O Brasil comemora quarenta anos de transição democrática. Esse processo não foi suave. O falecimento de Tancredo Neves, presidente eleito pelo Congresso Nacional, antes de sua posse, acirrou os ânimos de alguns militares. Ainda assim, seu vice, José Sarney, assumiu o cargo. Seu grande legado foi iniciar e defender a transição para a democracia. Apesar de seu insucesso na política econômica, deixou outras lições, entre as quais cunhou a expressão “liturgia do cargo”, com o intuito de externar a responsabilidade que um Presidente da República tem perante a sociedade. Naturalmente, essa liturgia se aplica a outras autoridades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Ao que tudo indica, essa liturgia encontra-se esquecida pelo atual inquilino do Palácio do Planalto. Não raro, ele profere expressões vulgares e ofensivas, as quais ninguém deveria externar. Entre elas, destacam-se: “Depois do jogo de futebol, aumenta a violência contra a mulher. Inacreditável. Se o cara é corintiano, tudo bem” (julho/2024) e “Coloquei essa mulher bonita para ser ministra. (…) Não quero mais ter distância de vocês” (março/2025). Triste realidade. O efeito acaba sendo uma metástase na sociedade. Afinal, se o Presidente da República se expressa dessa forma, por que outros não poderiam fazer o mesmo?
Aliás, apesar das vedações da Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN), não é raro que membros do Poder Judiciário também exponham publicamente, em redes sociais e outros veículos de comunicação, suas opiniões sobre diversos temas, inclusive tecendo críticas ao próprio Judiciário. Talvez, inconscientemente, sejam motivados pelos últimos Presidentes do STF, que têm participado de debates públicos sobre variados assuntos. Naturalmente, nesse mundo polarizado e estéril, as reações são inevitáveis.
Enfim, a despeito dos ataques diuturnos ao Estado Democrático de Direito, neste período comemorativo dos quarenta anos da transição democrática, é fundamental relembrar a importância da liturgia do cargo. Talvez por isso, já na Roma Antiga, tenha surgido a célebre expressão: “À mulher de César não basta ser honesta, ela tem que parecer honesta”.
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