No momento em que se completam 200 anos da proclamação da Independência do Brasil de Portugal constata-se que não há o que comemorar. À independência política proclamada em 1822 seguiu-se um longa luta pela autonomia econômica, cultural, científica e tecnológica que, dois séculos depois, revelou-se perdida. O atual contexto vivido pelo Brasil, longe de ser o de um país realmente independente, está muito mais próximo do “Século da Humilhação” vivido pela China entre 1839 e 1949, tamanho grau de recolonização de diversos setores da economia vivido pelo país em décadas recentes. O domínio exercido pelas grandes potências mundiais sobre diferentes segmentos da economia e do território brasileiros levará com o tempo à imbricação de todas as lutas de interesse popular com o combate aos diversos imperialismos.
A história do “Século da Humilhação” da China diante das potências imperialistas é bem conhecida. Começou com a derrota na China na Primeira Guerra do Ópio em 1839 e a subsequente imposição forçada de uma série de “tratados desiguais” que forçou os chineses a abrirem seu mercado interno às importações de países ocidentais (inclusive drogas criminalizadas como o ópio), entregarem aos estrangeiros terras, portos, vias navegáveis, concessões de serviços públicos, admitirem a extraterritorialidade da legislação civil, comercial e criminal das potencias imperialistas em seu próprio país e, finalmente, a criação de enclaves territoriais dominados pelos europeus e americanos, nos quais a presença chinesa só excepcionalmente era permitida. Em vários locais de frequência exclusiva dos estrangeiros foi fixado o aviso humilhante: “proibida entrada de cães e chineses” – nesta ordem.
O surgimento do vizinho Império do Japão tornou a situação ainda pior. No decorrer da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) os japoneses pretenderam impor aos chineses o acatamento das suas Vinte e Uma Exigências que, na prática, concedia a estes os mesmos privilégios já usufruídos pelos americanos e europeus na China. Em 1931 o Japão invade a China pretendendo anexá-la ao seu próprio Império, o que quase veio a ocorrer durante a Segunda Guerra Mundial. Somente com o estabelecimento da República Popular da China em 1949 o país retomou a independência nacional.
No caso brasileiro o “Século da Humilhação” teve início em 1990 com a instauração da atual Era Neoliberal a qual se estende até hoje. Naquele ano teve início um processo de ampla e selvagem abertura do mercado interno brasileiro à economia mundial com a eliminação de barreiras protecionistas, sufocando as empresas nacionais. Simultaneamente, ocorreu o abandono do projeto de construção de um capitalismo industrial brasileiro, manifesto no desmonte dos mecanismos de intervenção do Estado na economia, nas privatizações de empresas estatais e na desregulamentação de diversas atividades econômicas. Tinha início aí então o desmonte do projeto nacional-desenvolvimentista, o qual remontava à Era Vargas (1930-1954) e que foi imensamente ampliado e impulsionado pela Ditadura Militar (1964-1985).
Como resultado, desde então, o Brasil se desindustrializou, perdeu complexidade econômica, regrediu a um modelo econômico de perfil primário-exportador, inclusive de caraterísticas extrativistas predatórias e basicamente insustentável. O crescimento econômico se mediocrizou caindo a menos da metade do período anterior, o desemprego se manteve sistematicamente alto, a renda do trabalhador estagnou e o país deixou de exportar uma maioria de produtos industrializados. Em aberta negação das suportas virtudes do “estado mínimo” o gasto público explodiu, resultado de uma política econômico-financeira baseada na imposição das mais altas taxas de juros do mundo, resultando na destinação de cerca de metade do orçamento público federal ao financiamento e refinanciamento da imensa e caríssima dívida pública interna.
Não se pode contar com a reversão de tão trágico estado de coisas num futuro previsível, já que ao processo de privatização correspondeu a desnacionalização da economia, resultando na transferência dos centros decisórios de empresas e respectivas cadeias produtivas para fora do país. Objetivamente, não pode haver independência nacional quando o preço dos derivados de petróleo produzidos e consumidos aqui atende ao desejo de lucros estratosféricos dos acionistas estrangeiros de nossa estatal petrolífera; se dependemos de sites, sistemas de TI e de hospedagem de dados localizados em outros países; quando quase toda gestão do sistema elétrico e aeroportuário foi repassada a empresas estatais de outras nações; se quase todas nossas reservas internacionais assumem a forma de títulos da dívida pública do governo dos EUA ou depósitos em dólar; quando inexistem limites à participação do capital estrangeiro na operação de empresas de jornalismo, comunicações e telefonia; se o Congresso Nacional se esmera em liquidar toda e qualquer restrição à participação majoritária do capital estrangeiro mesmo nos setores estratégicos da economia; se nossos policiais recebem “mesada” de polícias estrangeiras; se nossas forças armadas desistem da obtenção da autossuficiência no fornecimento de equipamentos e veículos por recebe-los “de graça” da maior das superpotências militares; quando fundações internacionais agem livremente para financiar a disseminação da mentalidade colonizada e o divisionismo social e cultural a fim de bloquear a construção da consciência brasileira e o consenso sobre a necessidade de unidade nacional.
A atual crise brasileira se arrasta sem solução desde o início da vigente Era Neoliberal e, certamente, não será dentro dos seus pressupostos e os do imperialismo que será resolvida. Qualquer iniciativa no sentido da independência nacional terá de levar em conta o desafio do restabelecimento do povo brasileiro como protagonista da sua própria História, o que implicará no desenvolvimento e disseminação de uma autêntica consciência nacional, tanto ciente dos riscos e ameaças do imperialismo quanto vocacionada a propor e desenvolver uma política de independência nacional – como historicamente foi tentado fazer na vigência do projeto nacional-desenvolvimentista (1930-1990).
Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR e autor de “História do Brasil: Política e Economia” (Intersaberes, 2012) para adquirir clique aqui.