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28/04/2024



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A arte não vale um gato morto

 A arte não vale um gato morto

Depois da retrospectiva histórica sobre o Movimento ANARTE de Reynaldo Jardim publicada aqui na coluna Frente Fria em 5 de maio de 2022, já estava pronto pra mudar para o próximo assunto: a criação da Contrabanda. No entanto, achei por acaso duas postagens publicadas pelo poeta Roberto Prado em seu blog Amplo Espectro, nos dias 15 e 23 de março de 2006, que trazem depoimentos muito importantes sobre o cenário cultural do início dos anos 80 em Curitiba.

O primeiro post era intitulado: Beto Trindade e Reynaldo Jardim: o tempo em que tudo ia dar certo. Roberto Prado começa dizendo: “Esses dias o Sérgio Viralobos sugeriu que eu falasse aqui da importância da passagem do poeta Reynaldo Jardim por Curitiba. Achei legal a ideia. Eu não seria a criatura mais indicada para falar do assunto. Tive pouco contato com ele. Lembro de uma vez, no Teatro Paiol. Rolava um encontro de poetas, para o qual fui literalmente arrastado por não me lembro quem. O papo estava magérrimo. Ai o Reynaldo pega o microfone e joga a isca, muito sério: “- Nenhum poema nos últimos 50 anos têm a qualidade de qualquer um do Camões.” E incendiou a conversa. Na saída, voltei de carona no mesmo táxi que ele, que ria muito dos efeitos da sua frase e de algumas reações exageradas. O cara foi diretor de um jornal e de um órgão oficial de cultura que fez funcionar muito bem. Sei também que o Reynaldo editou a revista/jornal Pólo Cultural, onde saiu coisa muito interessante. A mídia era legal, circulou fora do Paraná e até em outros países. Foi uma época de efervescência. Dava a impressão, às vezes, que tudo ia dar certo. E o Reynaldo Jardim fez parte desse caldo de cultura maluco.”

 

Beto Trindade, outro importante artista da época (era o líder do grupo Família Buty King) e que hoje mora em Londres, mandou um texto para o Amplo Espectro falando desse período e lembrando de seus contatos imediatos com o Jardim:

 

“No começo dos anos 80 antes do advento do rock mauricinho, podia-se andar pela rua carregando um violão e cantando sem ser chamado de hippie. Eu e a Família Buty King fazíamos parte de um bando que se encontrava em lugares diversos, trocávamos ideias, cantávamos, consumíamos drogas e álcool e fazíamos exibições públicas de talento performático, fosse qual fosse. Faziam parte dessa extensa gangue gente como o Rodrigo Barros, o Ferreira, o Belmiro Pato, o Luís Cláudio violoncelista, a Andreinha Giovannetti, o Zé Buffo, o Joaquim, o Renato Quege, o Sérgio Viralobos e outros.

 

O Buffo organizava coisas como o que hoje se chama de Flashmob: combina-se um lugar e uma hora e todos aparecem lá vestidos de uma certa maneira e durante um minuto ou dois fazem algo inusitado como por exemplo levantar um braço e gritar “auíca”. Essa eu inventei agora, mas houve várias que eu não me lembro direito. Pergunte ao Rodrigo. (Nota: Rodrigo Barros, cantor e compositor dos grupos Beijo aa Força e Maxixe Machine.)

 

Uma das facções dessa extensa gangue chamava-se Anarte. Me lembro quando eles andavam pelas ruas carregando um caixão e distribuindo panfletos dizendo “A Arte Não Vale Um Gato Morto”. Uma vez invadiram um bate-papo dos estudantes do Teatro Guaíra com o Paulo Autran e o velho ator ao ler a blasfêmia disse “só podem ser malucos”. Certíssimo.

 

Eu, além de estudar no Guaíra, fazia parte de um grupo de mímica chamado Gestus, que também fazia barbaridades na rua e invadia exposições e vernissages. Às vezes um de nós ficava num canto da exposição com uma fronha na cabeça, noutras enchíamos a boca de salgadinhos e conversávamos coisas ininteligíveis em voz muito alta. Com o tempo os artistas plásticos e até diretores de teatro começaram a nos convidar para intervir nas suas exposições e peças. Nós nos encontrávamos todos os dias no Solar do Barão para ensaiar e inventar sketches. A Fucucu (nota: Fundação Cultural de Curitiba) nos convidava pra animar os seus eventos e assim por diante.

 

Todo esse profissionalismo e seriedade (he he) chamou a atenção do Reynaldo Jardim, na época diretor do Museu da Imagem e do Som. Tinha no seu currículo o Caderno B do Jornal do Brasil, que ele havia fundado, primeiro caderno de artes de qualquer jornal no Brasil. Era o típico gente boa, direto, sem ares nem frescura e tinha uma barbona branca e densa que lhe dava um aspecto peculiar e perfeito pra ser nosso aliado e padrinho. Ele se aproximou de nós e ofereceu o museu pra gente ensaiar.

 

Nós praticamente passamos a viver lá. Ele mandou derrubar o seu escritório, que era enorme, para aumentar o nosso espaço e mudou-se para uma saletinha nos fundos. Mandou colocar uma cortina no meio do salão principal e nos pediu para organizar quartas-feiras abertas, onde gente talentosa se apresentava. Tudo isso regado à pipoca e sei lá mais o que.

 

Nossos amigos passavam lá todos os dias, compúnhamos canções e planejávamos outras diversões. Numa dessas surgiu a ideia da Contrabanda e também de uma Orquestra Anti-harmônica Fila Boia que nunca se concretizou.

 

Foi uma maravilha enquanto durou. Posso estar me confundindo um pouco na cronologia, mas acho que tudo se desmanchou em 1982 ou 83. Um novo governo tomou conta com uma política de forçar arte goela abaixo do povo, ressuscitar o teatro profissional curitibano com montagens oficiais e matar o teatro amador e alternativo. Colocaram um cara, que era ex-diretor da prisão, Queiroz Filho no lugar do Reynaldo e nós ficamos sem teto.

 

Eu fui pra Porto Alegre. A última que eu soube do Reynaldo (e já faz tempo) é que ele estava em Brasília num canal de televisão.”

 

Depois deste denso depoimento de Trindade, houve vários comentários no blog Amplo Espectro, mas um se destacou bastante: o de José Buffo.

 

Muita gente sabe que José Buffo criou a Heads Propaganda, junto com Cláudio Loureiro, e transformou-a na maior agência de publicidade do Paraná. Na foto acima, Buffo é o de barba, o cara do meio é Kofi Annan, em palestra no Copacabana Palace, patrocinada pela Heads.

 

Pouquíssima gente sabe que antes da Heads, Buffo era um dos maiores agitadores culturais da cidade, além de poeta, cineasta e compositor de músicas como Valsa Danada, gravada pelo Beijo AA Força no cultuado álbum Sem Suingue. Ouça aqui.

 

Seu comentário rendeu tanto caldo que Roberto Prado, o Beco, publicou-o na íntegra num novo post do Amplo Espectro chamado: Buffo, Reynaldo e as flores do jardim da nossa casa. Aí vai:

 

“Beco, querido. Isso tudo me deu foi saudade. O Jardim, ou o Garden como a gente chamava, chegou e botou fogo no circo. Ele tinha um slogan próprio: “nascido em São Paulo, vivido no Rio, morrido em Curitiba”. Ele achava isso aqui um cemitério, mas como todo cemitério também pode brotar ervas daninhas. Foi o que ele fez. Tento puxar pelo fio da memória coisas que ele facilitou e portas que ele abriu pra turma toda entrar e aprontar. Com o Polo Cultural ele fez uma revolução de alto nível, até hoje um jornal sem igual no país. Com o Correio de Notícias: só a turma da madruga, do past up, já era uma loucura. Novo jornalismo todo dia no ar. Poesia pura em forma de notícias fazendo a alegria das bancas de jornais e dos leitores que buscavam nos jornais mais que o rame-rame do noticiário esdrúxulo do dia a dia. Aquela do Paiol, lembro-me muito bem, estava lá. Acho até, se deus quiser, que tenho um cassete gravado com o papo todo que rolou por lá. Acho, só acho. Mas foi no apoio a toda rapaziada que o Garden de fato marcou. Ele era um lorde. A Anarte fazia parte da Feira Nacional do Humor, que acontecia num circo ali no largo. Já foi dito ai. Ele ganhou para divulgar o evento vários cartazes de rua, out door. E o que fez? Chamou a rapaziada para pintar, um a um. Uma diversão e tanto. A Ferrofonia, maestrada pelo Luis Claudio, acabou em pancadaria, para não dizer outra coisa, quando quebraram o arco do violoncelo do maestro. E todo mundo achava que fazia parte do espetáculo, afinal, uma porrada a mais ou a menos tanto fazia. E o circo estava cheio de autoridades civis, militares, eclesiásticas, etc…

 

Quem filmou tudo isso foi o Peter Lorenzo, em 16 mm, alguém deve ter esse filme. No MIS, então, ele foi muito generoso. Todos os filmes super 8 que fiz foram 4: Um lance de dedos; Brasil — ou vai ou rocha ; Jovina, a menina da Vila Nori e João Passamão; além de um clássico do cinema udigrudi, com câmara do Fernando Tupan (em relação ao dono do cu que aparece no filme há controvérsias), parece que foi o…; bem, não me lembro do nome, minha flor. Enfim, o Garden foi a nossa Embrafilme, entre outras coisas, garantindo filmes, revelações, montagens, tudo no MIS. Os filmes viraram bolsa de jacaré em algum lugar.

 

Mas o Garden não parava. Estava sempre pronto a editar um livro, publicar um poema, armar um evento. Embalados por uma ideologia dos situacionistas, a ideia era armar e aprontar alguma de maneira rápida em algum lugar, qualquer lugar. Uma delas virou matéria de capa inteira do Jornal do Brasil, da lavra do nosso Beraldo. Um luxo para nós. A Arte Não Vale um Gato Morto, como citou o Trindade, fazia parte da divulgação da Anarte, e houve mesmo um desfile de caixão pela cidade, com entrega de panfletos e tudo mais. Aliás, nossa apresentação no circo, começou assim: o féretro chegando e lá de dentro saindo alguém. Claro que era difícil do cara sair, pois o defunto estava sempre muito bêbado.

 

Mas nesse auê todo aí teve um auezinho anterior que foi a única e exclusiva apresentação da BAnda BAndida no TUC. Uma banda aberta, gente que ia sendo catada na rua, clarinetista de banda militar, Didi no bongô, Luis Claudio no arranjo, Marcos Prato na percussão, Rodrigão, Renato Quege, Sérgio Viralobos, sei lá mais quem. Um monte de gente, cada um com seu instrumento, neguinho tocando piano, e a plateia cheia, urrando, foram umas 4 horas de show, sem parar, sem ensaio, sem estrutura, apenas tocando e falando e cantando e tudo isso foi gravado naqueles gravadores de rolo, DEVE ESTAR NO MIS, se é que alguém sabe disso. Bem, a banda ou o bando durou só essa apresentação. Foi o máximo. O sucesso de um show só! Ah, talvez tenha me equivocado nos nomes, mas o que importa é que não sonhei. Estavam todo lá. Todos mesmo. Onde o Garden entra nessa? Ah, sei lá. O Garden apoiava tudo.

 

Tem outras coisas que puxando pela memória vai saindo.

 

Bem, querido Beco. Qualquer coisa a gente vai se falando. Acho que fazer algo pela passagem do Jardim aqui pela plagas curitibana é mesmo muito legal e merecedor. Forte abraço.

 

Buffo.”

 

Este testemunho arrasador deu motivo para dezenas de comentários no blog. Um dos mais interessantes foi emitido por Júlio Garrido, integrante da Família Buty King, fotógrafo e um dos desorganizadores do bloco de carnaval Sacis e Garibaldis:

 

“O que o Trindade e o Buffo contaram é a mais pura verdade. A frase “A arte não vale um gato morto” surgiu por conta de um filme carioca, onde um gato era caçado, morto e seu couro usado pra fazer tamborim, exibido no circo do Largo da Ordem na FENAHA!HA! ou Feira Nacional do Humor ou em um evento paralelo, não lembro bem. Só sei que o Jardim, indignado, cunhou a famosa frase, que virou lema dessa moçada toda. Lembro também do caixão, da passeata, da qual participei, da confusão toda e do Leminski cantando suas canções e falando “essa o Caetano vai gravar”, o povo morria de rir achando que era piada. O Jardim lá no MIS, ajudou muita gente a finalizar seus filmes super 8, até um nosso com poemas do Marcos Prado foi sonorizado por lá. Foi uma época muito divertida.

Julio Garrido.”

 

Lendo esses depoimentos hoje ficamos em dúvida: será que foi um sonho coletivo ou realmente aconteceu isto tudo naquela pacata cidade nos anos 80? Acho que sempre continuarei em dúvida. Na coluna de julho falaremos de outra loucura daquela época — a Contrabanda.

2 Comments

  • A arte não tem preço, mas tem muito valor… Pena que em Curitiba-PR, os artistas de modo geral não recebam o seu devido valor.

  • Sou fã do Viralobos

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