Colocar David Bowie no seu filme é quase trapaça. E essa foi justamente a ideia de Nicolas Roeg, diretor de The Man Who Fell To Earth (1976). Já vou logo avisando: mesmo para quem está acostumado com as esquisitices de Bowie, o filme é uma viagem – no bom e no mal sentido. Pode parecer curioso como um filme protagonizado pelo camaleão do rock possa ter ficado tão esquecido. E olha que a receita do sucesso estava lá. Uma história sobre um extraterrestre se aventurando pelas dunas do Novo México com a missão de salvar seu planeta, no maior estilão das narrativas de ficção científica que explodiram nos anos 60 e 70 nos Estados Unidos. E claro que os apreciadores de glam rock vão reconhecer a estética do filme: a película ainda rendeu as capas dos álbuns Station to Station (1976) e Low (1977). Por isso, mesmo com uns probleminhas aqui e ali, a coluna dessa semana dá uma chance para ver David Bowie em cena.
O Homem Que Caiu na Terra (título em português) é uma adaptação do romance de Walter Tevis publicado em 1963, que se tornou um clássico do gênero e hoje conta com uma série de TV (2022) e uma versão em HQ. No filme, nosso protagonista é Thomas Jerome Newton, um alienígena excêntrico, introspectivo, de cabelos ruivos e sotaque britânico – óbvio que o papel não poderia ter sido entregue a ninguém senão David Bowie. Seu planeta natal enfrenta uma crise de falta de água, e Thomas chega à Terra para encontrar recursos para salvar a família que deixou para trás. Logo no começo de sua jornada por aqui, o E.T. se disfarça entre os humanos e ganha uma fortuna patenteando uma tecnologia alienígena com a ajuda do advogado Oliver Farnsworth (Buck Henry). Thomas logo conhece Mary-Lou (Candy Clark), uma jovem com quem desenvolve um relacionamento e passa a lhe confiar seu segredo. Enfrentando a saudade de casa e fugindo dos testes invasivos de cientistas curiosos, Thomas assiste sua missão falhar lentamente.
A partir daí são pontos altos e baixos, sem muito meio-termo. A fotografia do filme sabe explorar o melhor das paisagens desérticas do planeta de Thomas e dos EUA e as atuações são impecáveis. Mas as coisas começam a ficar complicadas para o lado do espectador quando o assunto é saber o que está acontecendo. A falta de clareza na primeira metade do filme deixa no ar um “não entendi” que é difícil de superar. É através dos diálogos que a produção entrega a verdadeira missão de Thomas – o visual do filme prende os olhos na tela, mas não faz muito pela história em termos práticos. Como não poderia ser diferente, a inspiração em 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968) é nítida – ainda mais quando se trata das imagens do alienígena girando no espaço com feixes de luz coloridos. O diretor também faz algumas escolhas de recursos interessantes, como a discreta quebra da quarta parede quando Thomas e Mary-Lou encaram a lente da câmera.
A melhor parte, claro, é ver Bowie atuar. O músico, que quatro anos antes já havia vivido o marciano Ziggy Stardust no disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1974), já era um alien experiente – coisa difícil de se achar. A película foi a estreia de Bowie no cinema, mas o cantor não parou por aí e seguiu se aventurando como ator. Para citar alguns exemplos, depois de entrar na pele de um alienígena, interpretou um vampiro em Fome de Viver (1983), um elfo em Labirinto (1986) e incrivelmente, um de seus papéis menos estranhos foi o de próprio David Bowie em Zoolander (2001). Falando nisso, o filme tem um humor tímido, mas que consegue se ligar um pouco mais com o espectador em meio a tanto drama e ficção.
O roteiro de The Man Who Fell To Earth foi certeiro em criar cenas para Bowie se destacar. Sua atuação tem uma boa dose de carga emocional, especialmente quando contracena com Candy Clark. Inclusive, as sequências mais marcantes são, com certeza quando Thomas revela sua verdadeira forma para Mary-Lou, que se assusta e joga uma forma de cookies para o alto, criando um daqueles jumpscares cômicos que todo mundo adora; e quando o casal se reencontra e o alienígena a ameaça com um revólver, que ele também usa para mexer seu drink. Mas apesar das cenas que ficam grudadas na cabeça e do final trágico do nosso querido alienígena, não dá para deixar de lado o sentimento de que faltou alguma coisa. De qualquer forma, tá aí um filme que tinha tudo para se tornar um clássico sci-fi cult, mas que acaba sendo apenas uma boa para assistir quando bate a saudade de Bowie.
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