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Um comunista na Fórmula 1

08/03/2022

Por Ernani Buchmann – 

Nos tempos do regime fardado, e nas épocas turbulentas antes dele, era hábito hospedar em casa algum líder clandestino de passagem por Curitiba. Bem entendido: hábito para quem tinha algum compromisso com ideias, digamos, progressistas.

 

Eduardo Rocha Virmond conta que, no início dos anos 1950, seu pai levou para casa um homem muito simpático, de conversa agradável, que se destacou ao ajudar a esposa do anfitrião na cozinha. Era o jornalista João Saldanha, militante do Partido Comunista, o Partidão.

 

Cecília Vieira Helm, filha do advogado, professor e político de esquerda Vieira Neto, narra outra história. Certo dia, seu pai comentou com a mulher e as filhas: “O Marighella dormiu aqui em casa esta noite”. A mãe de Cecília quase morreu de susto, não só por desconhecer a passagem de um hóspede pela sua casa. Tinha razão, porque Carlos Marighella era o clandestino mais famoso entre os procurados pelas forças da repressão.

 

A propósito, Vieira Neto era vítima habitual da polícia política. Sempre que a situação engrossava, alguns comunistas conhecidos eram levados para uns dias no xadrez: Vieira Neto, o livreiro Aristides Vinholes e o comerciante Berek Krieger eram três dos hóspedes compulsórios usuais.

 

Fábio Campana, ele mesmo militante, hospedou dezenas, centenas em seu apartamento na rua General Carneiro. Pelo que me lembro, sempre havia alguém dormindo no quarto de empregada e não era nenhuma faxineira.

 

Pois o Fábio me pediu, certa feita, que hospedássemos João Amazonas, o líder do PCdoB. O velho Amazonas não gostava de hotéis, sentia-se inseguro depois de décadas de clandestinidade. Meus filhos eram pequenos, mas ainda assim a Adelina, que cuidava deles, poderia ajeitar as coisas. Ela transformou em cama o sofá da sala. O velho usava o lavabo para sua higiene, tinha acesso ao bar e à biblioteca, tudo isolado do restante da casa por uma grande porta de correr.

 

Certa noite, antes de dormir, Amazonas abriu aquela porta e me chamou para ir à janela. Do outro lado da rua, no grande muro que separava a calçada do pátio de máquinas da Construtora F. Greca, ali no Bom Retiro, estava encostado o federal escalado para vigiar o velho. Ele comentou

 

– Olha lá o nosso fantasma. Vai passar a noite ao relento, num frio desses!

 

Demos um tchauzinho e fechamos as cortinas.

 

Outra vez, marcaram uma reunião sindical para domingo, 8h da manhã. Adelina levantou cedo, fez o café de praxe e chegaram os sindicalistas. A conversa de sempre, o lúmpen havia chegado à Cidade Industrial, analisavam estratégias de paralisação. Já imaginei a cena: os explorados e os famélicos do mundo marchando na Rua XV de Novembro ao som da Internacional.

 

Enquanto eles preparavam a revolução proletária, lembrei que estava na hora da largada de uma corrida de Fórmula 1. Abandonei a luta de classes e liguei a TV na outra sala. Dada a largada, notei que alguém tinha sentado ao meu lado. Era João Amazonas, franzino, agasalhado em um casaco muito simplório (albanês, por certo), com uma xícara de café na mão. Não expliquei a ele minha pouca intimidade com o automobilismo, nem as aventuras malfadadas em diversos circuitos, como enfiar a perna em um esgoto ao lado da curva da junção, em Interlagos, ou viajar milhares de quilômetros para não ver uma corrida de Fórmula 2 em Fortaleza.

 

Olhei estranhando ver aquele comunista ali, interessado naquele esporte de ricos enquanto o governo era derrubado na copa ao lado. Ele quebrou o gelo:

 

– Você é Piquet ou Senna?

 

– Piquet.

 

– Eu também.

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