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GERSON-CABECA-COLUNA

Fernanda Torres: você mereceu o prêmio, mas ainda deve desculpas

13/01/2025

Há poucos dias, Fernanda Torres recebeu reconhecimento internacional pela atuação no filme “Ainda Estamos Aqui”. Não o assisti, mas tenho lido e ouvido comentários e críticas a favor e contra, reproduzindo a polarização político-ideológica que vigora em tudo. A propósito, acho que só no futebol isso ainda não está acontecendo, mas logo chegará o dia em que também aí teremos a separação ‘Progressistas x Liberais’ ou, como ouvi recentemente de um amigo, a ‘polarização opinativa’, que reflete a tendência de interpretar eventos culturais, sociais ou artísticos à luz de preferências políticas, muitas vezes ignorando o mérito intrínseco da obra.

A verdade é que a premiação (merecida, porque Fernandinha é uma excelente atriz) me fez lembrar de um episódio ocorrido quando ela escreveu um artigo intitulado “Treblinka”, publicado na Folha de S. Paulo em 25/08/2017, onde comparava a situação dos presídios no Rio de Janeiro aos campos de concentração nazistas.

Abaixo, transcrevo o artigo:

“Por razões profissionais, procurei Marcelo Freixo para conversar sobre o dia a dia das prisões no Rio de Janeiro. Terminado o café, o deputado me propôs que eu visitasse uma penitenciária. Acabo de chegar do Evaristo de Moraes, presídio localizado na antiga estrebaria da família real, entre o zoológico da Quinta da Boa Vista e a comunidade da Mangueira. A localização já diz muito, mas me atenho aos números. Planejada para alojar 1.400 presos, a unidade abriga 2.500 detentos e conta com seis guardas que se alternam na ronda, em turnos de 24 horas.

Ali, se amontoam condenados por estupro, assassinato e tráfico. Também estão lá criminosos que traíram ou não têm ligação com as grandes facções e que correriam risco de vida caso fossem alocados em unidades dominadas pelo Comando Vermelho (CV), a Amigos dos Amigos (ADA) e o Terceiro Comando.

Essa é a escória do crime, me disse Castro, que dirige a unidade. Com longa experiência, o diretor explica que é mais difícil estabelecer uma relação de confiança e respeito com uma população carcerária sem hierarquia própria.

Cada cela tem um líder encarregado de fazer reivindicações e manter a ordem nos 200 metros quadrados sob sua responsabilidade. Sem a colaboração dos presos, seria impossível evitar o caos.

Guardas e detentos habitam essa praia imunda, onde o tsunami da desigualdade social dá de arrebentar. Assolada por décadas de ineficiência e corrupção do poder público, a legião de brasileiros sem escola, hospital, creche, transporte e saneamento básico acaba trancada ali, enquanto a sociedade transfere para a polícia o dever de barrar as vagas.

Durante a visita, os presos se alinharam diante das camas, em posição de sentido atrás das grades. Ao verem Freixo, se aproximaram formais, pedindo urgência nos processos, transferência para perto dos familiares e assistência médica.

Tuberculose, erisipela, hérnia, psoríase, sarna, aids: todas as misérias do mundo fazem a festa num presídio úmido e superlotado, com goteiras pingando sobre colchões de espuma sem forro. De short, eles exibiam as cicatrizes, feridas e sequelas de suas tragédias, enquanto tentavam aparentar calma e controle.

“Vamos entrar?” propôs Freixo. Atravessei o corredor de corpos enfileirados, e o que parecia uma massa uniforme de rostos pardos do lado de fora adquiriu individualidade. Didier, a trans que assassinou um cliente a facadas, me mostrou a cópia do passaporte que usou para rodar a Europa; um homem me recitou um poema; outro, ator, disse ter participado de uma oficina de teatro com minha mãe em São João do Meriti.

Percorri os 25 metros até o banheiro e voltei, cercada de uma imobilidade assustadora, resignação sem piedade, uma linha tênue entre a razão e o desespero.

Dos 2.500 presos, só 60 trabalham. O ócio, diz Castro, é um grande inimigo. Mas não há planos, dinheiro, não há estratégia que não a de trancafiar e esquecer. Vigiar e punir. A polícia é tão refém desse sistema quanto os que vivem à margem.

Thiago Castilho, um jovem inteligentíssimo, nos abordou. Abandonado aos nove meses pelo pai e pela mãe, cresceu mendigo, assaltou, matou e tirou seu primeiro documento quando foi condenado. Já tentou o suicídio e foi salvo pela biblioteca e a escola do Evaristo de Moraes, onde foi alfabetizado. Escreveu dois livros: o último acaba de ser publicado. Ele pedia permissão para ir ao lançamento.

Os racistas que atropelaram “commies” nas ruas da Virgínia acenderam o alerta para o retorno do nazifascismo. Mas bastaram 50 metros de caminhada naquela cela para experimentar a rotina de um barracão de Auschwitz, Treblinka, ou coisa que o valha.”

Há muito tempo, manifesto-me em relação àqueles que, diante de situações graves, mas de outra natureza, as comparam ao Holocausto. Fazer esse tipo de analogia banaliza um dos maiores horrores da história humana: um genocídio sistemático que dizimou milhões de vidas inocentes.

(A propósito, ‘Liberais’: ao comparar as condições dos presos de Brasília pós-08/01/2023 com os Campos de Extermínio, vocês incorrem no mesmo erro.)

Ainda que problemas contemporâneos exijam atenção, nada se equipara à escala de brutalidade, sofrimento e desumanidade vivida naquele período. Usar o Holocausto como referência genérica demonstra ignorância histórica e desrespeito às vítimas e sobreviventes, além de empobrecer o debate sobre os problemas reais que enfrentamos hoje.

Comparações como essas não são apenas desnecessárias, mas também profundamente ofensivas e decepcionantes quando partem de pessoas cuja notoriedade exige equilíbrio e cuidado.

Ao ler o artigo da atriz, publiquei no meu blog, dias depois, o seguinte:

”Mas bastaram 50 metros de caminhada naquela cela para experimentar a rotina de um barracão de Auschwitz, Treblinka, ou coisa que o valha.”

A frase que abre minha postagem é a mesma que encerra o artigo que a atriz Fernanda Torres publicou na Folha de São Paulo de 25/8 sob o título “Treblinka”.Sempre admirei a Fernandinha, filha da Fernanda Montenegro, “a grande Dama do Teatro Brasileiro”. Adorava “Os Normais” e gostei muito do monólogo “A Casa dos Budas Ditosos” que ela fez e assisti este ano no Festival de Curitiba.

Pois vejam só, essa moça visitou um presídio no Rio de Janeiro e saiu de lá horrorizada com o que viu. Será que ela imaginava que numa cidade onde falta tudo, de segurança a aspirina infantil, as cadeias fossem um cenário da Globo?

Ao fim da visita ela achou de bom alvitre escrever sobre o que presenciou. Não estava indo mal, do ponto de vista do relato factual, mas devia ter parado um parágrafo antes.

No final a Fernandinha derrapou feio e enveredou pelo caminho da estultícia, quando o termo é usado para definir pessoas que não pensam antes de falar e não medem as consequências de como suas palavras afetarão outras pessoas.

Não, Fernandinha, não há como comparar.

Por mais fortes que sejam as cenas que você presenciou, nada do que acontece lá pode ser comparado a Auschwitz, Treblinka “ou coisa que o valha.”

Aliás, Fernandinha, “coisa que o valha” foi mal, muito mal. Com isso você conseguiu piorar o que já era péssimo.

Sou judeu e a Rosane, minha mulher, é espírita. Juntos estivemos em Auschwitz, em Birkenau, em Majdanek e em Treblinka.

Nesses lugares fizemos uma regressão e ‘quase’ pudemos sentir a dor das pessoas que passaram por lá. ‘Quase’ pudemos cheirar a fumaça que saia das chaminés. ‘Quase’ pudemos ouvir os gritos de horror, no silêncio respeitoso devido aos locais sagrados. ‘Quase’ vimos a degradação e o desespero das pessoas que viveram a mais negra página da história da humanidade.

‘Quase’ dá para sentir, ‘Quase’ dá para enxergar, Fernandinha. Porque mesmo os atores talentosos como você jamais conseguirão passar para as plateias a representação verdadeira do que houve lá. Reconhecer erros é bom, enobrece e faz bem à alma. Peça desculpas aos judeus, aos ciganos, aos gays, aos comunistas, aos dissidentes políticos, aos anarquistas, aos combatentes da resistência, aos testemunhas de Jeová, aos padres, aos deficientes mentais e físicos, aos sindicalistas, aos poloneses e aos outros eslavos. Reconheça o erro, Fernandinha.

Seja menos Fernandinha e mais Fernanda Montenegro.”

Como disse, a premiação de Fernanda Torres é um feito notável, mas, para mim, ela continuará devendo até o dia em que se retratar pelo artigo de 2017. Figuras públicas não apenas encantam, mas também influenciam, e reconhecer os erros do passado é uma forma de liderar pelo exemplo.

Fernanda, seu talento é inegável. Que tal agregar a ele a nobreza de um pedido de desculpas?

Quando isso acontecer, você voltará a ter de mim o reconhecimento e o carinho de antigamente.

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