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27/04/2024



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A morte do Plano Real e a volta da inflação inercial

 A morte do Plano Real e a volta da inflação inercial

O Plano Real de 1994 colocou a inflação sob controle abrindo uma fase de estabilização econômica que durou décadas. Seu sucesso derivou do acerto do diagnóstico da principal causa da inflação no Brasil. Para além de qualquer choque de oferta, de demanda, da imposição de preços controlados ou da expansão da base monetária, os criadores do Plano Real entenderam o caráter central que assumia entre as causas da inflação brasileira sua dimensão inercial. O atual retorno à reindexação, caracterizado pelo uso cada vez mais generalizado de índices de inflação para reajuste de preços, tarifas e até lucros significa nada menos do que a volta da inflação inercial e a resultante morte do Plano Real (1994-2022).

 

O conceito Inflação Inercial foi inspirado na analogia com a Lei da Inércia da Física. Da mesma forma que corpos que estão em movimento tendem a se manter indefinidamente em movimento, também a Inflação tende a se manter nas mesmas taxas numa economia fortemente indexada. Os reajustes de preços podem ocorrer independentemente da conjuntura econômica por conta da inércia inflacionária causada pela indexação geral da economia ao índice oficial de inflação – ou qualquer outro.

 

O atrelamento de todos os reajustes de preços, tarifas, impostos, multas, aluguéis, salários etc. a um índice oficial de inflação, ou outros indicadores de percentual de reajuste, fazia com que a inflação do passado seguisse se replicando no futuro. O índice oficial da inflação passada era tomado também pela maioria dos agentes econômicos como sendo o melhor indicador da inflação futura, por isso os reajustes de preços não só se eternizavam no tempo como tendiam a ser cada vez maiores e mais frequentes. Foi somente com o Plano Real que se logrou romper a inércia inflacionária através da desindexação geral da maior parte da economia.

 

Dentre o catálogo de itens da herança maldita legada pela Ditadura Militar (1964-1985) raramente é citado o pior e mais nefasto deles: a correção monetária dos títulos da dívida pública federal. O desastroso governo de João Goulart (1961-1964) havia legado um crescimento econômico negativo em termos per capita, um enorme déficit público e a mais alta taxa de inflação anual até então registrada (94%). Para sanar o déficit público, dentre outras medidas, os tecnocratas Roberto Campos (avô) e Otávio Gouveia de Bulhões, ambos participantes da conspiração que derrubou Jango, retomaram a venda de títulos da dívida pública federal. Em tempos de inflação tão alta parecia impraticável convencer os investidores a financiar a dívida pública interna através da venda de títulos de resgate anual cuja remuneração era pré-fixada, geralmente na ordem de 6% de juros ao ano.

 

A novidade proposta pela dupla Campos e Bulhões é que aos compradores de títulos da dívida pública federal seriam pagos os juros vigentes de 6% ao ano e mais a correção monetária, isto é, o índice oficial de inflação. Nasceram assim as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN) que é como passaram a ser conhecidos os títulos da dívida pública federal. Cabe enfatizar o termo “reajustável” que implica no pagamento ao investidor na data de resgate do título do percentual oficial da inflação então vigente, além dos juros. Mais ainda, o estabelecimento de um índice oficial de inflação seria usado também para reajustar os preços das tarifas públicas, impostos e multas a cargo do Estado. Desta forma, os custos dos serviços, bens e mercadorias produzidos pelas empresas estatais jamais ficariam defasados, evitando assim aumentar o déficit público.

 

Inicialmente a correção monetária foi um êxito. Ela neutralizou a taxa de inflação que, replicada através de um indicador oficial às citadas fontes de financiamento do Estado, garantiram enorme soma de recursos para investimento público: o Estado, então investindo pesadamente no crescimento econômico, seguia sendo fiscalmente viável, mesmo em um contexto de inflação alta. Os resultados obtidos nos anos seguintes, na forma de impressionantes índices de crescimento econômico promovido pelo Estado (1968-1973), são resultado do elevado investimento do Poder Público federal, tornado possível dentre outras coisas graças a adoção da correção monetária.

 

Contudo, à medida em que a inflação ia se acelerando a partir de meados dos anos 1970, a correção monetária passava a ser cada vez mais disfuncional. A maioria dos custos dos agentes econômicos, públicos e privados, manifestos em seus contratos e tabelas de preços, passou não só a ser corrigida, mas até expressa não mais na unidade monetária nacional (o Cruzeiro) mas sim no mais confiável e generalizado índice de inflação, aquele que era adotado na remuneração das ORTN. O autor deste texto, à época trabalhando com representação comercial, lembra do dia em que as tabelas de preços deixaram de usar Cruzeiros para adotar a ORTN. Não era necessário mais remarcar fisicamente os preços das mercadorias. Bastava consultar a cotação do dia da ORTN e aplicá-la à tabela para atualizar os preços dos produtos. A ORTN era em 1964 um índice inicialmente atualizado com frequência anual. Depois passou no início dos anos 1980 a ser atualizado mensalmente. Em fins daquela década era reajustado diariamente.

 

No início dos anos 1980 já estava plenamente caracterizada na economia brasileira a Inflação autônoma ou Inercial. Praticamente todos os preços, salários e contratos estavam sob indexação formal ou informal por índices oficiais ou extras-oficiais de inflação. Isso levava a correção automática de preços e salários em prazos cada vez menores e por índices cada vez maiores. Isso explica a convivência da pior recessão econômica da história, manifesta no PIB negativo de 1981, com uma taxa de inflação de três dígitos: surgia aí a estagflação. Todos os 12 planos de estabilização econômica tentados para conter a hiperinflação brasileira desde 1979 se revelaram fracassados, justamente por não terem compreendido a essência inercial da inflação brasileira, derivada da indexação geral de praticamente todos os fatores econômicos.

 

O sucesso do Plano Real derivou de uma ousada e original proposta de acabar com a correção monetária geral de preços e salários através da total indexação todos os fatores econômicos a um único índice, no caso, a Unidade Real de Valor (URV). O objetivo era a conversão de todos preços, tarifas e salários a um único indexador, a qual se daria de forma gradual e voluntária. Tal índice captava a inflação diária e, de fato, foi adotado em quase toda economia. Neste estágio ocorreu então uma reforma monetária que introduziu uma nova moeda em lugar da URV, o Real, que zerou a inflação sem apelar a qualquer congelamento de preços ou salários, como já havia ocorrido no Plano Cruzado (1986), também uma tentativa de conter a inércia inflacionária.

 

O contexto atual é bem diferente do início do Plano Real. A indexação voltou a ser a regra. Os preços dos combustíveis e demais derivados de petróleo estão atrelados a um índice, no caso, a cotação do dólar estadunidense. As tarifas de água, de energia elétrica e os aluguéis estão atrelados ao Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) calculado mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calcula o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) nas modalidades restrita e ampla (IPCA) também usados em diferentes contratos públicos e privados. Agora os concessionários das rodovias privatizadas demandam que as tarifas de pedágio sejam reajustadas automaticamente a cada subida do preço do óleo Diesel, tido como seu mais importante insumo. E os exemplos deste tipo a cada dia se multiplicam.

 

Contudo, a pior manifestação da inflação inercial é, como também era à época da primeira grande crise de estagflação (1981-1983), a correção monetária dos títulos da dívida pública federal. Objetivamente, não existe qualquer motivo racional para o Brasil praticar os mais altos juros do mundo, atualmente pagos aos donos dos títulos da dívida interna. Pelo contrário, o contexto econômico depressivo vigente, caracterizado por elevada capacidade produtiva ociosa e desemprego sem precedentes recomendaria o contrário, isto é, a imposição dos juros mais baixos possíveis, senão negativos.

 

Da mesma forma como foi proposto inicialmente por Roberto Campos (avô) o atual presidente do Banco Central Roberto Campos Neto entende que os donos dos títulos da dívida pública não podem ver reduzidos seus lucros por causa da inflação. Logo, ao decidir qual taxa de juros será paga aos rentistas donos de títulos da dívida interna, o Banco Central aplica no mínimo a taxa oficial de inflação. Trata-se da manutenção do esquema implantado em 1964 segundo o qual os títulos do governo rendem juros e correção monetária, jamais perdendo em lucratividade para a inflação. Esta prática garante, mais do que qualquer outro fator, que a inflação passada se replique no futuro: a inflação voltou, assim, a ser essencialmente inercial. Para piorar ainda mais a crise, os recursos obtidos com a venda de títulos da dívida pública federal não se destinam a qualquer investimento produtivo. Tais recursos servem apenas para pagar os títulos já emitidos à medida que vão vencendo, num típico processo de esterilização de capital que, noutros tempos, teve sentido produtivo e econômico.

 

Já foi apontada nessa coluna o conflito de interesse que existe quando ex-banqueiros ou futuros banqueiros ocupam cargo no Banco Central (“Juro alto não segura inflação” para ler clique aqui). O contexto atual dominado pela inflação inercial coloca outra questão ainda mais grave: até quando será possível se adiar a indexação também do reajuste dos salários? É sabido que a vasta maioria dos poucos reajustes salariais concedidos nos últimos anos adotou índices bem inferiores ao da inflação. Se for mantida esta prática é óbvio que o poder de compra dos salários será cada vez mais e mais reduzido, podendo chegar logo ao ponto em que será insuficiente até mesmo para garantir a subsistência e reprodução dos trabalhadores.

 

Nas atuais taxas, a reposição salarial pelo índice oficial de inflação deveria ser pelo menos anual, senão semestral. É necessário e urgente se pautar a indexação dos salários pelo índice oficial de inflação ou algum outro indicador adequado que garanta reposição automática e regular do poder de compra dos trabalhadores, sob risco de piorar ainda mais uma crise que já é a pior da História.


Dennison de Oliveira é professor de História na UFPR, autor do livro História do Brasil: política e economia (Intersaberes, 2009)

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