Uma vez ou outra me surge a curiosidade de saber como os grandes diretores começaram. Nem sempre é um bom filme (como no caso de Pátio, curta-metragem de estreia de Glauber Rocha, que me meti a ver esses dias), mas sempre é uma boa ideia (como no caso de Jackie Brown, do Tarantino). A vítima da vez foi Hector Babenco, um dos nossos queridinhos por aqui. O Rei da Noite (1975, disponível na Netflix) foi o primeiro filme do diretor argentino, que se naturalizou brasileiro dois anos depois da produção. Não foi à toa. Com o longa, Babenco conquistou o título de brasileiro honorário nos nossos corações. O cara sacou como tudo funciona por aqui, logo de primeira.
O filme conta a história de Tertuliano (Paulo José), um jovem universitário na São Paulo da década de 1940, que entra em uma crise de personalidade após receber a notícia de que sua noiva (Dorothée Marie Bouvyer) estaria gravemente doente e precisaria viajar para se tratar. Na tentativa de afogar as mágoas na vida boêmia, Tezinho se envolve com a prostituta Pupe (Marília Pêra, que faz o brilhante papel de Sueli em Pixote) e seduz as três filhas de uma amiga de sua mãe, deixando um rastro de destruição e corações partidos no caminho, se tornando, pouco a pouco, o Rei da Noite.
Nem sei o que é mais interessante sobre o filme: a narrativa ou o que Babenco fez com ela. No maior clima Machado de Assis do século 20, a história se trata de uma típica tragédia tropical com muito sarcasmo e belos cenários, e personagens secundários tão interessantes quanto o protagonista. E que protagonista. Tertuliano é um daqueles caras difíceis de não odiar. É o namorado ciumento, o marido agressivo e o pai ausente. É um canalha de marca maior e que ainda tem coragem de se fazer de coitado. É como o amigo que viu o filme comigo disse eu empresto aqui “é o Barry Lyndon versão brasileira”.
Mas mais interessante que a Inglaterra nos anos 1700 é São Paulo nos anos 40 (desculpa, Kubrick). É uma surpresa ver a elite paulistana em seus bailes com vestidinhos curtos no estilo Coco Chanel e penas na cabeça, duas décadas depois da moda já ter passado na gringa. Detalhes como esses não passam despercebidos e são um dos pontos altos do longa. São também resultado de um trabalho atento do diretor, que se certificou que a produção seria um reflexo perfeito da época em que se passa. Não foi sorte de principiante.
Apesar de ser o primeiro filme de Babenco, O Rei da Noite não é nada café com leite. Tem ritmo, técnica e mais importante: deixa registrado desde o começo as marcas do diretor que o tornam tão único. O que sempre me chamou a atenção nos filmes do cineasta é a sinceridade, a falta de autocensura. Coisa que sabemos que Hector herdou diretamente do cinema marginal, movimento do qual era grande apreciador. Além da consistência impressionante da produção, o filme se destaca entre a filmografia do diretor – que também conta com Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977) e O Beijo da Mulher Aranha (1984) – por sua pegada experimental. Um bom presente para os fãs de cinema nacional. Seja no começo da carreira de Hector Babenco, ou no final do seu dia acompanhado de uma pipoca, O Rei da Noite é uma ótima pedida.
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