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25/04/2024



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O fim da Doutrina Góes Monteiro e a crise do Partido Fardado

 O fim da Doutrina Góes Monteiro e a crise do Partido Fardado

Historicamente a força da política do Exército Brasileiro (EB) sempre derivou do seu caráter institucional. Quando forçado a atuar de forma explicitamente política o Exército declaradamente o fez não no interesse de um grupo ou partido específico, mas sim alegadamente para atender às causas nacionais. O exercício de tal política institucional deu enorme poder ao Exército. Contudo, a adesão de parte importante da cúpula dirigente militar ao projeto político do atual Presidente da República pode destruir o sentido institucional da política do Exército. Segue alto o risco daquilo que constitui um autêntico Partido Fardado se converter em apenas mais um outro grupo – ou grupelho – partidário como todos demais.

Desde a primeira Era Vargas (1930-1945) a política do Exército Brasileiro se institucionalizou. O objetivo almejado desde então foi o aumento de poder em relação ao resto do aparelho de Estado e sobre a Sociedade Civil, ao mesmo tempo em que evitava se envolver diretamente com a política partidária. Um passo decisivo neste sentido foi a imposição do Serviço Militar Obrigatório (SMO) a partir de 1916. A universalização do dever de servir por um ano ao Exército demandou a construção de centenas de aquartelamentos nos centros urbanos de todo país. Na zona rural foram criados centenas de Tiros de Guerra, organizações destinadas a treinar em tempo parcial os futuros reservistas oriundos do campo.

No decorrer deste processo surgiram duas consequências. A primeira é que o tempo de um ano dedicado ao SMO permitia ao EB inculcar entre os jovens reservistas os seus valores, visão de mundo e ideário institucional. Noções como hierarquia, disciplina, patriotismo, anticomunismo, conservadorismo etc. passaram a ser conhecidas e disseminadas por dezenas de milhares de jovens que a cada ano deixavam o SMO e retornavam à vida civil. Outra consequência importante é que a construção da infraestrutura necessária aos processos de seleção, recrutamento, engajamento e prestação do SMO deu ao Exército o controle permanente de infraestruturas físicas de abrangência nacional. Ao contrário da Força Aérea que conta com poucas bases em todo vasto território brasileiro e da Marinha de Guerra que é basicamente uma instituição que só existe no Estado do Rio de Janeiro, o Exército é uma instituição de abrangência praticamente nacional. E em se tratando de se articular politicamente, o Exército é o único partido político brasileiro efetivamente nacional.

O poder político desenvolvido pelo Exército ao longo da história se manifestou de forma decisiva em diferentes episódios de grande importância. Sua origem remonta ao apoio à tomada do poder por Getúlio Vargas em 1930; seguiu no combate à Revolução de 1932, na repressão à Intentona Comunista de 1935, no apoio ao Golpe do Estado Novo de 1937, no combate ao Golpe Integralista de 1938, na derrubada de Vargas em 1945, na crise que levou ao suicídio de Vargas em 1954, no contragolpe preventivo de 1955, no veto à posse de Jango em 1961 e, lógico, no Golpe Militar de 1964. Em todos estes episódios a intervenção militar, embora favorecendo abertamente algum dos adversários na luta político-partidária, sempre foi justificada com base no caráter “apolítico” e “apartidário” do Exército que assumia a posição de defensor desinteressado das causas nacionais.

Uma liderança de enorme importância no processo de construção deste poder político foi o General Góes Monteiro (foto), Chefe do Estado-Maior do Exército durante a maior parte da Ditadura do Estado Novo (1937-1945). O Exército deve a Góes Monteiro a imposição do princípio segundo o qual não se pode fazer política no Exército, mas sim, que se deve fazer a política do Exército. Obviamente que tanto a forma quanto o conteúdo que deveria assumir tal política do Exército sempre deu margem a extensos confrontos e agudas contradições entre as diferentes facções e grupos militares. Mas, embora constantemente desafiado, o princípio foi mantido e, sob impacto da Ditadura Militar, a Doutrina Góes Monteiro foi levada a um novo patamar.

O General Castello Branco foi um dos responsáveis pelo sucesso da conspiração que derrubou João Goulart em 1964, bem como foi o primeiro presidente do regime militar (1964-1985). Partiu justamente dele em 1965 uma série de medidas que visavam “despolitizar” ainda mais o Exército, criando princípios que ajudaram a impor a Doutrina Góes Monteiro de forma radical. Para começar, nenhum militar poderia conciliar a carreira política com a permanência no Exército. Quem quisesse seguir carreira política tinha que passar para a reserva. Isso pôs fim a possibilidade de um detentor de cargo político vir a ter comando de tropas, sempre uma combinação perigosa com forte potencial de desestabilização.

Também foi estabeleceu o rodízio permanente dos postos ocupados por oficiais – norma posteriormente estendida também a outros níveis hierárquicos. Em princípio a cada dois anos o oficial tem que ser transferido do posto que ocupa para algum outro lugar do país. Tal rodízio impede que as altas autoridades militares estabeleçam vínculos mais profundos e intensos com as autoridades civis locais, podendo vir a constituir um centro de poder rival ao comando da força. Finalmente, se determinou um tempo limite para permanência no Generalato, de no máximo 13 anos, ao fim do qual o general teria que deixar o serviço ativo e passar para a reserva. Isso pôs fim à figura do general que contava décadas de tempo de serviço no topo da hierarquia militar. Tais generais haviam demonstrado historicamente possuir uma ampla capacidade de articulação política com as elites dirigentes civis e das forças armadas, constituindo um polo de atração alternativo à autoridade que pretendia exercer a cúpula dirigente do Exército.

Fica evidente, então, que desde 2018 se verifica o abandono dos princípios estabelecidos pela Doutrina Góes Monteiro. Dentre estes cabe citar aquele que determina que quem quer fazer carreira política tem que necessariamente deixar o Exército. O caso do General que seguiu na ativa exercendo o cargo de Ministro da Saúde (2020-2021) é particularmente grave. Tanto mais que em maio de 2021 ele também participou de manifestação política e discursou em um palanque armado no Rio de Janeiro em apoio ao Presidente da República. Tratou-se de um indício claro da desmoralização das normas que compunham a Doutrina Góes Monteiro. Pior ainda, cabe lembrar que o General não foi punido, mesmo tendo afrontado diretamente o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro que proíbe tais manifestações.

A adesão de membros da cúpula dirigente do Exército ao projeto político do Presidente da República pode oferecer a alguns generais várias vantagens pessoais no curto prazo. Porém, também pode vir a ter as mais graves consequências para a instituição militar. Talvez haja no futuro uma fragmentação cada vez maior da ação política dos membros das forças armadas. Pode ocorrer a aparição pública das demandas de praças, oficiais subalternos e outros membros da cúpula dirigente que não se sintam representados pela adesão ao chefe do Poder Executivo. É quase certo que futuramente diferentes grupos militares se colocarão a reboque deste ou daquele grupo político, abandonando a política do Exército para começar a fazer política no Exército. Se isso de fato vier a ocorrer será o fim da política institucional e o início da redução do Exército Brasileiro a apenas mais um grupo – ou grupelho – político dentre os demais. Como foi durante a maior parte da sua História, ao longo do Império (1822-1889) e da República Velha (1889-1930).


Dennison de Oliveira é Professor de História na UFPR e autor de “Brazil and World War II: Conflict and Cooperation in the Brazil-United States Military Alliance, 1939-1950”. In: Allison L. Palmadessa. (Org.). World War II: Background, Aftermath and Impact. 1ed.New York: Nova Science Publishers, Inc., 2021, v. 1, p. 55-84 para adquirir clique aqui.

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