A Guerra da Ucrânia, eufemisticamente denominada como uma “operação militar especial” pelo governo russo, está completando dois anos de duração. Neste período a tecnologia, doutrina, ciência e arte militares conheceram profundas transformações. O legado final da Guerra da Ucrânia será uma radical e extensa mudança em todos temas e questões relacionadas à arte da guerra.
É extremamente difícil resumir, em apenas um texto, o conjunto das mudanças operadas no âmbito das operações militares por conta da Guerra da Ucrânia. Desta forma, são indicadas aqui apenas algumas das mais importantes transformações, cujos impactos prometem ser os mais duradouros.
Em ordem de importância cabe citar as mudanças na Guerra Cibernética, Guerra Eletrônica, no uso da inteligência artificial, o retorno à guerra de atrito típica das grandes guerras de massa da Era Industrial, o desenvolvimento de drones, misseis e foguetes, a desaparição das batalhas aéreas e de blindados, o futuro do tanque de guerra, a conversão da infantaria em uma força blindada, as questões afetas ao balanço entre fogo e movimento, concentração de forças e dispersão de meios.
A Guerra Cibernética tornou-se a mãe de todos demais tipos de enfrentamento. O sucesso ou o fracasso na capacidade de manter íntegras suas próprias operações, comunicações e informações, ao mesmo tempo em que consegue interferir ou interceptar as do inimigo, determina em boa medida o desfecho das demais ações militares. Desde o conflito de 2014 os russos têm demonstrado amplamente suas capacidades de se infiltrar nas redes de comunicação e controle ucranianas, um problema que pode ter se exacerbado quando, logo no início da guerra atual, a rede de internet e telefonia ucraniana passou a ser monopólio de uma grande empresa estadunidense de telecomunicações.
A Guerra Eletrônica também tem importância decisiva, quase igual à da Guerra Cibernética. A capacidade de manipular, interferir, bloquear e embaralhar as ondas eletromagnéticas para fins militares está sendo levada a um novo auge nessa guerra. É possível derrubar aeronaves não-tripuladas (“drones”) apenas cortando seus sinais de rádio, através do uso de um aparelho de interferência adequado. Pode-se ocultar movimentos de tropas e embarcações gerando sinais que bloqueiem ou embaralhem imagens de satélites e radares inimigos. A capacidade de exercer o monitoramento e gestão do espectro de frequências eletromagnéticas se tornou de importância maior que nunca.
Com a maciça ampliação da quantidade de informação que é gerada nas diferentes atividades de comando e controle por uma variedade de meios (satélites, observação aérea, drones, radares, sensores e observadores no solo etc.) o problema do tempo dedicado a análise e interpretação de dados para fins de tomada de decisão ressurgiu de forma grave. O uso da inteligência artificial, por exemplo, em drones de observação e ataque, simplifica as tarefas de busca, identificação e aquisição de alvos, ganhando tempo precioso para o processo de tomada de decisão e evitando perdas próprias.
Até a eclosão da atual Guerra da Ucrânia o consenso entre a maioria dos estudiosos militares é que os futuros conflitos seriam invariavelmente breves, de localização delimitada, empregando uma ampla variedade de meios materiais e culturais e restrita às regiões economicamente subdesenvolvidas do planeta. Na realidade ocorreu o contrário, com o retorno à guerra de atrito típica dos grandes conflitos de massa da Era Industrial, em larga escala, no coração da Europa, no qual as capacidades industriais, demográficas, cientificas e tecnológicas dos oponentes são tensionadas ao máximo.
Como resultado, assistimos a um novo auge nos gastos militares em escala global, somando ano passado um orçamento recordista no setor desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Diversos países já estão reconsiderando acabar com o voluntariado e reintroduzir o serviço militar obrigatório para formar grandes exércitos de massas de recrutados. Trata-se de uma radical reversão de expectativas em relação a um passado bastante recente.
A parte propriamente tecnológica relativa às armas de destruição em massa, afetas à artilharia, demandaria várias páginas para ser resumida. Pode ser suficiente notar como o desenvolvimento de drones, misseis e foguetes, mudou radicalmente a face do campo de batalha. Os drones tornaram-se indispensáveis para fins tanto de observação, vigilância, comando e controle da linha de frente quanto para atacar alvos, próximos e distantes, em terra e no mar. As perdas mensais de drones do lado ucraniano são estimadas em dez mil unidades, dando uma ideia da escala maciça de emprego destas aeronaves – e, no caso ucraniano, também embarcações – não tripuladas.
Os misseis, tanto empregados pela Ucrânia a partir de doações de países membros da OTAN quanto os utilizados pelos russos, ganharam novo e poderoso sentido estratégico. Com eles pode-se atingir com precisão alvos na retaguarda distante do inimigo, atingindo de forma guiada objetivos de importância estratégica como fábricas, usinas, laboratórios, centros de comunicação e controle etc. O uso de foguetes guiados, por sua vez, se tornou generalizado em nível de campo de batalha. Objetivos valiosos como colunas motorizadas de suprimentos, grupos de armas ou veículos inimigos e locais que abriguem quartéis-generais e Estados-Maiores são seus alvos preferenciais. Uma inovação foram as baterias de foguetes lançadores de minas, semeadas por paraquedas. Também a desminagem, através do lançamento de um cabo explosivo para forçar detonação de minas, é realizada por foguetes.
A tarefa de negar acesso ao inimigo em determinada área ou via de comunicação, destruir trincheiras e fortificações, bombardear edificações etc. ainda segue a cargo da artilharia convencional, empregando canhões. Mas mesmo estes se sofisticaram enormemente no decorrer do atual conflito, com a artilharia rebocada sendo relegada a segundo plano e a artilharia autopropulsada sendo dominada por veículos portando canhões de grande calibre, operados em torres não-tripuladas, capazes de alto grau de acerto de seus alvos e de manutenção de elevada cadência de tiro.
Um fato evidente nesta guerra foi a desaparição dos grandes confrontos aéreos e de blindados que, noutros tempos, dominaram os eventos militares em nível de campo de batalha. De fato, o grau de exposição de qualquer grande grupo de veículos ou aeronaves à vigilância e ao fogo inimigo fez dos engajamentos em escala pequena – ou individual – a única linha de ação possível.
Segue em aberto o futuro do tanque de guerra. O antigo rei dos campos de batalha das grandes guerras mecanizadas se tornou demasiado frágil e exposto, uma vez que o terreno é dominado por minas, fogo de artilharia, drones e foguetes capazes de destruir blindados e, no caso russo, por helicópteros antitanques. Contudo, os tanques seguem sendo o único recurso – embora com limitações – ainda capaz de manobrar sob fogo inimigo.
A imagem tradicionalmente associada à infantaria – isto é, combatentes que se deslocam e lutam a pé – tem que ser revista. Tanto o deslocamento de uma localidade para outra quanto o combate, quando realizado fora de veículos blindados, assumiram um custo proibitivo. Tanto quanto possível os soldados de infantaria seguem para seus objetivos dentro de veículos blindados de transporte de pessoal, só os deixando quando do momento de se engajar contra o inimigo, geralmente nas proximidades de um alvo como um prédio, uma floresta ou área urbanizada. Se não houver estrita necessidade de ocupação permanente de tais alvos, também se faz a evacuação dos combatentes usando veículos blindados, logo após a limpeza da localidade da infantaria inimiga.
Para além da óbvia vantagem da defesa em uma guerra de atrito, é de se notar a renovada importância das fortificações permanentes, com demonstrado pelos russos ao conter a recente ofensiva ucraniana. Tal lição causou profunda impressão nos países bálticos que recentemente anunciaram estudos para construção de uma linha de fortificações permanentes na fronteira com a Rússia.
No atual contexto da guerra é difícil equacionar as questões afetas ao desejável balanço entre fogo e movimento. Quem se desloca se denuncia e, assim, se expõe ao fogo inimigo. Mas não se pode ocupar terreno que se deseja tomar ao inimigo apenas atirando, sem se deslocar.
Na guerra um dos princípios mais antigos e verdadeiros é o da concentração de forças. A busca da superioridade numérica sobre o inimigo em um determinado ponto considerado taticamente valioso exige que se concentrem ao máximo as forças atacantes em suas proximidades. Tais lugares são conhecidos como áreas de concentração ou de reunião das tropas. Porém, quanto maior o efetivo a ser concentrado, tanto maior a possibilidade de vir a ser descoberto e atacado, ainda mesmo durante o processo de reunião. A dispersão de meios militares é imperativa, mascarando tropas e armas e minimizando perdas em caso de ataque – mas tudo isso está em contradição com o princípio da concentração de forças.
Não se pode estimar até quando irá durar a Guerra da Ucrânia, embora haja evidências de que o conflito possa se arrastar ainda por vários anos. Nos últimos dois anos a face da guerra e as configurações dos campos de batalha mudaram bastante, em alguns casos de forma radical. Se o conflito durar outros dois ou três anos, provavelmente, terá tornado obsoletos e superados todos pressupostos que antes de sua eclosão dominavam os estudos e as pesquisas dos assuntos militares. Tais constatações tornam ainda mais urgente e necessária a revisão da Política Nacional de Defesa vigente no Brasil
Dennison de Oliveira é professor de história na UFPR e autor de “Para Entender a Segunda Guerra Mundial – Síntese Histórica” (Juruá, 2020) disponível aqui.
Leia outras colunas do Dennison de Oliveira aqui.
2 Comentários
Opa,
Os turcos abateram anos atrás na Guerra da Síria um drone usando Laser a partir de terra.
Mas eles não usaram o Laser para danificar o drone, mas sim para esquentá-lo até estragar algum sistema vital, coisa de segundos.
Não conheço caso de tentativa de usar contra alvos em terra.
Sim, é uma linha de pesquisa promissora, mas a urgência seria desenvolver interferência em sinais de rádio usados pelos drones inimigos.
Nos falamos,
Dennison
Olá Dennison. Pergunto até que ponto as armas laser EM TERRA (não no espaço) anti-mísseis teleguiados poderia ser eficiente em abater qualquer ataque com base em terra. Um equipamento de alta mobilidade terrestre seria ainda difícil de detecção, etc. O que vc acha? parece-me uma linha de tecnologia altamente desejável para pesquisa por nossas Forças tupiniquins! Pelo pouco (ou nada) que sei, a dificuldade maior é convergir o beam e dar-lhe energia suficiente para superar maiores distâncias e penetrar no míssil.