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frente fria sergio viralobos SERGIO VIRALOBOS

A Hidra de Lerna

27/06/2024
frente fria Sérgio Viralobos hojepr

Dando continuidade à publicação do poemas do projeto Doze Trabalhos de Hércules, produzido por Samuel Lago e Rodrigo Barros para o programa radiofônico Radiocaos (ver em: https://radiocaos.com.br/hercules/), hoje temos “A Hidra de Lerna” de Monica Berger.

Veja aqui a leitura de Monica para o poema:

I
A HIDRA
(Hera Fala)

Na noite dos tempos, céu de estrelas era/ O ar e a pedra, o fogo dos espaços em branco/ Lasca de unha mínima no escuro firmamento/ Ponto absoluto invisível sob incólume manto /ah, dona do azul sobre toda terra, /Eu, intacta Hera!

Magna Deia, Mater Amabils, Gaia-Géia e Reia, vento ave cachoeira, Senhora das Plantas, Donzela das Feras, bicos de pássaros, anéis de cobras pulsando nas veias, Potnia Thérion, a Deusa do Amor e a flecha da guerreira, a Rainha da Morte, o fundo / o abismo / a cratera / a teia, os ossos de Téa, eis o meu Nome, impávida Hera!

Ísis dos rios e do deserto, Cy, Fadas da Irlanda, Vênus do Paleolítico, os seios de Ártemis de Éfeso selados no peito Afrodite, a celeste e a calipgia/ Deméter e Perséfone, aquela que entre luas no ventre trazia / o nome de todos os homens, o sol e o menino, o velho e o amante.

Com o mar sob meu pé esquerdo criava as ondas / Organizando na ponta do dedo o movimento/ Das barcas, a proa divina e carrancuda era o monstro e a música das sereias afortunadas do mediterrâneo.

De minhas entranhas pari inúmeras figuras estranhas: a Esfinge de Tebas, a Quimera de Pátera, a Hidra de Lerna,/ De minha saliva, a Cila de Messina, Píton de Delfos, a Lâmia da Líbia / Meu nome é Cibele Ishtar e Inana, suas Sibilas e Pitonisas, Virgens e Heteiras.

Mas para bem começar a história de sangue suor e sêmen tristeza loucura e glória, aventura que só vate registra, sou apenas Hera, Hera dos céus que plena reinava sobre todas esferas, muito, muito antes de brotarem helenos e helenas, aqueles que hoje me chamam de megera.

Megera não era quando invadiram o antigo templo do mundo os imundos machos de músculos fartos e barbas grossas, manada e séquito de deuses caminhantes, excrescências dos Balcãs e das estepes, todos, os homens e os deuses, feitos de neve, gelo e calores comprimidos, os mesmos que aportaram na Tessália, terra de stregas, sob as sombras do Olimpo, fartos de singrar o azul do Egeu. Dentre eles o Zeus, o usurpador o intrépido o lubrico o desnorteado que recentes lendas desenhadas em linguagem corrupta atestam ser meu irmão – lançando relâmpagos, desencadeando raios criando tempestades.

Findo o escandaloso preâmbulo veio ele de salamaleques puxar papo de mansinho, “mas é só uma visita cordial, desejo receber as saudações, você bem que poderia ser mais bacaninha deusa sulina, que deusa, que linda irmãzinha”, bla bla blá, tro-lo-ló só que não, eu não nasci ontem, grandalhão. No dia seguinte veio de novo caprichando nas firulas, um fino rasgo no canto da boca escorrendo conversa fiada e eu sumi pensando comigo: que idiota. Quando novamente Aurora apareceu e lindos e brancos braços sacudiram a túnica de açafrão, um pio-pio um drim-drim ritmado, ardido, seco, encantado, ecoou nas paredes, ressoou pelo vale, roubou das Horas toda atenção. Seu canto retinia contínuo nos ouvidos, insignificante e frágil pássaro molhado que avistei catando minutos e migalhas na entrada da caverna / anunciando a primavera / voejando sobre minha aura e aérea cabeça, voluptoando em nuvens / descendo em espiral / chiando chovendo chorando nas veias nos seios no colo da minha via láctea.

Zeus de longínquas terras rasgou o vasto céu travestido de cuco, parasita ciumento, e comandou a categórica divisão do meu corpo: “rasura-se o tímpano / tritura-se a língua / arrebentam-se as sandálias/ rasgam-se as vestes/ remanejam-se os ritos / altera-se o tempo / assim escreve-se a história.

ah, mas antes pendurem-na nas nuvens/ amarrem-na no trono”, mãos calosas e invisíveis me pegando por trezentos anos e não foi ninguém, nada aconteceu. Os homens do norte tomaram o povo de face trigueira, de pele quente, de temperamento álacre e assim que a mescla se deu, eu, deusa-mãe, vilipendiada e torturada, ferida e desmembrada, me tornei Hera, a Mega Megera.

Às outras partes de mim espalhadas, sobraram os atributos que não interessavam numa esposa fiel. Ele fez de mim motivo de riso. Afrodite tomou-me a beleza, Atena, a inteligência, Ártemis, a sagitária, meu corpo célere. E lá fiquei com o papel de consorte no colo, Mnemónise urdindo minhas lembranças, o trono ocupado por um amontoado de névoas, o intruso de cerúleas sobrancelhas; eu e meus pavões de mil olhos, os lírios e as vacas de vista mansa.

Sei que me acusam de egoísmo, e talvez de inveja, e ainda de rancor. Tais censuras me são absolutamente insignificantes. Chamam-me de ciumenta, de louca e traiçoeira. Mas se não posso reaver meu trono nas estrelas nem desaparecer com o lascivo Fulminador, controlarei os heróis e dentre eles, o herói dos heróis de Hera: Héracles.

Héracles, a glória de Hera, um simulacro terreno do trovejante ajuntador de nuvens. Sem poder vingar-me do cuco molhado, será o rebento de Alcmena meu saco de pancadas. Um belo saco de pancadas, graças a Zeus, para tornar menos tediosa demanda.

Olhos negros como algas das profundezas, o rosto talhado no cinzel de Fídias, a boca, uma flor aberta, o corpo massa de músculos brilhantes, as coxas e o sexo harmoniosas toras de carvalho, os pés e os dedos dos pés quase raízes açucarando a inteligência mediana. Quem seria Héracles, não fosse eu?

II

Sobre o pântano de Lerna, metamorfoseada em nuvem, Eu, Hera, avisto a Hidra, herdeira de meu filho Tífon, guardiã do maior buraco do mundo. Ali, onde ela dorme e brinca, explode e escorre, escolhidos desceram ao Tártaro: Dionísio, Hades, Perséfone. Sua carne é feita de proteínas da terra, minhocas gigantes brotam de um magnífico corpo de cadela. Uma explosão de sentidos: o cerne do tato, a sabedoria dos eflúvios, a majestade dos paladares, os inúmeros olhos abertos em todas as cores, a melopéia dos sibilos. Filha da terra e da água, acalentada pela oracular Píton e de minha telitóquia linhagem, tudo que é fértil lhe rende graças. Nove serpentes, nove fontes de desejos irreprimíveis e uma só cabeça dourada, imortal. A beleza ctônica que o medo transforma em monstruosidade, que a tosca imaginação intoxica: o hálito fétido, o veneno mortal do sangue eterno e sob suas patas, o fim do mundo. Cada um verá o que seus olhos possam perceber, eis o máximo esplendor virado em bruta fera! é preciso abater o que não se entende.

Héracles se aproxima e absorvido por certezas, avista densa neblina. Atena, emissária do pai, sussurra: flechas de fogo irão despertá-la. É quando do reboliço das águas a ancestral de Nessie pressente: “Quem se aproxima? Que cheiro é esse, que sofistica minha paleta?” Ela, e o mundo enrolado sobre si mesmo. Ela, e o pântano repetindo o céu, ela, das entranhas da matéria, elos infinitos, nós de víboras eternas, adormecida em delícias. Ele avança com suas flechas de fogo, ela pisca seus dezoito olhos. Ele recua nauseado, ela espreguiça cabeça por cabeça. Ele respira fundo e sacode as ideias, ela levanta-se do nicho e chacoalha a cauda. Ele tapa as narinas e prossegue, ela prepara-se para o deleite dos cumprimentos. Ele mergulha na lama, ela o agarra pelas costas. Ele se debate, escorrega, ela se entrega ao próprio abraço. Por um instante o mundo para e assiste o tremor da terra e o ferver das águas: Ela vive um formigamento por todas as partes, ele, tomado de visco e asco desliza nas lisuras mornas, as cabeças entram invadem abusam enlaçam, ela suspira nove vezes em uníssono, ele se desvencilha exausto. A hidra sonha nove pequenas mortes e num fechar de olhos cria nevoeiros que se misturam à fumaça de novas flechas ardentes. Ele, recuperado, com seus braços toras de carvalho cinge meu torso, um corpo de nuvens que evapora quando elevado aos céus. Calma, querido, volte ao pântano de onde veio que ainda não acabei, eis-me toda no crânio imortal com o coração de fogo pulsando, não tome a nuvem por Juno. Mas Héracles não é um bom camarada e impaciente, rapace, covarde, resvala nas poças de meus olhos brandos e afunda cada vez mais na lama movediça. Confesso que me agrada vê-lo assim, ser tragado tão lentamente… É uma pena interromper o engolimento, mas não posso perdê-lo agora, ainda são muitos os sacrifícios para aplacar minha desforra.

Acordo o milenar caranguejo, ícone das sacerdotisas de Lerna, para libertá-lo do empuxo de Gaia. O cancro sobe moroso feito uma grande lua, o corpo de Héracles emerge aos poucos e, em equilíbrio precário, agarra a pedra de salvação. Dona de ávida pinça, a emissária sagrada ressente ter sido acordada para a batalha e com a arma em riste agarra o grosso calcanhar. Héracles sente a aguilhada e sorri, ousando dirigir-me a palavra: “Hera, não sou Aquiles” e esmaga espetacularmente a grossa carapaça.

O pequeno caranguejo torna-se imensa nebulosa, personagem para sempre de minha Via Láctea. Os invasores do norte batem ao mesmo tempo seus martelos: acabem com os ritos de fertilidade, a eterna dança do amor em Lerna.

A partir daí, que os outros façam mito da história, adoro rir de todos em silêncio. Narram que Héracles chama o sobrinho, seu motorista Iolau. O herói decapita cabeça por cabeça, o assecla lhe estende as tochas. Héracles queima uma por uma, cauteriza as raízes, contém a bruta hemorragia.

É como cortar caudas de lagartixas, deixemos que os meninos se divirtam.

Héracles empunha a cimitarra de ouro e decepa a enorme garganta loura, dourada. Antes de abandonarem a brincadeira, aquele que um dia foi chamado de Alcides, aquele que desconhece seu irônico destino, encharca a ponta de suas flechas no veneno letal, a bile da hidra.

O crânio imortal, mesmo enterrado sob grande pedra, catorze palmos abaixo da terra, continuará pulsando em mil cabeças de cobra comedoras do próprio rabo, até que a verdade e a mentira se tornem uma só gosma.

London Bar - Monica sergio viralobos frente fria
Monica Berger

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