Dando sequência à história do movimento cultural que denominei de Frente Fria, passo a um de seus capítulos mais interessantes: o processo que levou quase todos nós a virarmos punks.
Durante a breve vida da Contrabanda, tivemos contato com punks cariocas quando tocamos no Circo Voador. Aquela turma era liderada por duas meninas negras chamadas Karna e Yama, que hoje moram na Índia. Durante meses ficamos trocando cartinhas com as punks cariocas, mas não passou disso. Além de tocarem na Descontrole (só de mulheres), elas eram fãs do Coquetel Molotov, o primeiro grupo punk do Rio. Hoje, seu baixista Olmar Lopes mora em Curitiba e toca conosco na banda Estacas. Voltas que o mundo dá.
Depois do fim da Contrabanda, estávamos em 1983, e ficamos meio em depressão por seis meses, pensando no próximo passo que daríamos. Aquele estado de espírito combinava com o punk, que passamos a ouvir cada vez mais. Neste período, eu e Marcos Prado lançamos nosso primeiro livro de poesias em parceria, com uma capa totalmente negra e letras que seriam usadas em novas músicas poucos meses depois. Uma delas tinha como título uma manchete do jornal sensacionalista Tribuna do Paraná. Ouça com o Beijo AA Força aqui.
TROCOU A MULHER POR UMA VACA
Matou pra provar
Se era inocente ou cupido
Enfeitar o pavão
Não é comigo, pinto
Nunca lembro de um sonho
Vamos lá no meu esconderijo
Cinco balas de prata
Pra você, meu bagulho
No fim faltou grito
No entanto, o momento da anunciação deu-se através da Andreinha Giovannetti, nossa companheira de bandalhas desde o início da Contrabanda. Certo dia, ela apareceu com dois punks paulistas que tinha encontrado na Praça Osório, em Curitiba. Eram o Massa e o Batata, recentemente expulsos da Marinha, sem um puto no bolso e vestidos com o visual punk genuíno, incluindo os moicanos. Imediatamente saímos pra comprar jaquetas e coturnos e inventamos um enfeite que era um trapo branco com uma grande mancha de sangue amarrado no braço. Sob o comando de Massa, um descendente de iugoslavos com dois metros de altura, e Batata, meio cafuso de um metro e meio, mas extremamente invocado, passamos a nos envolver em tretas quase diárias, como: calote em bares, seguidos de quebra-quebra, brigas com gangues rivais, gerais da polícia, etc…
O núcleo da turma era o Beijo AA Força, que se formou em seguida à chegada dos punks paulistas, e o local de reunião era o bar do Lino, o único que nos aceitava sem discriminação. A cada dia apareciam mais garotos e garotas suburbanos convertidos ao Movimento Punk: parecia um vírus que contaminava mais rápido que a Covid. No próximo capítulo da história do Frente Fria falaremos mais sobre o Beijo AA Força e a cena que se criou em torno da banda. Agora, precisamos voltar um pouco no tempo para entendermos como tudo isto aconteceu.
O vídeo documentário “Botinada – a origem do punk no Brasil”, produzido por Gastão Moreira, em 2006, tem uma boa explicação sobre as origens do punk brasileiro:
“O punk proveniente dos EUA e da Inglaterra ganhou força no Brasil entre 1978 e 1981, onde apareceram os primeiros grupos que se identificaram como punks, e através desses grupos surgem às primeiras bandas. No Brasil, dois estados disputam a paternidade do movimento, Brasília e São Paulo. Os paulistas reivindicam o pioneirismo alegando que os punks do Distrito Federal tiveram apenas contato com a dimensão artística do movimento, visual e musical e os integrantes de Brasília não eram excluídos sociais como os paulistas. Os punks do Distrito Federal eram filhos de políticos, militares ou pessoas que ocupavam altos cargos na cidade, consequentemente possuíam uma vida econômica diferente dos de outras regiões do país.”
No entanto, no livro “Dias de Luta – o Rock e o Brasil Dos Anos 80”, clássico sobre o tema, escrito pelo jornalista Ricardo Alexandre, é contada outra história:
“Logo em 1976, surpreendentemente, Curitiba assistia o nascimento de seu primeiro grupo punk, o Carne Podre. Aquilo sim se poderia chamar de colonização cultural, porque a banda foi formada por um adolescente inglês, Kevan Gillies, que se mudara para a capital paranaense acompanhando os pais. Gilles catequizou três tapuias e saiu tocando em espaços públicos e nos poucos clubes que ainda utilizavam som ao vivo no final dos anos setenta. O Carne Podre acabou do jeito mais bizarro possível: quando a Polícia Federal resolveu prender a banda toda por causa de suas camisetas com suásticas nazistas desavisadamente estampadas, causando rebuliço na cidade inteira, em meados de 1979. Kevin e seus amigos foram proibidos pelos pais de seguir carreira e a banda encerrou atividades justamente quando surgia a Contrabanda, primeira formação punk profissional curitibana.”
Apenas dois reparos às informações reveladas por Ricardo Alexandre: a Contrabanda surgiu três anos depois do fim da Carne Podre e não era uma banda punk, talvez fosse proto-punk, mas a mutação total só aconteceu com o surgimento do Beijo AA Força, em 1983. Em depoimento para o documentário “Punks na Cidade”, produzido por Darwin Dias em 2003, Kevan Gillies – o inglês vindo de Bolton, cidade industrial da Inglaterra, conta que, quando não tocavam, a turma da Carne Podre ficava o dia inteiro coçando o saco no Bondinho da Rua das Flores. De vez em quando caminhavam abrindo a multidão espantada com o visual punk até a chegada da patrulha, para a batida policial diária.
Na sua primeira dentição em Curitiba o punk foi arrancado a fórceps pelas autoridades locais. Quando voltou, em 1983, já veio como um movimento de massas e acabou criando raízes até os dias de hoje, como veremos na matéria do mês que vem sobre o Beijo AA Força.
Para finalizar este artigo, nada melhor que relembrar o Expectro do Caos (o X é proposital), primeiro fanzine punk de Curitiba. Leiam seu inacreditável primeiro editorial:
Punks saem da toca em cwb
A exploração, a miséria, a discriminação e a repressão são comuns em qualquer parte desse planeta. Em toda cidade, a começar pelas grandes, onde a violência é proporcionalmente maior, as vítimas do sistema perambulam pelos seus becos. CWB é uma civilização de aparência pacífica e ordeira do ponto de vista fascista, que não difere muito do pensamento Peace and Love, filosofia de verdadeiros bunda-moles que preferem oferecer a outra face quando agredidos. A dita “Cidade Sorriso” nada mais é que um paraíso de antiquados freaks e hippies com seus cabelões ridículos e sujas sandálias havaianas, que com seus trejeitos de pederastas se abraçam e se beijam nas portas de teatros e na feira de artesanato permanente que se transformou a Rua das (é claro) Flores, principal artéria de CWB. Como se não bastasse o contingente reacionário composto pelos flautista-doces e mochileiros andinos, CWB recebe com a mesma passividade toda a sorte de teleguiados do imperialismo macartista,através de seitas como a dos sorridentes Meninos de Deus ou a dos saiudos hare-krishnas, que vivem mangueando os transeuntes em todas as esquinas, tendo até um templo para as suas orações, certamente custeado pela CIA.
Em resposta a todo este festival de violência camuflada surge em CWB um grupo de jovens que por pensarem diferente adotaram o comportamento punk.
O surgimento dos punks na cidade foi suficiente para que os dedos em V se unissem aos punhos cerrados dos comunistas, principais porta-vozes da agressão, para tentarem, apenas em vão, deturpar o movimento. Em uma festa na Reitoria, costumeiro reduto das esquerdas festivas e direitas descontentes, os punks foram convidados por um dos organizadores da festa e então pintaram as primeiras agressões ao movimento. Inconformados com a presença dos punks, os comunistas começaram a boicotar o som, impedindo a execução de músicas hard-cores, as preferidas dos punks, prolongando a sessão de forrós e outros ritmos populares que caracterizam os costumes de intelectualóides universotários que se dizem portadores da voz do povo. Os punks, quando reclamaram, foram logo discriminados e passaram a ser objetos de gozação por parte dos hippies e comunistas.
Numa tentativa de dissipar os agressores, os punks começaram a tilintar suas inofensivas correntes, usadas até então como adorno e protesto justamente contra a violência.
Os hippies, por sua vez, fugiram do pau ou das correntadas, mas depois provocaram verdadeiro estardalhaço pela cidade, acusando os punks de agressivos e provocadores. Mas o tiro saiu pela culatra, pois o acontecimento serviu apenas para fortalecer e divulgar o movimento punk em CWB.
O editor do Expectro do Caos foi o famoso compositor popular Aparecido Alcântara Batista, autor da inolvidável Marcha do Carequinha tocada nos finais dos shows da Contrabanda:
Lá vem o carequinha
Experimentar a peruca
Que coisa maluca
Que coisa maluca
Com sua cabecinha vermelha
Tanto faz ser coelho ou coelha
Se fica nervoso ele cospe grosso
E acaba vomitando antes do almoço
punks da Praça da Ukrania não se misturavam com esses aí.
Assim reza a lenda.
Muito legal, eram realmente figuras icônicas estes pioneiros do movimento em Curitiba, incompreendidos por muitos invejados e admirados por outros, sem dúvida figuraças que merecem seu lugar de destaque na história.
Salve! Fui muito no Bar do Lino, na Clotário Portugal.
Obrigado pelos comentários, Margot e Vulcanis!
Muito bacana, estes registros de um tempo bom que não volta mais. Grande abraço!
Minha mais ampla e irrestrita admiração pelo trabalho e vida dedicados à contemplação da cultura e o esforço pelas questões de equiparação social.
Orgulho por vocês