A menininha da foto sou eu.
Já falei pra vocês que sempre fui esquisita. Ninguém sabia o que eu tinha porque a psiquiatria ainda engatinhava.
Hoje muitos transtornos mentais são diagnosticados e há protocolos e linhas de tratamento a seguir: TOC, Bipolaridade, Borderline, Transtornos de Personalidade, TEA,…
Isto ocorria também antigamente, com a diferença de que ninguém sabia do que se tratava… e nem como se tratava.
De uma forma geral ou se era “normal”, “esquisito” ou “louco-varrido”.
Só sei que sentia que era diferente das outras crianças.
Ficava nervosa com qualquer coisa, irritadiça, descontrolava e chorava muito, choros que se estendiam, explodia por pouca coisa, muito ligada no meu pai, sentia saudades exageradas ao ter que me separar dele para ir à escola.
Demorei a engatar no colégio, só depois dos 7 anos.
Por outro lado, era também alegre, inteligente, curiosa, disposta, criativa. Nunca tinha preguiça de nada.
E assim fui indo, muito bem na escola, brincadeiras com os primos, mas no restante começou a desandar a partir da adolescência.
A partir daí foi aos tropeços. Rodeada de amigas, alguns paqueras mas sempre desorganizada emocionalmente. E isso já se refletiu nos primeiros relacionamentos amorosos.
Quando conheci meu marido, já com 28 anos, vindo de outra cidade e de outro mundo, decidi deixar o passado para trás e iniciar uma nova vida.
De fato consegui. Fui mãe e esposa dedicada. Nessa ordem. Com TOC e tudo.
Entre crises intercaladas com períodos de arrependimento, devo confessar que meu marido foi um herói.
E fui uma mãe dedicada acima de tudo. Dedicada e manipuladora.
Meus filhos sofreram com a mãe obsessiva, principalmente a primeira filha.
A segunda absorveu com pouco impacto e o terceiro idem.
E pela Graça de Deus, e só por Ele, se tornaram pessoas maravilhosas.
Não falo por ser mãe coruja, é porque ouço de quem os conhecem. Sinal que nem tudo foi erro.
Minha filha mais velha, que ganhei ainda solteira aos 25 anos, foi como o significado do seu nome: LUCIA – LUZ
Foi uma verdadeira luz na minha vida. Em todos os sentidos.
Muitos anos mais tarde, já médica, foi quem me diagnosticou com “Borderline”.
Até então era só obcessiva compulsiva.
Lembro que fui diagnosticada com o TOC quando já era casada.
E lembro como o médico ficou impressionado pois já conhecia toda a teoria da “nova” doença mas de repente estava frente a frente com um caso “rico” e tão característico. Nunca tinha se deparado com um paciente com TOC assim.
Era o Dr Luiz Gonzaga da Motta Ribeiro Filho. Um grande psiquiatra que faleceu em acidente de automóvel.
E enfim, com nome e diagnóstico firmado: TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) a partir daí nunca achei que teria algo a mais, ainda mais nocivo e devastador para os que me rodeavam.
Foi minha primeira filha, a pessoa que me conhece mais profundamente na vida e que sofreu as piores consequências disso tudo, quem desvendou esse segundo diagnóstico.
Eu nunca tinha ouvido falar de TRANSTORNO BORDERLINE.
Mas os anos se passaram, filhos com suas próprias vidas já organizadas e agora tento organizar a bagunça que deixei lá trás.
O lixo que ficou empilhado e que não foi descartado corretamente. A escrita tem me ajudado.
E escrevo publicamente para que outras pessoas saibam e eventualmente ajudem pais em situações semelhantes.
Se eu conseguisse ter falado sobre isso com meus pais, talvez pudesse ter sido mais fácil. Mas eu tinha tanto medo de falar disso.
TOC e Borderline.
Tanto uma quanto a outra tem nomes até meio chiques, o que erroneamente disfarçam a letalidade e o mal que causam aos que convivem e a si próprios.
Acho até injusto uma nomenclatura tão branda comparada às outras doenças mentais, sendo os pacientes bem mais estigmatizados, como por exemplo:
– Quem tem esquizofrenia é esquizofrênico. Isso já é quase um xingamento.
O psicopata, além da doença em si, carrega o estigma de já ser uma pessoa perigosa
Já quem tem “Borderline”, os portadores são chamados de “Borders”. É até simpático.
E quem tem TOC, parece ser até uma característica positiva, porque muita gente até gosta de dizer que tem TOC com limpeza, que arruma tudo milimetricamente no lugar, que confere se o gás e a porta e as torneiras estão desligadas várias vezes e tem nos armários, as camisetas separados por cores, etc.
Bem, no fim, o sujeito passa a ideia que é super organizado e cuidadoso. Quem dera fosse isso!
Mas não é bem assim. Os dois são distúrbios incuráveis porém hoje controláveis “até certo ponto” com medicação e terapia.
Antes não tinha nada. Nem curso de psicologia existia quando eu era pequena.
Se a pessoa era louca, depois sabia-se que ia acabar indo pro hospício. Lá ia tomar choques e ficar separada da sociedade.
Ou tinha que endireitar na marra. Acho que meus pais achavam que eu iria endireitar com o tempo.
Vou exemplificar uma situação, das incontáveis que se repetiam diariamente durante todos os segundos do dia. Todos os segundos mesmo e não estou aumentando.
Nas aulas, de todas as matérias, as crianças iniciavam escrevendo o bendito cabeçalho: – Curitiba, dia tal, mês tal, do ano tal.
E isso era bem assim nos colégios: todo dia, toda santa aula.
E com minhas loucuras, não tinha sossego:
Nunca pude escrever “CU”ritiba em paz. Nenhuma vez na vida! Nenhuminha…
Por dois motivos: primeiro por causa do TOC, que me obrigava a escrever e apagar inúmeras vezes cada palavra, porque é assim que funciona.
Mas também tinha um outro problema: Curitiba tem a sílaba “CU”.
Esse palavrão ficava se repetindo na minha cabeça e tudo que eu pensava ou vinha na minha cabeça era “CU”.
E quanto mais eu tentava afastar um pensamento, mais ele tomava conta. (Tente ficar um minuto sem pensar na palavra “bola”. Você vai ver que ao tentar expulsar um pensamento, mais ele vem).
A professora era “CU”, as amigas eram “CU”, a mãe, o pai, irmãos eram “CU”, e até Nossa Senhora e todos os Santos que eram as pessoas que mais eu queria respeitar e eram tão sagradas, acabavam sendo o alvo. Até Jesus Cristo não escapava. E mesmo procurando ao máximo respeitar a Sagrada Família, sentia remorsos porque achava que estava xingando Jesus.
E dá-lhe penitências: 50 ave-marias e 10 pai-nossos sem nem um pensamento ruim desses palavrões. Impossível. E a cada tentativa frustrada, tinha que recomeçar e recomeçar, sem nunca conseguir.
Achava que era exorcizada. Passou o filme “O Exorcista” e achava que era a protagonista: Linda Blair.
E isso era só o começo de uma derrota sem fim. Não podia escrever palavras que continham a letra “m” e nem a letra “p”. E depois também com a letra “f” e “b”.
Lutava intermitentemente dia e noite contra pensamentos que ofendiam a Cristo e Maria e os Santos.
E com o tempo fui aprendendo novos palavrões que inundavam minha cabeça e faziam essas combinações malucas.
Depois fazia associações de palavrões com imagens de igrejas, quadros de Santa Ceia, bíblias e crucifixos que tinham em salas de aula, em repartições públicas, em tudo.
Tinha uma bússola em minha cabeça que conhecia a direção de todas as torres de igrejas de Curitiba (o fato de morar no último andar de um prédio no Alto da XV permitia essa visão privilegiada).
E não podia ir ao banheiro sentar na patente para fazer as necessidades com o bumbum virado em direção a uma dessas torres de igrejas.
Era o fim! Não havia posição para sentar no vaso e chegava a segurar o xixi e cocô até o limite, evitando ir ao banheiro.
Na adolescência fui proibida por um psiquiatra e até pelo meu pai de ir a igrejas. Mas quem me segurava?
E ficava exaurida só tentando extirpar esses pensamentos, sem nunca conseguir.
Dormia de exaustão. Ou explodia por nada, uma simples mordida que meu irmão dava numa maçã me fazia gritar descontroladamente e chorar por horas seguidas.
Misturava tudo na cabeça. DEMAIS! Desde muito cedo tinha uma religiosidade muito forte e tudo estava ligado à religião, pecado, culpa, castigo e MORTE!
E tudo que eu pensasse ou agisse de mal, o castigo seria a morte. A morte do meu pai ou da minha mãe.
Era o que eu mais temia e tinha certeza que merecia com esses pensamentos.
Chegava a fazer xixi na calça de desespero de não conseguir afastar esses pensamentos, tanto no colégio como em casa.
Parecia um liquidificador ligado na cabeça com mil pensamentos nada a ver.
E tudo estava relacionado à culpa de pensar assim, que atrairiam mortes e para evitar eu tinha que fazer penitências. E as penitências eram o meu viver.
Não tinha fim e o fato de estudar em colégio de freiras, onde toda sala tinha crucifixo e imagens religiosas nos corredores, só acentuava o processo. E também tinha em bancos, bibliotecas e em todos os lugares.
E aqui estou. Com TOC e BORDERLINE + REMÉDIOS diários que tomo há 30 anos, tarja preta, e que se um dia vierem a faltar, meus filhos são capazes de ir buscar na China, no Alaska ou onde for que acharem disponíveis porque A MÃE SEM REMÉDIOS NÃO DÁ!
E vida que segue porque sei que entre altos e baixos, não vou morrer disso.
Mas com isso!
E hoje sou uma grande amiga dos meus filhos mais novos. Com a primeira há muitas dores que ela ainda sente.
Deus e ela estão me dando a oportunidade de escrever com os netos (filhos dela), uma história mais colorida e leve.
Leia outras colunas da Karin Romanó aqui.
Até chorei aqui
Legal. Que luta.
Adoro seus textos e mais ainda sua coragem de falar dos seus problemas….. tenha certeza que nós ajuda muito……. obrigada
Muito corajoso seu relato; sei o quanto não é fácil viver com um diagnóstico de qualquer transtorno, que dirá sem esse diagnóstico ou os benditos remédios que através do avanço da ciência tivemos a chance de poder usufruir. Lendo a história da sua vida me vejo em muitos episódios, muitas manias, pensamentos persecutório, a cabeça às vezes viajando até a lua, a eterna impressão de inadequação, o apego ao pai herói, noite em claro achando que iria morrer dormindo ou que seria levada pelos marcianos que assistia na série “Perdidos no Espaço”. Coisas de criança mas que nunca foram aleatórias mas recorrentes. Uma angústia e a exigência comigo mesma, o perfeccionismo que nunca me ajudaram nem um pouco, pelo contrário me afastava das pessoas…me confundia e me atrasavam sempre, pq estava sempre começando alguma co
isa. Sempre pensei que era de outro planeta e os meus pais nunca repararam no meu sofrimento, estavam sempre ocupados consigo e projetavam em mim todos os sonhos e desejos não alcançados me sobrecarregando ainda mais. Casei aos 28 anos tb e tive meu filho aos 30 anos. Na época todos acharam, inclusive eu que não duraria um ano e estamos aqui há 33. Dou Graças a Deus aos médicos, remédios, estabilizadores de humor e afins, aos psicólogos e a evolução dos tempos. Fico triste qdo ouço como muitas vezes ouvi de pessoas que isso é frescura, que é coisa de gente ociosa ou sem Deus no coração ou egoísta pq muitas vezes pode não acabar bem levando a pessoa a buscar um fim triste para seu alívio seja nos vícios ou pior
adoro seus textos – sigo no Face e vejo no Blogs – HojePr