envolvimento da sociedade brasileira, abrindo a porta para as sugestões populares, por meio de Emendas Populares. Talvez por isto, essa é a Constituição com maior permanência na História brasileira, seja no período Imperial ou na história da República

 

Friederich Nunca tivemos na história das constituintes brasileiras um envolvimento tão grande da sociedade. Para se ter uma ideia, 10 mil pessoas circulavam nos gabinetes, nas audiências públicas, nos corredores, ao redor do Congresso, trazendo ideias, sugerindo emendas, discutindo os temas. Mas para que isto acontecesse foi preciso definir as regras. Demoramos vários dias para criar as regras do jogo. E o principal trunfo foi a Emenda Popular, algo que não existiu nas outras constituições brasileiras. O resultado é que teve 122 emendas populares, com mais de 2 milhões de assinaturas dos brasileiros.

 

Sguarezi Tínhamos o apoio dos notáveis da Comissão Afonso Arinos, grandes juristas e grandes pensadores. Nas discussões de cada tema, tínhamos os representantes legítimos de cada assunto. Tivemos os sem-terra com fazendeiros. O bancário com o banqueiro. O pessoal do campo discutindo com o pessoal da cidade. Importantes questões foram discutidas, como a do indígena, a questão social, o meio ambiente, o direito do consumidor, a proteção social, o impulso para desenvolvimento industrial, proteção do trabalhador, etc… Tudo foi discutido.
Rompemos uma barragem da censura e do autoritarismo, com uma enxurrada de sonho e de esperança.

 

Atilano Sabíamos com quem conversar para defender os interesses da sociedade. Contratamos a consultoria da fundação Getúlio Vargas para nos subsidiar. Os deputados pediam propostas e tínhamos a credibilidade de levar ideias para a Constituinte. Às vezes éramos chamados para defender de forma oral as nossas propostas outras vezes entregávamos material pronto, que ajudava na discussão. Havia um movimento de empresários em Curitiba interessados em melhorar o Brasil e estava muito conectado com os deputados constituintes do Paraná.

 

Sguarezi Além dos empresários, teve movimentos fortes, como das mulheres. Elas levaram propostas que foram construídas ao longo dos anos. Ideias que traziam o Brasil para a modernidade. Elas conseguiram colocar 88% da sua agenda da constituinte, assim como o movimento negro e sua luta contra o racismo.

 

O que falhou?

Freire A nossa Constituinte não falhou. Ela está forte, mesmo com a série de ataques. Mesmo com as ações desse governo fascistóide, que não respeita a Constituição. A democracia continua firme e a Constituição está dando consistência para as a nossas instituições. Ela precisa ser revisada. Acredito que fomos muito detalhistas na Constituição e a sociedade se modernizou. Mas ela continua como o bastião democrático. Entendo que a solução da Constituição não cabe apenas a Brasília, mas a Federação, ao Brasil. Não se pode mudar a Constituição sob o olhar centralista de Brasília, mas com o olhar do Brasil.

 

Sguarezi – Me dói muito quando querem mudar a Constituição por qualquer motivo, por interesses escusos, por interesses econômicos, políticos partidários, por qualquer motivo. Ao longo dos anos não foram feitas as leis complementares. Um exemplo: quais são as funções do vice-presidente, além de representar o presidente. Nem isto foi regulamentado. Mas houve mudanças de diversos itens da Constituição. Mais de cem emendas, a última foi a isenção das multas aos partidos políticos, que não respeitaram o cumprimento de vagas para a mulheres nas eleições. Esse distanciamento de Brasília tem irritado a sociedade, que não se sente representada. Não se sente representada pelo fundo partidário ou a quantidade de assessores, das rachadinhas e desvios.

 

Nova Constituinte

Atilano É preciso revisar a Constituição. A sociedade se modernizou, mas a essência da Constituição deve ser mantida. Deve mudar o que é essencial, o que hoje impossibilita o crescimento da sociedade.

 

Friederich Hoje cada deputado quer mudar a Constituição em cima de estranhos interesses. E para isto usa  argumentos e acusações. Antes de tudo, a nossa Constituição não é socialista, mas capitalista. Ela buscou o bem-estar social, o que os países desenvolvidos hoje defendem. A Constituição reconhece a livre iniciativa e é conectada com o direito do trabalhador. Uma mudança precisa levar isso em conta. Não podemos pensar em desenvolvimento sem uma indústria forte. Outros países como China, Coréia e França estão investindo e protegendo suas indústrias. Diferente do Brasil, em que há um desestímulo. Defendo a reforma da Constituinte mantendo os 13 primeiros artigos da Constituição, que nos garante o bem estar social e a democracia direta, em que as pessoas podem, diretamente, decidir o seu destino.

 

Sguarezi Defendo que seja feita a uma nova Constituinte. Que os constituintes sejam do povo, escolhidos do povo, sem direito a se reeleger, ficando inelegível por 10 anos. Essas pessoas vão discutir o Brasil e a constituinte. Um tema que precisa ser discutido é o sistema político. A Constituinte aprovou, em 1988, um sistema parlamentarista, que foi substituído por um presidencialismo de coalizão. Em nenhum lugar do mundo funciona um presidencialismo com 30 partidos e outros 40 a serem criados. Copiamos o modelo americano, que é bipartidário. Mas fizemos errado e isto precisa ser corrigido. Acabar com a ditadura dos partidos. Permitir que uma pessoa possa se candidatar sem ter o partido, sem recursos do fundão.

 

Friederich Temos a primeira Constituição que estabelece a democracia direta. Todo poder emana dos seus representantes. Temos a primeira Constituição que estabelece a palavra democracia. Mas vivemos uma nova forma de democracia. A nova democracia é uma democracia de rede, dos movimentos sociais e dos movimentos digitais. É possível discutir uma constituinte com maior participação social. Temos a oportunidade de discutir uma nova Constituinte, revisar o que é preciso melhorar. Mas pensando no Brasil.

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