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27/04/2024



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Grinalda de um poeta

 Grinalda de um poeta

Nos vinte anos em que morei em São Paulo conheci vários poetas da nova geração, alguns atuantes no núcleo da editora Patuá, dirigida por Eduardo Lacerda. Quem me introduziu nesta roda foi o poeta Daniel Perroni Ratto, que me foi apresentado pela minha filha Flávia Ribas. Eles cursavam juntos a pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura pela ECA/USP. Flávia comentou com Daniel que tinha um pai poeta e que estava lançando um livro no Cemitério de Automóveis, bar do Mário Bortolotto em São Paulo. Daniel leu meu livro Piada Louca e fez uma resenha para o portal Culture-se, onde exercia a editoria de música, em 2014. Fico muito feliz em poder retribuir esse apreço aqui e agora, neste artigo.

 

Desde então só aumentou nossa amizade. Convidei Daniel pra escrever a orelha do livro A Caverna dos Destinos Cruzados, feito em parceria com Monica Berger. Em novembro de 2019, o livro foi lançado em Fortaleza, no local de eventos Cantinho do Frango (bar, restaurante e centro cultural), com organização do Daniel Ratto. Foi um mega evento em que também foram lançados os livros Poemas de Amor Ainda, de Thadeu Wojciechowski, e Alucinação, do próprio Daniel, onde pudemos conhecer in loco a propalada hospitalidade cearense.

 

Além de poeta, Ratto é jornalista, compositor e editor. Cometeu a loucura de abrir a própria editora: a Algaroba, nesses anos de tão pouco caso com a Cultura. A Algaroba é uma árvore frondosa que dá frutos e sombra aos animais do sertão semiárido nordestino. É de resistência, assim como a literatura no Brasil.

 

Paulistano de nascimento, Daniel cresceu em Fortaleza num ambiente cheio de arte, música e poesia. Em uma entrevista para o Diário do Nordeste, em 01/12/2019, ele conta sobre sua infância mágica:

 

“Meu sítio, entre Pacatuba e Itaitinga, existe na família desde o século XIX. É o meu sítio do pica-pau amarelo. “Predadores” foi escrito no sítio. Fui criado dentro do “Pessoal do Ceará”. Meu pai, o paisagista, Moraes Costa Jr. foi goleiro do time do Fagner, o Beleza. Tenho outros “pais” cearenses como o ex-jogador e hoje ótimo jornalista, Sérgio Redes, o Serginho Amizade”.

 

Fausto Nilo, Belchior, Manasses, Capinan e Ednardo faziam parte deste ambiente em que seus pais viviam. O filho único de Torquato Neto viveu vários anos nesta família e Daniel o trata até hoje como um irmão.

 

Em 1998, aos vinte e dois anos, voltou a São Paulo para ficar, publicando seu primeiro livro Urbanas Poesias, pela editora Fiúza. Alternando moradia entre São Vicente, na Baixada Santista, e a capital paulista, o autor passa a se lançar por conta e risco na grande metrópole. “Vendia meu livro onde pudesse, na Avenida Paulista, em frente aos cinemas culturais da Rua Augusta, nas feiras como a da Praça Benedito Calixto, onde conheci o projeto Autor na Praça, idealizado pelo Plínio Marcos e comandado por Edson Lima, e o, seguinte, Autor na Noite, que foi meu primeiro palco”, lembra ele. Guarda com carinho, o programa Musikaos, na TV Cultura, de Jorge Mautner e Gastão Moreira, onde Jorge Mautner declamou seu poema Afrobahidade, do livro Urbanas Poesias.

 

Suas publicações seguintes foram: “Marte mora em São Paulo” (A Girafa, 2012), “Marmotas, amores e dois drinks flamejantes” (Ed. Patuá, 2014), “VoZmecê” (Ed. Patuá, 2016) e “Alucinação” (Algaroba, 2018), ganhador do Prêmio Guarulhos de Literatura 2019.

 

Como cantor, participou das bandas Loco Sapiens, Criolo Branco e Luz de Caroline, e é parceiro de composição de diversos artistas como Tatá Aeroplano, Daniel Groove, Fernando Maranho (Cérebro Eletrônico e Jumbo Elektro), Douglas Mam, Bleck a Bamba, Daniel Medina, Andrei Furlan, Juli Manzi, Juliano Caravela e a Banda da Portaria. Além disso, foi cronista do UOL Música, editoria de música do portal Culture-se e do jornal Diário do Nordeste. O videoclipe do poema Depois do Fim do Mundo pode ser visto clicando aqui.

 

No livro Grinalda de um Poeta, Ratto revisita 22 anos de poesia comemorando a constância na produção, não só de livros, mas de eventos literários pelo país: pra quem já o viu recitar, sabe que ele é um grande performer de seus poemas. Esse livro foi vencedor do Prêmio por Histórico de Realização em Literatura 2020, da Lei Aldir Blanc, pelo Estado de São Paulo.

 

Intrigado pelo tom parnasiano do título, perguntei ao Daniel o porquê de GRINALDA DE UM POETA. Ele me respondeu: “Quando eu li o edital do Prêmio por Histórico de Realização em Literatura, do Estado de São Paulo, me veio a ideia de fazer uma seleta dos poemas desses 22 anos de carreira literária, já que era um prêmio “por histórico”, conjunto da obra, né. Sendo assim, pra mim, foi a melhor forma de homenagear a poesia, em se tratando de algo que representasse uma vida, uma alma.”

 

O livro tem cinco capítulos, dividindo os poemas nos períodos em que foram feitos. O primeiro capítulo chama-se (1990-2000) e o último, (2016-2018). É muito interessante percorrer a evolução desta antologia pessoal desde os primeiros poemas com temática nordestina, a passagem pelo litoral santista, até desembocar na metrópole desvairada. O poema final Corpos absolvidos da imaginação parece resumir este percurso perigoso. Leia um trecho:

 

Sem ordem e à espera do progresso
ou de outra viagem à Lua
reagirei ao Golpe e às fake news

Que venha o apedeuta de fuzil
ou a Rainha de Copas
Podem cantar as vedetes da Urca
até comprar balas made in Brazil

Respeito copiosamente sua mutação
para além do calor extremo de suas palavras
sem censura peço licença e atenção
Esse delírio é de estimação, é o cercado das lavras
Da vontade de existir De minha Alucinação

 

O prefácio é de Claudio Willer, poeta, ensaísta, crítico e tradutor, reconhecidamente o mais importante estudioso brasileiro da literatura beatnik. E Willer escreve: “Sua poesia se quer fala, linguagem comum — ‘o nordestino suingue’ — mas sem por isso dobrar-se ao populismo. Expressa o sentimento de ser um exilado aqui, clamando que ‘Marte mora em São Paulo’ e como se não bastasse, ‘Saturno vive em São Paulo’”.

 

Uma outra apresentação é escrita por Tavinho Paes, poeta carioca, autor de mais de cem booklets, como chama seus livros editados de forma independente. Criador do projeto CEP 20.000, com Chacal, Tavinho é uma figura mítica do underground poético brasileiro. Chega a emocionar o prazer que ele tem na leitura do livro. Alguns trechos:

 

“A Grinalda de Daniel Perroni Ratto, com seus versos de rosas e espinhos, completa um penteado de cabelos livres que sempre foram hippies, quando o assunto é Paz & Amor, face a qualquer novo Vietnã, seja ele local ou global…”

 

“E o Poeta, diante da violência desumana das diferenças sociais, associadas aos recalques traumáticos que cada um guarda dentro de si, enquanto busca de um potente Dérèglement de tous les sens, injeta, com a firmeza da pedra que David pôs na funda, uma rosa de prata, no cano cromado de uma arma, apontada para sua cara.”

 

“…é uma Rosa Polar tão despetalada como o Pêndulo de Foucault.”

 

“… cheira forte.”

 

Já o poeta santista Manoel Herzog, convidado para escrever a orelha da obra, celebra a maturidade do autor: “Desde os anos de formação, as memórias do Ceará Natal, as referências à cultura nordestina tão bem ambientada (tal e qual o poeta) na inóspita capital paulista, o início rimado notável trabalho do editor, músico, poeta, e agitador cultural a fazer o balanço parcial de uma obra em plena construção”.

 

O estilo poético de Daniel é bem intuitivo e anárquico. Sua poesia é cheia de possibilidades, de processos. Segundo ele mesmo: “Ela pode vir como uma “inspiração”, “do divino maravilhoso”. Quando baixa o santo, a la William Blake, o poema é feito de uma só vez, sem correções posteriores. Todavia, posso trabalhar um poema por dias, meses e até anos, como João Cabral de Melo Neto fazia…Nunca tive problema com estilo próprio. Nem sei se eu tenho. Gosto das experiências, não me amarro em formas, tipos de métricas, ritmos e tipos de rimas. Posso começar um poema Concreto, continuá-lo em dodecassílabos, seguir em versos livres e terminá-lo em redondilha menor. Ou não (diria Gil)”.

 

Como sempre, nas minhas resenhas, perguntei-lhe: qual seu poema preferido do livro? Sempre tem um. Ele respondeu na lata:

 

“Sempre tem um? Sei disso não. Hahaha. Tenho vários; O Fusca do Césio, Afrobahidade (que Jorge Mautner declamou em 2000, no programa “Musikaos” da TV Cultura, no Dia da Consciência Negra), Marte mora em São Paulo, Águas de Marrecas, TRANSlúcido, Golpe, Coisa Simples, A Chegada de José Ribamar, Soneto da busca. Vixe, tem uma ruma.”

 

Então vamos finalizar com a leitura de seu poema mais conhecido, uma visão distópica e apavorante da megalópole:

 

Marte mora em São Paulo
Tudo o que pude fazer para você
deu no que deu
Comi o papel para o quê?
Tudo que ganhou foi meu.

Radioatividade de pessoas
Cantam na Paulista com Augusta
Ruas glamourosas e coroas
na vida ganha da grana sua.
Aliens atropelam corações
que tentam ser São no salmo
Homens caçam perdões
Marte mora em São Paulo.

Violência sensorial extrapola
Guerra Mundial Nuclear
Meu tesão controla
Brindes nas Ondas… No Mar.
No Mar Edificado das capitais
Perdido no concreto armado
Enjaulado como animais
Em São Paulo Campo minado.
Planos confabulados
por metro quadrado
Alienígenas de várias
galáxias na Avenida Paulista

Métrica totalmente aleatória Desagrado
Raios inversos na térmica da Atmosfera.
Amanhece com o frio usado no edredom
Meio-dia de mangas curtas e suor escorre
Balas psicodélicas perseguem o Poseidon

Sujeito seguido
dentro do software
corre
ou
morre
A mulher fatal estende a mão para o alto
Lá de cima o homem olha os terráqueos
Quadro enfocado dos sacos esfaqueados

Só eu sei que Marte Mora em São Paulo
Comunicação telepática além dos óculos
Escuros espaços nas calçadas do Universo
ali do lado perto das famosas esposas do
povo
O gigolô fuma um cigarro
e puxa a camisa de Vênus
Carros correm nas avenidas com a pressa
do tempo
Aviões monitorados nos micros trazem
pessoas
Helicópteros transportam executivos e canais
de TV
Motos desafiam a gravidade
e levam a Morte na garupa

Ninguém se entende nesse caos proposital
Minhas rimas agora seguem qualquer padrão
E fica assim então como divergência
intelectual
Das diversas formas de vida que vivem
no hospedeiro
corpo humano veículo ineficaz
de supremacia.
A praga já se disseminou e contagiou
as mentes
Os mendigos vivem nas ruas sem dentes
E não tem como resolver a problemática
Sem vacina

Marte Mora em São Paulo.
Marcianos exploram o governo Mundial
a disputa fica quente
Manipulação das criaturas noturnas
Saturno vive em São Paulo
Saturnianos enfrentam Marcianos pela posse
Guerra sanguinolenta entre espécies
Manipulação das criaturas subterrâneas
Andrômeda assalta São Paulo

Andromedanos disputam com Plutanianos
o direito de roubar energia dos nordestinos
que vieram de Mercúrio onde o vermelho
não possibilitava temperaturas satisfatórias
Os povos da Constelação de Órion
Encontraram moradia na zona Leste
Os Orionmanos se organizam nos guetos
Armamento pesado pra combater
Os alienígenas de Júpiter
guerreiros gigantes que se infiltraram
em todos os lugares do mundo
globalizando informações para poderem
dominar.

Ali e Acolá
no meio das ruas
a guerra está aberta
O Ser Humano
já não é o ser
Liberdade de ir
e não voltar
ou de ficar
e não deixar
Prospera nas leis
estabelecidas pelos Marcianos
Vou ficando como um louco
que não reconhece
as digitais da sua companheira
um fato pode ser esclarecido
O Planeta Marte Mora em São Paulo

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