Com excessão de um triciclo vermelho, não lembro os presentes que ganhei nos Natais da minha infância.
Mas consigo vivamente sentir o gosto das bolachas de Natal e lembrar das brincadeiras com os primos, dos cânticos natalinos e do presépio vivo, que aconteciam em todos os Natais.
Dia 25 de dezembro: a família inteira comparecia para o almoço na casa dos meus avós e era uma alegria encontrar os primos, todos vestindo roupas e sapatos novos.
Logo íamos trepar na barra de macacos (trepa trepa), brincar na casinha de bonecas, no balanço, correr em volta da casa ou brincar de se esconder.
A sala de jantar era quase um lugar sagrado. Ficava trancada o ano inteiro. Aberta somente no Natal.
Quando chegávamos, Vó Cilá estava com o cabelo arrumado, avental engomado branquinho com um laço amarrado atrás.
Já se encontrava lidando com o pernil, peru, bananas à milanesa, maionese, farofa caprichada, arroz à grega, saladas, fios de ovos, papo de anjo, pudim de claras,..
Vó Cilá não fazia sobremesas com leite condensado. Só as tradicionais com ovos, açúcar e leite. Tipo queijadinha, quindim, ovos nevados, ambrosia, baba de moça e outras.
As bolachas de mel eram preparadas na primeira semana de dezembro e vovó servia a todos.
Eram deliciosas, sabor característico, macias em formato de pequenos losangos.
Ao morder podia-se sentir os pedacinhos de castanhas na massa. Vovó não fazia a decoração natalina com glacê de açúcar colorido. Só um pedaço de castanha do Pará que ficava à mostra.
Na sala de jantar (a trancada) não cabiam todos e somente os adultos sentavam em volta da mesa.
As crianças ficavam na copa que era uma sala de refeições com mesa grande onde eram servidas as refeições triviais do dia a dia.
Depois do almoço todos se reuniam na sala de jantar e sala do piano, onde se encontrava o pinheirinho de Natal com as bolas, enfeites e algodão desfiado imitando flocos de neve.
O presépio era montado com barba de bode (capim) sobre o qual eram colocadas a estrebaria, as imagens da Sagrada Família e a manjedoura com o Menino Jesus.
Maria Thereza preparava sempre um escrito de agradecimento.
Era tipo um jogral. Cada pessoa recebia um papel no qual estava assinalado com esferográfica o nome de quem devia ler cada parágrafo.
E finalmente chegava a hora do presépio vivo.
Os guris da família já iam se sumindo, se escondendo, mas não tinham como escapar.
Eram capturados para fazer o papel dos Reis Magos, do José, do Anjo Gabriel e dos pastores. Meio à força, geralmente chantageados.
Como eram poucos primos homens e arredios a essas apresentações, as netas acabavam tendo que fazer papéis masculinos para o presépio ficar completo. Minha filha Karina tem até trauma porque em todos os Natais só fez papéis masculinos. Nunca foi a Maria.
Maria Thereza (Tia Ziza) era sempre a narradora e fazia o mesmo tom de voz solene, revestindo o momento de muita seriedade.
As meninas eram maioria, mais participativas e até disputavam para ser a Maria (o papel feminino mais importante).
Ser anjo também era bom porque tinha asas. Os pastores não era muito bom e não precisavam falar nada.
Jesus era sempre o bebê mais novinho da família. Sempre tinha um bebê nascido no ano, visto que eram 21 netos.
Já Maria Madalena era um papel coadjuvante mas era melhor do que não ser nada.
Esse presépio se repetiu durante mais de 40 anos e já tinha as roupas certas, antes confeccionadas em papel crepom pela Maria Zeni e depois com tecido mesmo, já próprias para a ocasião.
O encontro se encerrava com os cantos de Natal. Vovô sentava no piano e todos cantavam juntos.
Não faltava o Adeste Fidelis, o Tannnenbau e outras canções. A última música era sempre Noite Feliz.
Cada familiar presente recebia um papel com a letra das músicas para poder cantar todas as estrofes. No final a gente devolvia para ser aproveitado no ano seguinte.
A primarada ficava esperando a hora quando o Ruca (meu primo Ruy Carlos) ia desafinar na “Noite Feliz” – “Dorme, em paz, ó Jesu – US”.
Na hora do “US”, o Ruca fazia um soprano e toda a gurizada segurava o riso.
Era o momento já esperado e mais divertido das cantorias.
Eu achava que era pecado rir nessa hora, mas não dava para aguentar.
Ao término nos apressávamos para mais brincadeiras lá fora porém logo os pais vinham atrás dizendo que era hora de ir embora.
– Mas, já? A gente ainda nem brincou direito!
E desta forma nos despedíamos. Alguns só veríamos no próximo Natal quando a vovó destrancaria aquela sala e a magia e alegria se fariam presentes novamente.
A vovó faleceu aos 92 anos e os Natais permaneceram ainda, já sem tantos integrantes mas com presépio e cânticos natalinos, graças aos esforços incansáveis da Maria Thereza Romanó.
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