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Minha primeira entrevista

12/07/2022

Minha primeira entrevista

A despedida do ídolo Fred, do Fluminense, sábado passado, me fez lembrar da primeira entrevista que fiz. Ocorre que Arino Buchmann, meu pai, que em seus tempos de comentarista esportivo atendia pelos prenomes, Arino Brazil, era torcedor devotado do Fluminense desde o tricampeonato carioca de 1937/38/39. No início da década seguinte, viu o tricolor carioca jogar na Baixada contra o Athlético e virou fã do ponta-direita Pedro Amorim, então o jogador de mais qualidade que teve a ventura de ver em campo, antes de Zizinho e Didi.

Vinte anos mais tarde, o Fluminense voltaria a jogar em Curitiba, desta vez contra o Ferroviário, quando da inauguração dos refletores da Vila Capanema. Um dia antes do jogo, Arino teve a paciência de datilografar em papel almaço uma relação de jogadores do Fluminense e levou os três filhos ao Hotel Climax, na Rua Dr. Muricy, para buscar os respectivos autógrafos.

A maioria da delegação estava espalhada pelo saguão do hotel. Jair Marinho, Escurinho, Altair, Oldair e outros que já não lembro. Perguntei por Castilho, meu ídolo maior. Alguém informou que estava no quarto. E deu o número do apartamento.

Subimos, eu e meus irmãos. Quem respondeu às batidas na porta foi um Castilho de mau humor, vestido apenas de calção. Impressionava pela altura e pela envergadura, era um sujeito imenso aos olhos de quem ainda não tinha tamanho de adulto.

Expliquei que era tricolor, que acompanhava a carreira dele, que conhecia a história da amputação de parte do dedo mindinho da mão esquerda. Então ele descontraiu-se e nos convidou para entrar.

Deitou-se na cama, colocou os braços sobre a cabeça, indicou a cama ao lado para que sentássemos e ficou à disposição. Com meus 13 anos, não tinha elaborado nada, mas tinha diversas perguntas na ponta da língua. Castilho mostrou o toco do dedo, contou que os goleiros não podiam pensar em preservar as mãos – na época eles não jogavam de luvas – e confessou que tinha jogado muitas vezes com um dedo fraturado, já que não eram permitidas substituições em jogos oficiais.

Eu tinha muita curiosidade em saber detalhes da campanha na Suécia, em 1958, quando o Brasil se tornou campeão mundial pela primeira vez. Castilho era reserva de Gilmar, como também seria no bicampeonato de 1962, no Chile, o único bicampeão mundial pelo Brasil a não entrar em campo.

Ele tinha o apelido de leiteiro, porque nos anos 50, no Rio de Janeiro, as leiterias viviam fechadas, já que era comum faltar o produto. Como o Fluminense tomava poucos gols, o goleiro passou a ser responsável pela leiteria tricolor, sempre de portas cerradas. As bolas batiam nas traves, ou ele defendia com a ponta dos dedos, ou espalmava um pênalti. E, ainda, os atacantes perdiam gols feitos. Modesto, ele dizia que treinava muito e que seu tamanho ajudava.

Não tomei notas daquela conversa, mas jamais esqueci dela. Meus irmãos, então com 10 anos, também ficaram muito impressionados com aquele homem gentil e acessível com os ídolos não são mais.

Foi minha primeira entrevista, a prenunciar o repórter que eu me tornaria mais tarde, o tipo de função que não se consegue abandonar: a alma estará inoculada para sempre com o vírus da reportagem. Seis décadas mais tarde, sou a prova disso.

Já o grande Carlos José de Castilho morreu em meados dos anos 80, ao despencar de um edifício na Zona Norte do Rio de Janeiro. Vítima de depressão, tomou a atitude extrema. Jamais deixará de ser um patrimônio do Fluminense. Como Fred também se tornou.


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