A Polícia Federal acredita que bancos conseguiram retornos expressivos com as fraudes contábeis praticadas pelo comando da Americanas, deixando fornecedores e acionistas minoritários da varejista como os maiores prejudicados pelo esquema que gerou um rombo estimado em R$ 22,8 bilhões.
Sem citar nominalmente nenhuma instituição financeira, a PF afirma no relatório final da investigação que bancos tinham conhecimento dos níveis de endividamento da Americanas, além de estarem a par da omissão de passivos nas demonstrações financeiras, o que permitia mensurar os riscos envolvidos na relação comercial com a empresa.
“Além disso, obtiveram retornos expressivos com a oferta de diversos produtos que deram sustentação ao longo do tempo para a administração dar continuidade à prática da manipulação de seus resultados. Assim, as instituições financeiras também se ‘beneficiaram’ ao longo do tempo por essa prática fraudulenta de resultados majorados”, conclui a PF.
Uma nova frente de investigação apura se bancos contribuíram dolosamente para as fraudes. Essa etapa tem amparo em revelações de pelo menos três delatores, ex-executivos da varejista.
Fábio da Silva Abrate − um dos delatores −, ex-diretor financeiro e de relações com investidores da Americanas, alegou que as fraudes não teriam ido tão longe sem a suposta ajuda de instituições financeiras. O executivo afirmou que, como as operações de risco sacado eram um negócio lucrativo para os bancos, eles ocultaram informações sobre esse procedimento adotado pela empresa.
Procurada, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) disse que se pronunciou sobre o assunto em audiência pública no Senado, em março de 2023, e que reitera a posição da época, “mesmo diante das conclusões do relatório da PF”.
O Estadão teve acesso ao relatório da PF, documento de 346 páginas assinado pelo delegado federal André Gustavo Veras de Oliveira, que integra a Delegacia de Combate à Corrupção e Crimes Financeiros − braço da Superintendência Regional da PF no Rio de Janeiro.
As conclusões da PF são a base da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal no mês passado contra 13 ex-executivos e ex-funcionários da Americanas por associação criminosa, falsidade ideológica e manipulação de mercado.
A PF indiciou Miguel Gomes Pereira Sarmiento Gutierrez, Anna Christina Ramos Saicali, José Timotheo de Barros, Marcio Cruz Meirelles, Anna Christina da Silva Sotero, Luiz Augusto Saraiva Henriques, Carlos Eduardo Rosalba Padilha, Murilo dos Santos Correa, João Guerra Duarte Neto, Jean Pierre Lessa e Santos Ferreira, Maria Christina Ferreira do Nascimento, Fabien Pereira Picavet e Raoni Lapagesse Franco Fabiano.
A reportagem do Estadão busca contato com as defesas. O espaço está aberto para manifestação.
Os peritos apontaram fornecedores como os principais prejudicados pelas fraudes contábeis. A PF afirma que, sem ter conhecimento da real situação patrimonial e financeira da Americanas, eles “mantiveram níveis de relacionamento e condições ao longo do tempo que, de certa forma, acabaram beneficiando” a varejista.
A PF também afirma que o acordo de recuperação judicial da Americanas impôs aos fornecedores “condições desfavoráveis no recebimento de seus créditos”.
Segundo a denúncia da Procuradoria, a Americanas usava operações de risco sacado para gerar fluxo de caixa compatível com o que afirmava ter em seus balanços contábeis maquiados. Só que a dívida contraída nas operações era omitida dos balanços.
O risco sacado é uma operação de crédito comum em negócios do mercado varejista e atacadista, principalmente nas empresas que mantêm grandes estoques. A varejista compra a prazo de um fornecedor e, para adiantar o pagamento (ao fornecedor) e obter preços melhores, pede emprestado a um banco.
Enquanto as fraudes estiveram em operação, por mais de uma década, os acionistas receberam dividendos lastreados em resultados majorados artificialmente, mas depois que o caso veio a público o valor de mercado das ações da Americanas despencou.
“Os valores recebidos foram consideravelmente inferiores à perda patrimonial na ordem de 80% causado pela desvalorização do valor de mercado das ações, após a publicidade inicial às fraudes em 11/01/2023″, destaca o relatório da Polícia Federal.
Ex-executivos detalham como a fraude foi operada
Revelações de três ex-executivos do Grupo Americanas levaram a Polícia Federal a reconstituir a maior fraude corporativa do Brasil. Fábio da Silva Abrate, ex-diretor financeiro e de relações com investidores, Marcelo da Silva Nunes, também ex-diretor financeiro, e Flávia Carneiro, ex-superintendente de Controladoria, detalharam como a companhia adulterou balanços contábeis para omitir dos investidores a real situação de suas finanças provocando um rombo superior a R$ 20 bilhões.
Os trechos mais contundentes dos depoimentos estão transcritos no relatório final da investigação da PF. Segundo a denúncia da Procuradoria, que preenche 322 páginas, as fraudes alcançaram a marca de R$ 22,8 bilhões.
A data exata do início das fraudes é desconhecida. Segundo os depoimentos, as manipulações ocorreram por mais de uma década. Flávia Carneiro narrou que, quando entrou na empresa, em 2007, já identificou “inconsistências”, mas “num montante demasiadamente inferior”. “O orçamento era uma meta a ser atingida, e não refletia a realidade. Essa meta era sempre baseada no ano anterior, que também não era real, e isso passou a virar uma bola de neve”, afirmou a executiva.
Flávia relatou que conversou sobre as manobras com Carlos Padilha, ex-diretor financeiro da empresa, que segundo ela “pediu para resolver esse problema em doses homeopáticas, já que a empresa iria abrir capital, e não poderiam dar um baque no resultado logo nesse momento”. “Naquela época essas irregularidades eram num volume muitíssimo inferior ao que passou a ser praticado nos últimos anos”, narrou Flávia.
A executiva declarou ainda que começou a se “desesperar” porque “nitidamente não era possível” justificar os resultados declarados, mas segundo ela o comando do grupo queria garantir um “crescimento constante”. Flávia disse que ficou “surpresa” que “o modus operandi tenha persistido por tanto tempo”.
Internamente, as fraudes eram amplamente conhecidas, segundo os delatores. Fábio Abrate cravou que havia um conhecimento generalizado e institucional sobre as manipulações envolvendo o risco sacado. “Todo mundo dentro da companhia”, garantiu. “A operação era muito grande. A operação chegou… Ela começa pequena e ela chega num nível que a área financeira inteira sabia do risco sacado, a área comercial inteira sabia do risco sacado.”
O relatório da PF conclui que havia um “conhecimento coletivo, que transcende uma prática individual e sugere um possível ambiente corporativo de conivência em relação à prática ilícita”. Para os investigadores, esse detalhe caracteriza a conduta de uma organização criminosa.
No anexo 2 do acordo, o ex-executivo afirmou que o volume de dívidas relacionadas a juros de risco sacado alcançou patamares tão significativos que ultrapassou os limites convencionais de registro contábil. A Polícia Federal afirma que havia uma “estratégia deliberada de obscurecimento das informações econômico-financeiras perante os stakeholders e o mercado de capitais”.
“Não se tratava apenas de um mero equívoco contábil, mas de uma potencial prática sistemática de não transparência, onde não somente o risco sacado deixou de ser registrado como despesa financeira, mas o custo financeiro integral da operação foi deliberadamente suprimido das comunicações oficiais destinadas aos investidores e ao mercado financeiro”, conclui o delegado federal André Gustavo Veras de Oliveira, que conduziu as investigações desde a instauração do inquérito da Americanas, em 18 de janeiro de 2023.
Fábio Abrate também implicou bancos em sua delação. Segundo o ex-executivo, as fraudes não teriam ido tão longe sem a suposta ajuda de instituições financeiras. Ele afirmou que os bancos ocultaram informações sobre operações de risco sacado da Americanas. “O banco não apontar na carta de circularização foi decisivo para a perpetuação da fraude”, disse Fábio Abrate.
O ex-diretor financeiro da Americanas alegou que, como as operações de risco sacado eram um negócio lucrativo para os bancos, “principalmente Itaú e Santander”, ele ameaçou encerrar os contratos se as informações não fossem retiradas das cartas de circularização − documento que atesta as informações financeiras de uma empresa.
“Se o banco interrompe naquele momento, a gente não tinha chegado onde a gente chegou. Não teria chegado, por exemplo, a esse número de R$ 20 bilhões que a gente chegou depois”, estima Abrate.
A partir dessas declarações, a PF concluiu que “configurou-se, assim, uma articulação deliberada cujo propósito nuclear residia na perpetuação do ocultamento das dívidas financeiras no âmbito do mercado de capitais”.
Em nota, o Santander disse que teve um prejuízo estimado em quase R$ 4 bilhões pelas fraudes da Americanas. O banco repudiou “qualquer tentativa de transferir a terceiros a responsabilidade pelas demonstrações financeiras da Americanas, cuja elaboração e veracidade cabia exclusivamente aos administradores daquela companhia”.
Procurado, o Itaú também negou qualquer participação, direta ou indireta, nas fraudes. “O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa, conforme legislação vigente e melhores práticas de mercado.”
Marcelo da Silva Nunes afirmou que o “processo de fechamento de resultado de final de ano era sempre muito traumático porque tinham de ser cometidas várias fraudes para esconder da auditoria”.
O executivo também explicou em detalhes uma segunda modalidade de fraudes: o registro fictício de cartas de verba de propaganda cooperada (VPC), as verbas de publicidade. A VPC é uma espécie de pagamento feito por fornecedores para divulgar melhor ou ter mais exposição de seus produtos nas lojas. Esse pagamento geralmente significava um desconto no valor devido pela varejista pela compra dos produtos. A Americanas registrava a VPC de ações de marketing que nunca existiram e, com isso, reduzia as despesas com fornecedores, informou o ex-diretor financeiro.
Segundo Nunes, foram criados e-mails falsos para dar suporte às cartas de VPC fictícias. “Os fornecedores não tinham noção que os e-mails das Cartas de VPC eram alterados”, alegou.
Os três delatores não foram denunciados pelo MPF em razão de seus acordos de colaboração.
Com a palavra, o Santander
“O Santander reitera que é uma das vítimas das fraudes perpetradas no âmbito da Americanas S.A., que geraram um prejuízo estimado em quase R$ 4 bilhões à instituição. Na última semana, o Santander apresentou manifestação formal ao Ministério Público Federal, colocando-se à disposição das autoridades para prestar quaisquer esclarecimentos necessários à elucidação dos fatos. O Santander reafirma seu compromisso institucional com a legalidade, a transparência e a mais absoluta ética empresarial e repudia, de forma veemente, qualquer tentativa de transferir a terceiros a responsabilidade pelas demonstrações financeiras da Americanas, cuja elaboração e veracidade cabia exclusivamente aos administradores daquela companhia.”
Com a palavra, o Itaú
“O Itaú Unibanco nega qualquer participação, direta ou indireta, na fraude contábil que a Americanas sofreu, e irá prestar todos os esclarecimentos às autoridades para demonstrar a ausência de irregularidades envolvendo funcionários neste episódio. O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa, conforme legislação vigente e melhores práticas de mercado.
Conforme já esclarecido, os informes enviados às auditorias sempre alertavam para a existência das operações de risco sacado e da exposição de crédito da companhia aos fornecedores. Os diretores da Americanas envolvidos na operação interagiram com representantes do Itaú no sentido de retirar os alertas, como admitiu o ex-diretor Fabio Abrate em seu depoimento. O banco nunca concordou com esse pedido e, diferentemente do que informou Abrate, manteve o texto que sinalizava a exposição da companhia ao risco sacado. O Itaú, inclusive, interrompeu, por mais de 6 meses, as operações de risco sacado. O Itaú reforça que a elaboração das demonstrações financeiras é de responsabilidade única e exclusiva da administração da empresa e repudia qualquer tentativa de responsabilização de terceiros por falhas ou fraudes nessas demonstrações.”
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