Além da onda de cancelamentos unilaterais de planos de saúde pelas operadoras, outro problema vem crescendo entre os clientes de convênios no último ano: os altos índices de reajuste anual. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) obtidos pelo Estadão mostram que o número de reclamações sobre reajustes anuais mais do que dobrou no último ano, atingindo um recorde em 2023.
Embora o número se refira a reclamações de usuários de todas as modalidades de contratos, são os planos coletivos os mais afetados pelos reajustes elevados, já que, ao contrário dos planos individuais e familiares, eles não têm um teto estabelecido pela ANS. Cerca de 83% dos brasileiros que possuem convênio médico estão em contratos coletivos.
As operadoras de planos de saúde dizem que “observam com atenção” o crescimento das reclamações, “instrumento legítimo e importante balizador para a identificação de pontos de melhorias de serviço”, mas dizem que os reajustes em planos coletivos são acordados com os contratantes e levam em conta as correções necessárias para a sustentabilidade econômico-financeira dos contratos.
O aumento anual, chamado oficialmente de reajuste por variação de custos, é aplicado geralmente no aniversário dos contratos, e costuma ser calculado, de acordo com as operadoras, a partir dos gastos daquela carteira de beneficiários nos 12 meses anteriores. Beneficiários de contratos coletivos (empresariais ou por adesão) ouvidos pelo Estadão reclamam de aumentos que superam os 30% ou 40%. Em um dos casos, o reajuste superou os 200% e obrigou um empresário a cancelar o plano de saúde para si e seus funcionários (leia mais abaixo).
Em 2023, a ANS recebeu 5.001 reclamações sobre o tema, número 126% maior do que as 2.210 queixas recebidas em 2022. Nos três anos anteriores, esse índice de reclamações sempre havia se mantido estável na casa das 2 mil reclamações, o que mostra um aumento fora da média no ano passado.
Um relatório da XP Investimentos publicado em abril apontou um aumento médio de 15% nos contratos coletivos no período de dezembro de 2023 e fevereiro de 2024, com uma previsão de “precificação agressiva” por pelo menos mais um ano pelas operadoras, que reclamam de uma crise financeira que provocou um déficit operacional de R$ 5 bilhões no ano passado. Para efeito de comparação, o teto de reajuste definido pela ANS no ano passado para planos individuais e familiares foi de 9,63%.
Uma pesquisa do Procon-SP com 1.341 clientes de convênios médicos, também divulgada em abril, mostrou que 28% dos participantes disseram ter tido reajuste superior a 20% no último ano – 3% contaram que o aumento superou os 50%.
Foi o caso do empresário Eduardo Fernandes, de 72 anos. Proprietário de uma rede de lojas com quase cem funcionários, ele sempre ofereceu plano de saúde aos seus colaboradores e dependentes, com parte da mensalidade subsidiada pela empresa e outra parte paga pelo funcionário, conforme o tipo de plano escolhido. Em janeiro, pouco antes do contrato com a Amil fazer aniversário, o empresário foi surpreendido com um comunicado de reajuste de 205%. A conta do plano, que até janeiro somava R$ 53,7 mil, passaria para R$ 164,2 mil com o aumento proposto pela operadora.
Fernandes conta que a operadora argumentou, na ocasião, que houve maior utilização do plano pelos funcionários nos 12 meses anteriores, o que justificaria o aumento. “Essa é uma empresa familiar, muitos dos funcionários estão comigo há 20, 30 anos. Temos alguns com mais de 60 anos de idade, alguns em tratamento para câncer, eu inclusive. Temos esse plano desde 2021. Por dois anos, não passei na porta da Amil. Agora, que tivemos uso, eles querem cobrar esse valor. Quer dizer que só querem clientes que dão lucro?”, questiona Fernandes.
Sem saída, ele se viu obrigado a cancelar o contrato com a Amil para buscar um plano com preço que pudesse pagar, mas teve outra surpresa. A operadora impôs uma multa à empresa de Fernandes por quebra de contrato. “Queriam cobrar uma penalidade por rescisão antecipada de contrato. A conta para sair do plano ia passar dos R$ 300 mil”, conta o empresário.
Ele, então, entrou na Justiça contra a Amil pedindo a suspensão da multa e teve decisão liminar favorável, como explica o advogado Rafael Robba, especialista em direito à saúde e sócio do escritório Vilhena Silva. “A multa foi considerada abusiva pelo Judiciário. O que a operadora fez foi colocar a empresa numa arapuca: aplicou um reajuste elevado e proibitivo, que o empresário não tinha como assumir. Mas, quando ele quis sair, ficou sujeito a uma multa extremamente abusiva”, diz.
Mesmo que a multa tenha sido suspensa pela Justiça, Fernandes diz que a situação prejudicou ele e seus funcionários, em especial os que dependiam de tratamentos. “Eu e minha mãe de 96 anos ficamos sem plano. Temos funcionários com familiares em tratamento para câncer, outros com filhos pequenos com alguma necessidade especial. Foi um trauma nas nossas vidas”, diz ele, que agora faz cotações com outras operadoras para avaliar a viabilidade de contratar outro plano empresarial quando tiver condições financeiras.
Um dos funcionários da rede de lojas, o supervisor de pátio Genilson Antonio da Silva, de 49 anos, se viu sem plano de saúde para a filha de 8 anos, que tem autismo e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). “Desde que nasceu, ela sempre foi acompanhada pelos profissionais do Hospital Ana Costa (que faz parte do grupo Amil) e, de repente, perdeu o plano, ninguém procurou saber como ela está, tivemos que correr para achar outro plano para ela”, conta.
Ele contratou um convênio com outra operadora pagando quase o dobro do que pagava no plano subsidiado pela empresa e, ainda assim, apenas para sua esposa e a filha. “Eu mesmo fiquei sem plano porque não teria condições de pagar para nós três. Nessas horas, a gente tem que escolher quem precisa mais da família”, conta.
“É uma situação que desvirtua a própria natureza do contrato porque, se o plano de saúde repassa todo o risco para o beneficiário, por meio de reajustes elevados quando há utilização, qual é o sentido de a pessoa contratar esse serviço?”, pergunta Robba.
Procurada, a Amil não se pronunciou sobre o caso da empresa de Eduardo Fernandes. Disse, de forma geral, que os reajustes de planos coletivos consideram “a correção necessária para manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos levando em conta a sinistralidade”.
Pagar o convênio também está ficando inviável para a administradora de empresas Ana Paula Oliveira dos Santos, de 51 anos, cliente da SulAmérica em um plano coletivo por adesão. Titular de um contrato que incluía, além dela, o marido e sua filha de 11 anos, ela recebeu reajustes de 20% em 2022 e 33% em 2023, o que elevou a mensalidade dos três para quase R$ 10 mil. “Não teria mais condições de pagar, então tive que tomar a decisão de tirar o meu marido porque precisava preservar as terapias da minha filha”, conta.
A menina tem paralisia cerebral e hidrocefalia; não anda, não fala e tem baixa visão, por isso precisa de terapias multidisciplinares e acompanhamento médico frequente. “Ela nasceu prematura e, aos nove meses, teve convulsões, uma hemorragia cerebral e ficou em parada cardíaca por 20 minutos, daí vieram todas essas sequelas”, conta Ana Paula.
A administradora chegou a entrar com uma ação judicial questionando o reajuste elevado, mas o processo ainda está em andamento. “Vou ter que desembolsar R$ 6 mil para uma perícia judicial e não tenho como pagar isso tudo de uma vez. Agora em julho vai vir o reajuste de 2024 e, se vier nesse patamar de novo, não terei mais como pagar o plano”, lamenta. Procurada, a SulAmérica não se pronunciou sobre o caso de Ana Paula.
Reajuste alto é forma de excluir, diz filha de idosa
Para alguns beneficiários, os reajustes altos são uma forma indireta de “expulsar” clientes custosos dos planos de saúde. É o que acredita a família da aposentada Stella Tarantino, de 90 anos. Ela teve o plano cancelado pela Unimed Nacional em abril, mas, após um post de sua filha sobre o cancelamento viralizar, a rescisão foi suspensa. Só que, depois disso, conta a família, a operadora apresentou um reajuste de 41% no plano da idosa, o que fará a mensalidade superar os R$ 5 mil a partir de junho.
“Ainda que a exclusão da minha mãe tenha sido revertida com um pedido de desculpas da Unimed, que disse ter sido um erro de comunicação, na prática essa exclusão acontece quando há um aumento dessa magnitude e uma brecha na lei que permite isso”, diz a jornalista Mônica Tarantino, filha de Stella.
A Unimed também não quis comentar o caso específico de Stella, mas disse, de forma geral, que “os reajustes de contratos de pessoa jurídica “se dão após análises das carteiras e a sustentabilidade do negócio”.
No Judiciário, os magistrados podem dar decisões favoráveis aos beneficiários quando as operadoras não apresentam demonstrações financeiras e contábeis que justifiquem os reajustes. “O consumidor pode recorrer ao Judiciário quando identificar que o aumento de seu plano se mostra excessivo, especialmente quando a operadora não fornece aos beneficiários informações claras, adequadas e em linguagem simples que justifiquem o índice de reajuste aplicado”, diz Robson Campos, diretor de Assuntos Jurídicos do Procon-SP.
O órgão é uma das entidades de defesa do consumidor que pede maior regulação para os planos coletivos, em especial os coletivos por adesão, geralmente vinculados a associações ou sindicatos e que costumam sofrer os maiores reajustes. “O reajuste desses planos leva em conta a sua utilização pelos beneficiários, dentre outros fatores. Portanto, planos com grupos menores e com consumidores em tratamento tendem a ser mais prejudicados com um índice de reajuste mais elevado. Essa metodologia favorece a saída desses consumidores dos respectivos planos, pois eles não conseguem arcar com os custos dos reajustes”, diz Campos.
Operadoras dizem que reajustes consideram correção necessária para manter sustentabilidade
Questionada sobre o aumento de queixas contra planos de saúde sobre reajustes, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) disse que “observa com atenção o crescimento do número de reclamações, instrumento legítimo e importante balizador para a identificação de pontos de melhorias de serviço”, mas afirmou que “os contratos coletivos de planos de saúde já são amplamente regulados, sujeitos aos mesmos prazos de atendimento, necessidade de suficiência de rede, disponibilidade de canais de ouvidoria, entre outras regras”.
Superintendente-executivo da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Marcos Novais afirma que os reajustes estão relacionados à alta dos custos médico-hospitalares, que exige a aplicação de percentuais de aumentos mais elevados. “E quanto maior for o reajuste, as pessoas que avaliam ter um risco baixo saem do plano ou migram de contato. Ao fazer isso, aquela conta médica que estava elevada porque um grupo de pessoas precisa de maior utilização tem que ser dividida para menos pessoas e aí a tendência é que os preços fiquem mais elevados”, diz.
Para controlar a alta dos custos médico-hospitalares, ele defende a criação de melhores protocolos e diretrizes de tratamentos e incorporação de novas tecnologias “a preços razoáveis”.
A Amil afirmou que a aplicação do reajuste anual dos seus planos de saúde coletivos “considera a correção necessária para manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos levando em conta a sinistralidade” do período. “A Amil e a empresa-cliente analisam em conjunto a frequência de uso, a inflação médica e as características do produto contratado, buscando sempre a manutenção do benefício”.
A operadora destacou ainda que, “de forma geral, o índice de reajuste dos planos de saúde é impactado pelo modelo de acesso ao sistema, pelos valores dos serviços médico-hospitalares praticados e pela inclusão de novas coberturas obrigatórias”.
Já a Unimed Nacional afirmou que os reajustes de contratos de pessoa jurídica “se dão após análises das carteiras e a sustentabilidade do negócio” e que “são acordados com as administradoras e estão amparados pelas leis da saúde suplementar”.
O que diz a ANS
Questionada se estuda novas normas para proteger os beneficiários de planos coletivos de reajustes abusivos, a ANS afirmou que monitora os reajustes aplicados e explicou que o fato de “determinar apenas o teto de reajuste do plano de saúde individual ou familiar está diretamente relacionado à questão de ser o consumidor (pessoa física) vulnerável” na relação com a operadora. “Trata-se de uma medida que visa à proteção dessas pessoas”, afirmou a agência, em nota.
A agência esclareceu ainda que, no caso dos planos coletivos com até 29 vidas, que são grupos com menor poder de negociação, “a ANS instituiu o agrupamento de contratos, de maneira que o risco seja diluído entre todos os contratos desse porte de cada operadora”. A ANS diz estar avaliando a alteração do tamanho dos contratos que fazem parte desse agrupamento, “justamente para trazer maior equilíbrio”.
Para os planos coletivos com 30 vidas ou mais, a agência diz que, por haver pessoas jurídicas envolvidas, “existe maior poder de negociação entre as partes”, por isso o percentual de reajuste é definido entre elas, com regras estipuladas em contrato.
A agência disse ainda que, embora esteja estudando possíveis revisões sobre o reajuste de planos coletivos, “não há pretensão de autorizar um reajuste máximo do plano coletivo da mesma forma como é feito no individual”. A ideia, de acordo com a ANS, “é buscar meios de ampliar a transparência e a previsibilidade sobre o reajuste, estimulando a concorrência”.
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