As faladas priscas eras costumam ser referidas em textos diversos, por qualquer autor com preguiça de determinar a época em que ocorreram os fatos. O leitor fica no escuro, sem saber quando aquilo aconteceu, de forma que estabeleço desde logo as priscas eras a que vou me reportar.
Trata-se de janeiro de 1969, tempo em que me vi perdido igual cachorro sem dono em Recife, na esteira do retorno de meus pais e irmãos para Curitiba. Estudante de Direito, sem ter ainda conseguido a matrícula para voltar à UFPR, restou-me seguir em Pernambuco enquanto a família tentava viabilizar a transferência.
Havia lá a Casa do Estudante de Direito, a funcionar perto do centro da cidade, no fim de uma rua sem saída. Seus moradores podiam ir a pé até o belo e antigo prédio da Faculdade de Direito da UFPE. O melhor da situação era o fato de que a maioria dos alunos estava de férias em suas cidades no interior de Pernambuco, Paraíba e Alagoas.
Com espaços disponíveis, combinado o preço com a administração da casa, mudei-me para lá, levando a mala com mudas de roupas, toalha, lençol, travesseiro e um exemplar de O Primo Basílio, de Eça de Queiroz. O suficiente para passar os dois meses que imaginávamos necessários para a UFPR aceitar a minha volta.
Em cada quarto havia dois ou três beliches. Os armários eram de aço, com nichos para cada estudante. Encaixei ali meus petrechos e me aboletei na parte de baixo de um beliche, com a chave do armário pendurada no pulso com elástico.
Os chuveiros eram canos a jorrar um grosso volume de água fria, o que não era incômodo no verão nordestino. As janelas passavam as noites escancaradas, trazendo com a luz do luar e a do poste de iluminação vizinho, a tênue fresca da noite. O problema é que entravam também as muriçocas. Eram exércitos a zumbir nos ouvidos e a contrabandear partes expressivas do meu sangue. Passei a acender, ao lado da cama, um “boa noite”, aquela espiral verde que queimava a noite toda e permitia algum conforto, malgrado o odor insuportável que emanava.
Tudo ajeitado para uma noite de sono, dava-me ao luxo de ler algumas páginas de Eça e esperar a chegada de Morfeu. Descobri, então, naquela vigília, que o colchão do, digamos, andar superior, era forrado com páginas de jornais. Um convite para ler notícias de anos anteriores.
Foi quando atinei para o fato da curiosidade não ser exclusividade minha, porque naquelas páginas transitavam percevejos em todas as direções, passando pelos bastidores da política, da busca por militantes clandestinos da esquerda, pelas notícias do futebol e anúncios dos filmes em cartaz. Talvez, depois, os percevejos discutissem aquelas novidades nas manhãs ociosas. O fato é que resisti durante uma semana. Arrumei a tralha e me mudei para um hotel simples na Rua da Saudade.
Se houvesse petshop nas tais priscas eras, eu deveria passar por uma sessão completa de banho e tosa, para eliminação de eventuais resquícios dos insetos invasores. É que eu andava mesmo me sentindo um cachorro vira-lata.
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Ler qualquer texto de Ernani Buchmann é sempre um privilégio. Tem graça no que escreve e cuida bem do português, coisa rara atualmente. Gostei muito da crônica. Foi quase meu tempo também e na mesma cidade. Cheguei no alvorecer de 1970, morei em Curitiba e nunca mais deixei de voltar.