Em sua coluna “Direito e Justiça”, publicada no HojePR em 04 de julho e intitulada “Mi(ni)stério Público”, Carlos Alberto Farracha de Castro, advogado e doutor em Direito, indagava: o Ministério Público estaria se convertendo em um Mistério Público? Para ler clique aqui.
O texto se referia ao fato de que a Constituição de 1988 estabeleceu o Ministério Público (MP) como um órgão com autonomia funcional e administrativa, essencial à função jurisdicional do Estado, dedicado a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais. Mas, segundo o autor, não teria havido a preocupação de estabelecer limites aos excessos de alguns de seus membros. Em sua coluna, ele comentava a nota da Associação Comercial de Matinhos, que repudiou o pedido do Ministério Público do Paraná (MPPR) para suspensão das obras de engorda e revitalização da orla litorânea, um projeto que já então contava com todas as licenças e permissões exigidas pela legislação. Concluiu ele que era preciso mais cautela no ajuizamento de ações civis públicas, que ele reputa como midiáticas, ainda mais quando o empreendimento, ao cabo de vários anos de esforços, obteve todas licenças ambientais.
Se o ativismo de motivação midiática do MP é motivo para preocupação, também a situação oposta, isto é, a omissão diante de crimes e ilícitos penais, inclusive os incontroversos, também deveria ser. Um caso notório de omissão do Ministério Público, no caso, de São Paulo (MPSP), ocorreu em outubro de 2021, no bojo das denúncias contra o plano de Saúde Prevent Senior. Tratava-se de um contexto em que o charlatanismo e a anti-ciência no combate à pandemia da Covid-19 estavam sendo abertamente promovidas, dentre outras autoridades, pelo Presidente da República e o Ministro da Saúde.
Depois de várias mortes de pacientes, o pessoal médico procurou o MPSP para denunciar o uso do inútil “kit covid” em pacientes, o qual os teria levado à óbito. Também foram denunciadas a ocultação das causas das mortes em pesquisas sem base científica e a adulteração dos atestados de óbito.
Surpreendentemente, o MPSP arquivou as denúncias sem as investigar. Foi somente depois das chocantes revelações resultantes da investigação pela CPI da Covid no Senado que o MP voltou atrás e criou uma força-tarefa para apurar as denúncias. Porém, para vários pacientes, vítimas do charlatanismo e da anti-ciência, a medida veio tarde demais.
Já o MPPR se revelou omisso diante de denúncia que fiz contra um dos mais famosos colégios particulares de Curitiba. Localizado em bairro nobre da capital, tal colégio mantinha, entre seus contratados, uma professora de inglês sem a habilitação legal exigida para o exercício da profissão, isto é, o curso superior de licenciatura. O fato era abertamente admitido pela escola e pela pessoa denunciada. Embora ciente do fato, a SEED-PR, cuja Ouvidoria era encarregada da fiscalização, não apenas se omitiu de investigá-lo como ainda redigiu um documento “legalizando” a situação através do seu Departamento de Infraestrutura.
Assim, apresentei denúncia ao MPPR em 30 de agosto de 2007, não só contra a escola por não-cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a qual exigia formação de nível superior para todos os professores, mas também contra a SEED-PR, por omissão. A denúncia jamais foi respondida. Decidi então apresentar a denúncia a outras instâncias do MP.
No dia 22 de novembro de 2007 encaminhei, junto a Procuradoria Regional do Trabalho da 9ª Região do Ministério Público do Trabalho (MPT), denúncia por não-cumprimento da convenção coletiva de trabalho e, novamente, também da LDB. A base legal da denúncia eram as convenções coletivas de trabalho firmadas entre o SINEPE e o SINPROPAR entre 1997 e 2007, bem como a LDB. Em paralelo a LDB, as convenções estabeleciam que as escolas, incluindo cursos livres, comprometiam-se a contratar professores devidamente habilitados. Diversos casos notórios de professores de “cursinhos” e “terceirões” sem habilitação legal para atuarem como professores atestam, mesmo nos dias de hoje, o fracasso do MP em impor a lei.
Neste caso, bastou que a escola denunciada informasse a demissão do empregado em situação irregular ao MPT para escapar de denúncia comprovada e passível de gerar abertura de inquérito. A denúncia foi então arquivada pelo MPT. Segundo esta mesma lógica, bastaria a qualquer empresa, denunciada por inobservância da legislação trabalhista, demitir seus empregados em situação irregular para escapar à investigação. Por exemplo, uma fazenda denunciada pela imposição de condições análogas à escravidão aos seus trabalhadores poderia evitar qualquer inquérito, simplesmente comunicando ao MPT que todos os funcionários em questão já haviam sido desligados do seu quadro funcional. Simples assim.
Em 27 de novembro de 2007 apresentei denúncia baseada na inobservância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no que dizia respeito ao direito a educação, por parte da SEED/PR e do Colégio denunciado à Procuradoria da Infância e da Adolescência do MPPR. Afinal de contas, ambas instituições negavam a menores de idade o direito a educação. Uma vez mais a denúncia foi ignorada e arquivada em 23 de setembro de 2008. Denunciei também junto a desconhecida Promotoria de Educação do MPPR, que igualmente ignorou a denúncia.
Em 9 de novembro de 2007 o Conselho Estadual de Educação emitiu o Parecer 688/07-CEE-PR, para ler clique aqui. O documento tipificou as ilicitudes cometidas pela escola, determinou sanções aos componentes dos dois órgãos públicos (a Ouvidoria e o Departamento de Infraestrutura da SEED) que foram coniventes com as ilegalidades e anulou os atos administrativos perpetrados pela falsa professora, impondo a estes a exigência de revalidação. Começou logo em seguida a luta da escola denunciada pela anulação do Parecer 688/07, num processo aberto contra o Estado do Paraná na 3ª. Vara da Fazenda Pública (VFP).
Em 10 de agosto de 2012 o Juiz da 3ª. VFP requereu ao MPPR um parecer sobre o processo. Pela última vez foi oferecida ao Ministério Público uma oportunidade de se envolver com as questões relacionadas ao exercício ilegal da profissão docente e seu acobertamento pelas autoridades competentes. Contudo, a oportunidade foi novamente recusada porque, em seu parecer, o representante do MPPR não vislumbrava interesse público que, nos termos do artigo 82 do Código de Processo Civil (CPC), justificasse a intervenção da entidade. Vale a pena transcrever suas infelizes alegações: “… a função precípua e institucional do órgão ministerial… deve atuar no processo civil somente em casos de relevante repercussão social, sob pena de desvirtuamento de sua missão fiscalizadora da aplicação das leis em favor da defesa da sociedade, da ordem jurídica e do fortalecimento do Estado Social de Direito… não basta a presença das entidades públicas em um dos polos da demanda para que haja necessidade da manifestação… o MP deve… buscar zelar os interesses da sociedade como um todo.. diante da ausência de interesse público, deixo de intervir no presente feito, pugnando pelo seu regular processamento…”
Foi perdida, assim, a última oportunidade de intervenção na causa por parte do MPPR, cuja missão institucional era justamente a manutenção da ordem jurídica no Estado e a fiscalização do poder público. Foi inviabilizada, assim, a possibilidade de que viesse ocorrer um amplo, e muito necessário, processo investigativo sobre as motivações da inércia, indiferença e omissão de duas diferentes instâncias da SEED para com a denúncia do exercício ilegal da profissão docente.
É preciso notar o erro fático na manifestação do Promotor quando se refere a presença das entidades públicas apenas em um dos polos da demanda. Na verdade, as entidades públicas estavam em ambos os polos: como responsáveis por acobertar a não-observância da legislação, no caso dos dois diferentes órgãos da SEED; e por tentar fazer cumpri-la, como no caso do CEE/PR. Foi, portanto, lamentável constatar a omissão deliberada do MP, manifesta por diferentes instâncias e sucessivas vezes, ao longo de todo processo.
O Estado Democrático de Direito não pode prescindir de uma instituição como o MP. O fortalecimento do MP implica no aperfeiçoamento dos mecanismos de controle da instituição que impeçam tanto o ativismo midiático quanto a omissão. Mais ainda, os promotores devem ser reconduzidos a sua condição de funcionários públicos encarregados de zelar pela observância das leis, acabando com os promotores-marajás, os quais compõe a vasta maioria da categoria. A todos promotores tem que ser aplicado o abate-teto, cortando na folha de pagamento todo e qualquer valor que exceda o teto salarial do funcionalismo público determinado pela nossa Constituição. A Constituição que é dever de todo promotor cumprir e fazer cumprir.
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor de “Bizarra e Grotesca Inversão: a luta perdida contra o exercício ilegal da profissão de professor no Brasil (2006-2021)” da Editora LAECC (2021) disponível aqui.