Se há alguém nessa cidade que conhece bem as calçadas do centro de Curitiba, essa pessoa sou eu. Vou contar o porquê.
Aos 7 anos desenvolvi TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo).
E entre várias esquisitices e manias absurdas, frequentes, incessantes, eu não podia pisar nas pedras pretas das calçadas.
Sei que evitar pisar em pedras pretas não é tão incomum mas certamente desenvolvi o TRANSTORNO OBCESSIVO COMPULSIVO em um grau exacerbado. Algo tão destruidor que nem gosto de lembrar da minha infância por isso.
Lembro de quando estudei no Colégio da Divina Providência, na Rua do Rosário, e fazia o percurso de ida e volta a pé.
A saída de casa pela Rua General Carneiro era uma verdadeira prova de fogo! Paralelepípedos brancos e pretos se alternavam de fora a fora na calçada. Se pisasse em uma pedra preta, uma consequência inevitável iria acontecer: MEU PAI IRIA MORRER!
Eu retornava dois passos atrás tentando apagar a ação de ter pisado na pedra preta e refazia os passos à frente, tentando dessa vez não roçar na pedra escura.
Mais uns 15, 20 metros à frente, um dos meus pés escapulia e encostava na pedra preta. E a sentença inclemente: – MINHA MÃE iRIA MORRER!!!
Mesmo familiarizada com o calçamento da área central da nossa cidade, ficava refém daqueles pensamentos que me escravizavam a repetir ações de forma exagerada, contínua e estapafúrdia.
Chegava na esquina da Rua General Carneiro e dobrava, descendo a Rua Benjamin Constant. Era um bálsamo! Dois paralelepípedos pretos e dois brancos dispostos verticalmente ao longo de duas quadras inteiras, até alcançar a Rua Mariano Torres. Eram dois quarteirões para seguir em paz. Nesta época, a Rua Mariano Torres ainda era chamada de “Rua do Rio” (o Rio Belém que ficava a céu aberto) e o calçamento era só de terra batida. Mas a partir desse ponto começavam os petit-pavês.
Da esq. p/ dir.: Magda Schöll, Martha Renner Schöll, Bisa Olímpia Renner e Márcia Schöll,
na calçada da Rua XV de Novembro com os desenhos de pedrinhas (acervo próprio)
Na altura do Teatro Guaíra, as pedrinhas formavam ondas pretas e eu serpenteava como uma cobra pelas pedras brancas. Tudo isso tentando parecer uma pessoa normal para quem me observava dançando pelas ruas.
Aprendi a disfarçar aqueles movimentos estranhos e repetidos. Se alguém estivesse ao meu lado, fingia deixar cair um objeto para ter a desculpa de parar, voltar atrás dois passos e refazer o percurso. Tinha consciência que isso era absurdo, mas não conseguia controlar esse comando, que me obrigava a agir assim.
Com o tempo, aprendi a escolher os ‘melhores’ percursos – com menos pedras pretas, mas isso era bem difícil, pois todas as ruas centrais tinham as pedrinhas.
Percorria a calçada ao lado da Praça Santos Andrade, com seus pinhões desenhados artesanalmente em pedrinhas pretas, os quais desviava me esgueirando pelo cantinho do calçamento, aproveitando as folgas brancas.
Na frente da Universidade Federal do Paraná já complicava, não bastassem os pinhões, havia também pinheiros que só permitiam que eu passasse de um lado do calçamento. O pior ainda era o trecho em frente aos Correios: pedras brancas e pretas se equivaliam em número formando desenhos grandes. Para sair de uma base branca e chegar em outra branca, tinha que pular. Às vezes, para esses casos, a melhor solução era andar sobre o meio fio. Considerava o meio fio um “pique” que me punha a salvo!
A partir dos Correios, o trajeto pela Rua XV era relativamente fácil, mesmo considerando as calçadas mais estreitas pois não era ainda via exclusiva para pedestres.
Chegando na Praça Generoso Marques, a dificuldade retornava. Desenhos modernos, geométricos, em formato de bolas, losangos, semicírculos e quadrados que, eventualmente, se sobrepunham. Era bem complicado e isso se estendia até a Praça Tiradentes.
Naquela época ainda não havia faixas de pedestres nas ruas mas depois que foram pintadas, virou uma tortura. Evitava, mas, às vezes tinha que enfrentá-las para atravessar as ruas. Porém só podia pisar nas faixas brancas porque o asfalto era considerado preto; então tinha que esticar as pernas entre uma faixa branca e outra ou abrir bem uma das pernas e juntar a outra. Depois seguia repetindo até a última faixa.
Ao chegar na Rua José Bonifácio, ao lado da Catedral Metropolitana, ficava bem fácil. Linhas retas de petit-pavês pretos e poucas curvas. Poderia também subir direto pela Rua do Rosário, que era a rua do Colégio. Era mais fácil ainda! Só pedras brancas! Penso que o calceteiro da prefeitura deve ter me observado toda atrapalhada, ziguezagueando pelas ruas entre as pedrinhas pretas e facilitado para mim, deixando só pedrinhas brancas na quadra do colégio.
Poderia ainda falar dos desenhos nos calçamentos das ruas Mal. Deodoro, Monsenhor Celso, José Loureiro e tantas outras do centro de Curitiba, mas iria cansar vocês. Vou encerrar falando da rua que eu achava a pior de todas: a Rua Barão do Rio Branco. Os desenhos ali formados pelos petit-pavês eram predominantemente feitos com pedras pretas e sobravam poucas pedras brancas. Só dava para passar lá se fosse voando senão minha família toda morreria (lembrando que depois do pai, da mãe, morreriam meus irmãos, avós e assim por diante).
Meu apelido era “Um dois, um dois”, até entre familiares, dito de forma carinhosa. Pelo fato de estar repetindo todas as coisas o tempo todo, conferindo, checando, continuamente voltando dois passos atrás, abrindo e fechando gavetas, torneiras, portas, muito atenta com questões de limpeza e simetria, escrevendo e apagando a mesma palavra na sala de aula, sentando e levantando de uma cadeira inúmeras vezes seguidas, repetindo rezas, palavras, ações e outras manifestações que variaram ao longo da minha infância e adolescência e que me causaram tremenda angústia e sofrimento.
Posso afirmar que a partir dos 7 anos, não concluí uma ação sequer, por mais banal que fosse, como levar uma colher de arroz à boca, descascar um chicletes, ou passar o shampoo nos cabelos, sem que tivesse que repetir 2, 3, 5, 10…vezes.
Foto 1: Da esq. p/ dir.: Magda Schöll, Martha Renner Schöll, Bisa Olímpia Renner e Márcia Schöll, na calçada da Rua XV de Novembro com os desenhos de pedrinhas (acervo próprio)
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