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Minha (não) convivência com Dalton Trevisan

18/06/2024
dalton

Já que Dalton Trevisan está fazendo 99 anos, quero destacar que não o conheço desde sempre. Vivemos na mesma cidade há mais de 60 anos, sem que eu o tenha visto mais que três ou quatro vezes. Em uma noite, no falecido Bar Rei do Siri, em frente ao Cemitério Municipal, frequentamos a mesma mesa, junto com duas dezenas de convivas, incluindo Paulo Leminski e Jaime Lerner.

Dalton representou muito para o meu modo de escrever. Aprendi com ele a arte de enxugar a narrativa, depurar textos. Um exame em uma de suas crônicas poéticas, como Em Busca de Curitiba Perdida, mostra o quanto ele tratou de cortar o supérfluo, extirpando adjetivos, advérbios, artigos e verbos. E ainda deverá cortar mais, na sua ânsia de deixar apenas o essencial. Já escrevi que, um dia, Dalton vai iniciar um conto pelo ponto final.

Nascido em junho de 1925, aos 20 anos fez nascer a revista Joaquim, um símbolo da literatura modernista brasileira. Editada por Dalton, com a participação essencial de Erasmo Pilotto, a Joaquim era pródiga em abrigar autores significativos de ressonância nacional, como Carlos Drummond de Andrade e Otto Maria Carpeaux, ilustrados por Poty e Heitor dos Prazeres, entre outros. Ali Dalton desancou quem estivesse atrelado ao passado literário. Emiliano Perneta, por exemplo, tido por ele como poeta medíocre.

Nos anos 1960, Dalton já era lenda em Curitiba. A essa altura, Novelas Nada Exemplares, de 1959, o primeiro livro que o escritor reconhece, com edição da Civilização Brasileira, a mítica editora carioca de Ênio Silveira, já tinha sido seguido por Morte na Praça, Cemitério de Elefantes e O Vampiro de Curitiba – este de 1965, responsável por cravar no peito do autor o icônico apelido com que passou a ser conhecido. Era um escritor curitibano por excelência.

Em fevereiro de 1970, prestes a iniciar o quinto ano na Faculdade de Direito, comecei a trabalhar como estagiário no escritório dos advogados Osmar Alfredo Kohler e Heron Arzua. Entre as minhas atribuições estava a de escrever iniciais de ações executivas e petições de âmbito administrativo.

Foi nessa função que redigi, sob supervisão de Osmar Kohler, e protocolei na Receita Federal, uma reclamação do escritor Dalton Jerson Trevisan (ele odeia seu nome do meio, como se sabe), brasileiro, escritor, residente e domiciliado em Curitiba, PR, contra a bitributação de que era vítima. O caso se referia a royalties recebidos por conta da venda de seus livros nos Estados Unidos, onde já tinham sido taxados. A Receita Federal brasileira, fiel à sanha arrecadatória de sempre, cobrou também, ao arrepio da legislação, que coíbe esse tipo de cobrança em dobro.

Até o momento em que deixei o escritório, às vésperas da formatura em Direito na UFPR, o caso continuava em tramitação. Dalton deve ter vencido aquela parada, em vista da excelência dos advogados que patrocinaram sua causa – excetuando-se o estagiário.

Ele nunca economizou em inimizades. Os desafetos mais frequentes eram os jornalistas Aramis Millarch e Cândido Gomes Chagas. Ao primeiro, pespegou o apelido de barata leprosa; ao segundo, barata de fogão. Ou vice-versa, já não recordo. A cada crítica recebida correspondia uma paulada literária. Não fez o mesmo com Paulo Leminski, que ao surgir na cena curitibana, na segunda metade dos anos 1960, provocava os escritores locais, a quem chamava de daltônicos. O substantivo era transformado em adjetivo como forma de caricaturizar a tendência de ter o escritor consagrado como modelo de estilo.

Dalton nunca replicou a provocação. Seguiu escrevendo seus livros, enquanto Leminski criava os seus. Fui aluno e, mais tarde, amigo próximo do cachorro louco. Lembro de, em nossas extensas conversas, Dalton ter sido citado apenas de passagem. É que o Polaco havia encontrado outras vias literárias a trilhar.

A timidez do Vampiro é folclórica. Ela fazia com que, de dentro da Livraria Ghignone, ligasse para seu então amigo próximo Sérgio Mercer para que fosse encontrá-lo. Só então, com a escolta necessária, atravessava o calçadão para tomar uma coalhada na Confeitaria Schaffer, sempre em mesa no fundo. Sussurrava: “Você não sabe como é assustador entrar sozinho aqui”. Esclareça-se que a confeitaria era frequentava por homens em meio ao seu expediente, senhoras em encontro de amigas, um ou outro casal. Nada de apavorante ou sinistro.

Mercer, falecido em 1996, e Dalton foram amigos por muitos anos. A amizade foi rompida por uma razão de menor importância, como foram os desentendimentos com Carlos Alberto Pessoa e outros personagens da cena cultural curitibana.

Em algum momento neste milênio, a Gazeta do Povo consultou 100 pessoas sobre quem seria o paranaense mais importante, ou influente, da história. Dalton recebeu de mim o único voto recebido.

A última vez que topei com ele foi na Livraria Curitiba. Eu estava folheando seu livro “Em Busca de Curitiba Perdida”, quando pressenti alguém me olhando. Era o Vampiro, meio escondido atrás de uma estante, conferindo quem manuseava a obra – naquele ano, uma das selecionadas como matéria de vestibular. Trocamos um rápido cumprimento, devolvi o livro à pilha, fui embora.

Depois me ocorreu que poderia ter perguntado sobre o resultado daquela velha pendenga tributária. Mas deixei por isso mesmo, porque prefiro contar, pelas rodas literárias da vida, que fui advogado de Dalton Trevisan. Uma meia verdade, algo que a literatura costuma incorporar e da qual acabo de me apropriar.

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